Por CARLOS ZACARIAS DE SENA JÚNIOR & DEMIAN BEZERRA DE MELO*
Diante da inércia institucional e da escalada fascista, a autodefesa da comunidade acadêmica deixa de ser uma opção para se tornar uma necessidade legítima na proteção do espaço do conhecimento contra a barbárie
1.
A propósito do assassinato do líder extremista Charlie Kirk no último dia 10 de setembro, e da violência que atinge universidades dos Estados Unidos e do Brasil, o jornal Folha de S. Paulo publicou artigo dos professores Pablo Ortellado, Verônica Daflon e Waldomiro Silva Filho, na seção “Tendências e Debates”.
No texto, intitulado “Campus de batalha”, os colegas lamentam a morte de Charlie Kirk e a usam como mote para chamar atenção para o fato de que ela ocorreu dentro de um campus universitário, em plena luz do dia. Os professores apontam que as investigações ainda não concluíram sobre as motivações de Tyler James Robinson, assassino de Charlie Kirk, no entanto sugerem que “Esse crime representa o ápice trágico de uma perigosa escalada de eventos que têm transformado discordâncias verbais naturais em violência, algo que atinge os campi universitários nos Estados Unidos e no Brasil”.
Não parece difícil concluir que o desfecho trágico da pregação de Charlie Kirk em diversos campi universitários acerca de temas, digamos, controversos, pudesse atiçar a conhecida violência política que atinge a sociedade estadunidense. Charlie Kirk não era apenas um defensor do armamento, ele dizia valer “a pena ter um custo de, infelizmente, algumas mortes por armas de fogo todos os anos para que possamos ter a Segunda Emenda”.
Mas não apenas isso. Em sua peregrinação pelo país o extremista promovia o ódio contra a esquerda e as minorias sociais e políticas, fossem elas movimentos e pessoas negras, LGBTs e mulheres, sem medir palavras. Sobre a Palestina, enquanto o mundo assiste o genocídio, Charlie Kirk costumava justificar a violência do Estado sionista de Israel dizendo que as crianças eram utilizadas como “bucha de canhão para objetivos radicais islâmicos”.
Apesar da pregação com evidentes traços fascistas, até onde se sabe, o dedo que apertou o gatilho que tirou a vida do extremista não era de um radical islâmico, de um homem negro ou de alguém identificado com a esquerda.
Por razão de fundo ideológico a extrema direita escolheu as universidades de todo o mundo como alvo. O ponto de partida obscurantista é o de que as instituições de ensino superior, especialmente as públicas, estariam contaminadas por suposta “doutrinação esquerdista” voltada para a formação de “militantes” interessados em “subverter a sociedade”.
Não bastasse a crônica falta de investimentos que precarizam as condições de trabalho de docentes e servidores e dificultam a vida de estudantes, bandos de arruaceiros extremistas têm invadido diversas instituições para “produzir conteúdos” para as redes sociais, denunciando o suposto esquerdismo de membros da comunidade universitária. Entre os provocadores, não raro se encontram parlamentares bolsonaristas e/ou companheiros de viagem de grupos de extrema direita, como o MBL, entre outros.
2.
Frente a esse estado de coisas, a comparação dos atuais grupos extremistas com as expedições punitivas dos fascistas de um século atrás não é despropositada. Os fascistas odeiam o pensamento crítico e qualquer espaço voltado para produção de conhecimento. No entanto, não é apanágio exclusivo de falanges extremistas a tentativa de ocupação das universidades.
Já na década de 1950, nos Estados Unidos, o conservador William Buckley Jr. denunciou uma das mais importantes universidades do país como um “antro esquerdista” (“liberal”, nos termos do vocabulário político estadunidense) em seu livro God a Man at Yale. A novidade é que hoje esse tipo de desqualificação tem estimulado ações violentas ou, de forma complementar, o uso da universidade para a difusão de discurso de ódio, como fazia o extremista Charles Kirk.
No Brasil, depois de terem sido alvo de brutal repressão no período da ditadura militar, as universidades voltaram ao foco da extrema direita que emergiu nutrida de profundo ressentimento pelo papel cumprido por estudantes e professores no último período. Figuras como Olavo de Carvalho e seus discípulos costumavam desqualificar as universidades e toda a estrutura da educação pública como parte do discurso ideológico que estruturou o campo bolsonarista.
Nessa chave, o problema educacional brasileiro se resumiria a suposta influência do pensamento de Paulo Freire, um tipo de teoria da conspiração usada pelas direitas neoliberais como justificativa para o desinvestimento e o ódio contra os docentes. Não é possível compreender a atual onda de violência contra as universidades sem assinalar que ela faz parte de uma estratégia que almeja dividendos eleitorais e ao mesmo tempo pressupõe sua destruição.
É bastante sintomático de que essa escolha das universidades públicas como alvo tenha se dado justamente no contexto em que estas passaram por transformações democratizadoras, como a resultante da implementação das políticas de ação afirmativa que mudaram a cor das comunidades universitárias pelo país.
Como assinalou o sociólogo Thiago Torres Moura Santos, conhecido como “Chavoso da USP”, essa desqualificação das universidades públicas ocorre justamente quando as pessoas pretas e pobres finalmente conseguem adentra-la, denotando ainda mais o caráter racista dessa estratégia das direitas.[i]
Parece, portanto, uma total mistificação querer atribuir a onda de violência nos campi aos dois lados do espectro político, como lamentavelmente fazem os autores do artigo “Campus de batalha” publicado na Folha. Estranho também que tenham recorrido ao caso do assassinato do supremacista Charlie Kirk para fundamentar uma falsa equivalência.
Em raríssimas ocasiões a violência parte de pessoas do campo da esquerda e não há notícias de pessoas negras, mulheres ou LGBTs espancando estudantes. No caso brasileiro, além do ódio que é despejado contra as universidades, as recentes e mais violentas ações que terminaram por vitimar secundaristas partiram de jovens capturados por ideologias masculinistas que terminaram radicalizados pelo submundo dos grupos neonazistas na internet.
É verdade que a universidade é espaço de debate, mas é incorreto dizer que “o livre debate de ideias”, cultivado por todos que atuam nas instituições universitárias, permita qualquer tipo de discussão. Ideologias de ódio que inspirem atitudes racistas, machistas e LGBTfóbicas, isso para não falar em teorias da conspiração e negacionismos de diversos tipos, não são bem-vindas na universidade.
A não ser que se queira comparar as ações de autodefesa de estudantes que se organizam contra arruaceiros de extrema direita utilizando-se de uma mesma régua moral de assediadores, não é possível argumentar que as instituições se tornaram um campo de batalha em função da radicalização à esquerda e à direita.
Ao contrário do que os colegas disseram, apontamos que enquanto as universidades não tomarem as providências institucionais para a segurança de sua comunidade contra esses ataques da extrema direita, as ações de autodefesa são legítimas, devem se fortalecer e se multiplicar.
*Carlos Zacarias de Sena Júnior é professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*Demian Bezerra de Melo é professor de história contemporânea na Universidade Federal Fluminense, campus Angra.
Nota
[i] Cf. “Depois das cotas, a visão sobre a universidade mudou?” Entrevista com o Chavoso da USP ao podcast Kritikê Podcast, 01/10/2025. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=UAp7WIUO-l0
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A



















