Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*
Resposta a um debate necessário
“A universidade virou repartição da obediência: debate quando autorizada, critica quando regulamentada, e resiste desde que em pdf e com protocolo carimbado” (Autor cubano desconhecido).
Com este artigo, procuro responder, de modo respeitoso e reflexivo, à interlocução proposta por Maria Caramez Carlotto no texto intitulado “O capital fictício e sus mediações”, postado ontem no site A Terra é Redonda, que se dirige às análises que venho desenvolvendo sobre a captura estrutural da universidade e do sindicato ANDES-SN pela lógica do capital fictício.
As palavras que seguem não pretendem desqualificar a autora, a quem respeito pela trajetória intelectual e pelo comprometimento político. Antes, buscam esclarecer um desacordo de método e de horizonte: não se trata apenas de diferenciar graus de radicalidade, mas de identificar formas distintas de compreender a própria natureza da crise universitária. A divergência não está na ausência de propostas, mas na inteligência do mundo que se quer transformar.
Maria Carlotto inicia sua crítica apontando que minha análise da captura da universidade pública prescinde de mediações e ignora as disputas concretas em torno do financiamento, do Estado e do arcabouço fiscal. Contudo, o que está em jogo na crítica à hegemonia do capital fictício não é o abandono dessas mediações, mas o reconhecimento de que elas já estão operando sob uma nova forma de dominação estrutural.
A Lei do Teto de Gastos (EC 95/2016), a LC 200/2023 e os contratos de gestão não são apenas políticas regressivas: são dispositivos de uma racionalidade financiarizada que transforma o conhecimento em ativo e o docente em gestor de si.
Dizer que a universidade foi capturada pelo capital fictício é reconhecer que não se trata apenas de cortes orçamentários, mas de uma reconfiguração completa da função social da produção do saber. Os recursos continuam existindo, mas sua alocação está condicionada a indicadores, rankings, metas, editais e contratos. O professor se torna um algoritmo de produtividade. A aula é medida por NPS. A extensão, por impacto social quantificável. O artigo, por fator de impacto e pontuação no Qualis. Este é o regime da financeirização: não o da ausência de verba, mas o da sua instrumentalização como vetor de reputação precificada.
Não é um erro analítico, portanto, denunciar que mesmo a recomposição orçamentária feita pelo governo federal se inscreve nessa gramática. A universidade, já transformada em vitrine de prestígio, não se liberta com mais recursos se eles seguem sendo distribuídos via função social subordinada à lógica do valor simbólico-mercantil. Falar disso é político, sim. É uma política da forma, não apenas do conteúdo.
Maria Carlotto aponta ainda um erro fático: não teriam sido quatro chapas homologadas, mas apenas três. Aceito a correção, sem hesitação. Contudo, ela não anula o argumento central: nenhuma das chapas tematizou de forma clara, articulada e conceitualmente rigorosa o regime de financeirização como forma social dominante.
Denunciar o neoliberalismo em chave moral ou denunciar a extrema-direita em chave civilizatória é necessário, mas insuficiente. O que falta é compreender como essas forças se articulam com a reconfiguração material da universidade enquanto ativo reputacional. A financeirização não é apenas uma política, mas uma forma social de valorização.
A resposta de Maria Caramez Carlotto também acusa minha crítica de se aproximar da “visão hegemônica da direção do sindicato”, ao supostamente abandonar as disputas concretas e operar com uma crítica abstrata. Permita-me, aqui, uma inflexão: não é a crítica que é abstrata.
Abstrata é a forma como o sindicato opera quando substitui a ação por moções, a escuta por circulares e a presença nos cotidianos docentes por eventos simbólicos. Se o sindicato está capturado, não é por adesão voluntária, mas por transformação objetiva das condições de reprodução da sua forma de luta.
O sindicato tornou-se, também ele, um operador reputacional. Mede sua existência por indicadores de visibilidade, por circulação de nomes, por inserção em redes. A lógica da representação, outrora instrumento de mediação coletiva, virou dispositivo de administração da impotência. Reunir 10 mil votantes num universo de 350 mil docentes não é só mérito de oposição: é sintoma de uma crise de representação que atinge toda a forma sindical.
O que proponho, portanto, não é desmobilização. É deslocamento. Não se trata de abandonar a luta sindical, mas de reencontrá-la para além das estruturas que hoje a restringem a um ritualismo inofensivo. A insurgência cotidiana de que falo não é palavra de ordem. É um convite à reinvenção das formas de luta, que parta da experiência concreta dos docentes e recuse a mercantilização do saber não apenas no discurso, mas no modo de organização. Uma pedagogia da ruptura que comece nos corredores, nas salas, nos silêncios.
Lançar luz sobre o capital fictício é, sim, um ato de precisão teórica. Não é jargão, é instrumento de compreensão do mundo. Desde os anos 1970, com a crise de superacumulação, a lógica de valorização deslocou-se para formas fictícias: papéis, títulos, contratos, métricas. A universidade pública tornou-se ativo reputacional, e o saber, moeda simbólica de cotagem. A docência virou gestão de si e a pesquisa, instrumento de monetização indireta. O adoecimento psíquico não é um subproduto: é uma expressão desse regime.
Por tudo isso, é fundamental que o movimento docente assuma o desafio de pensar para além de suas formas herdadas. Não se trata de negar sua história, mas de libertá-la da repetição. As condições mudaram, a forma precisa mudar também. Não há mais tempo para nos perdermos em liturgias organizativas que não mobilizam nem afetam. É preciso ter coragem de romper com as próprias categorias que nos organizaram até aqui. A universidade está sob cerco. E não basta defesas simbólicas. É preciso contra-ataques estruturais.
Talvez o que nos una neste debate seja mais importante do que as diferenças que nos atravessam. Ambos ansiamos por uma universidade viva, emancipada, enraizada no comum. Ambos recusamos a barbárie que se avizinha. Mas é preciso nomear com mais rigor o que nos captura. Sem isso, corremos o risco de lutar com ferramentas do passado contra inimigos que já reconfiguraram o presente.
Basta de perder tempo. O capital fictício não espera.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA