Adeus a Pepe Mujica

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por EMILIO CAFASSI*

Pepe Mujica partiu, mas seu legado é como as sementes que plantou: frágeis na aparência, indomáveis na essência. Resta saber se florescerão em políticas ou se serão apenas belas epígrafes em um mundo que prefere monumentos a mudanças

1.

O velho jardineiro, cultivador de flores que polinizam a política, embora de lenta fertilidade, fechou os olhos. Ele plantou utopias raras em terras áridas e soube regá-las com a obstinada aspersão dos justos. José Pepe Mujica morreu, mas o tom terreno de suas palavras e o poder contracultural de seu exemplo sobrevivem.

O homem morreu, não o gesto. Nem seu rancho sem grades, nem sua poltrona reciclada, nem seu cachorro de três patas. Partiu aquele que fez da sua vida um ato poético-político de resistência, de conquistas lentas, parciais e sem alarde, feito de galinhas, de discursos descalços, de tratores e de bandeiras de integração, mesmo das irreconciliáveis. A troca de balas por sementes e de trincheiras por sulcos o levou ao púlpito pagão da austeridade, de onde pregou incansavelmente uma relibidinização das ações.

Ele apontou seu rifle discursivo para o consumismo, como se fosse um superego implacável e monástico, pronto a atenuar, com pouco sucesso, o misterioso brilho fetichista da mercadoria, ou seja, a atirar para o ar em imensos bombardeiros sedentos de vítimas. E como se o roteiro tivesse sido escrito por algum dramaturgo sensível e sóbrio, ele pediu para ser cinzas destinadas a fertilizar sob uma árvore, ao lado de Manuela, como se a história, por uma vez, tivesse lhe concedido o direito de criar raízes e não apenas florescer.

Pepe Mujica era, na verdade, um sobrevivente do barro que retornou ao barro, mas não sem antes deixar marcas em cada pedra do caminho. Um sábio tribal, um velho sem toga que falava do barro e não do mármore. Sua voz rouca do bar e da barricada, polida por dias de luta, sabia encontrar uma nova linguagem, que falasse da terra e da injustiça como se fala do tempo e da banalidade dos dias. Ele não era um estrategista meticuloso nem um estadista de números, mas era o homem que queria mostrar que existe outro tipo de política que não se resume a gestos eficazes, mas sim a gestos nobres.

Desde as profundezas da masmorra do aljibe[i] até a Casa Branca e o Vaticano, dos assentamentos urbanos aos aplausos da Rio+20 e da Assembleia Geral da ONU, sua trajetória não foi uma linha reta, mas uma espiral melancólica como um refrão de tango que nunca perdia de vista o horizonte. O fato de seus últimos anos terem sido politicamente ambíguos ou erráticos não diminui o brilhantismo de ter desencadeado uma ética de coerência pessoal e autenticidade radical. Quixote e Sancho ao mesmo tempo, um filósofo como Gramsci os concebeu, com alpargatas sujas, e um político que não mentiu sobre sua humanidade.

2.

Em que momento Pepe Mujica deixou de ser um político e se tornou um símbolo global? Talvez quando ele disse na Rio+20 que viemos falar de desenvolvimento, mas que o importante era salvar vidas. Ou quando ele abriu mão de privilégios que outros nem ousavam mencionar. Sua humanidade transcendeu fronteiras, não por sua astúcia, mas por sua naturalidade. Foi o oposto de um líder que divide: uma referência que, mesmo para aqueles que o detestavam, permanecia inexpugnável. Não por ser invencível, mas por ser irredutivelmente humano.

Foi guerrilheiro e foi preso. Foi baleado e esteve à beira da morte. Foi fugitivo e torturado. Foi deputado, senador, ministro, presidente. Mas, acima de tudo, foi uma maneira de habitar a política. O de falar com a terra na voz e a história nos gestos. Seu programa era mais coerente do que eficaz, mais ético do que técnico. Ele trocou promessas por confissões e discursos por silêncios carregados.

Seu governo expandiu direitos, fez a economia do país crescer a taxas quase comparáveis às da China e melhorou a infraestrutura em geral e as comunicações em particular. Ele lançou um programa de melhoria de moradias, apoiou o Instituto de Colonização, criou uma nova universidade pública e, acima de tudo, sob sua administração, leis sobre aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e legalização da maconha foram finalmente aprovadas.

Sua política externa foi integracionista, unindo-se decisivamente à onda progressista sul-americana e conseguindo superar a tensão absurda com a Argentina, que se agravava desde o conflito das fábricas de celulose. Às vezes ele tomava o caminho errado, como em questões educacionais ou com projetos fracassados, mas sempre andava a pé. O Fusca se tornou um emblema, mas não por demagogia: era a coerência estética de um anacoreta republicano.

Sua estratégia política acabou sendo autobiográfica. Em tempos de “extimidade”, acusá-lo de exibicionismo seria tão anacrônico quanto cobrir um espelho, não por modéstia, mas por medo do próprio reflexo. Sua existência expôs a obscenidade do privilégio e expôs o absurdo do cinismo. A direita tentou, sem sucesso, caricaturá-lo ou simular uma condescendência fingida.

O homem que se definia como “um velho militante” tornou-se o espelho no qual ninguém queria se olhar: vivendo sem ostentação, governando sem corrupção. A profissionalização da política tolerou isso, mas não imitou. Muito menos os partidos conservadores. Talvez ele devesse ter fundado uma escola, não de pensamento, mas de imitação. Porque num sistema que torna a coerência excepcional, se a imitação não for institucionalizada, não haverá (l)imitação. A apenas uma consoante de distância, a política se torna uma virtude na fronteira. Como quando uma vogal permite “pasar del barro al barrio”.

3.

Pepe Mujica foi um assaltante romântico do poder político, a ponto de introduzir o romantismo político no progressismo uruguaio, com projeção internacional. Em primeiro lugar, como uma rejeição do utilitarismo, da mecanização e da comercialização da vida, opondo uma utopia alternativa a uma certa nostalgia transformadora, ou melancolia ativa, como tristeza mobilizada.

Uma utopia ética e estética que é muito mais que técnica. Ele opõe o vitalismo à especulação fria. Uma postura trágica, mas de apoio, que caminha na direção em que é fácil escorregar para o escapismo ou o conservadorismo. Ele recusou as coordenadas do realismo político: preferiu sonhar com utopias a projetar pequenas escaramuças. Assim como os socialistas utópicos do século XIX, ele priorizou a coerência prática como embrião das transformações sociais.

Militante tanto da dádiva quanto da desapropriação, ele não buscou restaurar o passado, mas redimir seu esplendor comunitário: o sentido do trabalho como arte, da vida como um milagre, do outro como um ser humano. À medida que o mundo se tornava mais digital e rápido, ele retomou um discurso lento e comedido que falava de felicidade. Seu romantismo não era evasivo, mas utópico, algo insuportável para os pragmáticos.

Nem toda utopia afunda: algumas se tornam faróis para aqueles que ainda procuram areia na praia. Quando José Hernández terminou de dar vida ao seu matrero gaúcho, Martin Fierro, talvez tenha começado, sem saber, a elaborar o roteiro de outro personagem: aquele que hoje revive na fraseologia mujiquista. Não era um romantismo político institucionalizado, mas sim um fio crítico infectado pela modernidade: pólen misturado com vertentes progressistas.

O fato de Marx e Engels o terem repreendido no Manifesto Comunista não deve ofuscar o fato de que ainda existem traços atuais de Fourier, Proudhon ou Saint-Simon, do vitalismo de Rousseau ou, em termos intelectuais mais recentes, do pessimismo de Benjamin ou Bloch. Mas apresentado sob o disfarce do individualismo, entre a exemplaridade que ensinava sem sermões e moralizava sem punições.

4.

O risco de um deslizamento conservador no romantismo político não é uma hipótese teórica alheia à personagem, mas, ao contrário, talvez também contribua para sua humanização. Nem Pepe Mujica em particular, nem o MPP, seu setor frentista em geral, seguiram um caminho transformador para a Frente Ampla. Muitas das alternativas dinâmicas da Frente Ampla e da sociedade uruguaia foram travadas em sucessivos congressos, colocando-nos uns contra os outros. Da reforma constitucional à expansão dos debates nas bases.

A guinada eleitoralista, sem dúvida bem-sucedida, teve o custo de criar um caminho para a capitulação de aventureiros oportunistas e traidores como Aparicio Saravia ou Gonzalo Mujica, que foram produto dessas táticas políticas baseadas no marketing. Também contribuiu, espero que não intencionalmente, para o surgimento da pior excrescência política uruguaia, o partido Cabildo Abierto do General Manini Ríos e sua consorte, uma ex-comandante durante sua administração.

Mas ainda mais graves são as declarações recentes sobre mentiras espalhafatosas em julgamentos de genocídio ou ambiguidades quanto à vergonhosa impunidade de criminosos contra a humanidade, incluindo a derrota cívica do voto rosa paralelamente à sua eleição presidencial, resultado da falta de vigor militante em relação a ele.

Não se trata mais apenas de questionar a inútil política de defesa implementada por Fernández Huidobro durante sua gestão, mas da ferida indelével no movimento de direitos humanos e uma rendição impossível de conciliar com sua ética vitalista. É a ferida que nunca cicatriza, a de um silêncio que se torna um rio de sangue, personificado no trânsito da Avenida 18 de Julio, como o que acabamos de testemunhar entre dezenas de milhares na Marcha Silenciosa por Montevidéu.

Pepe Mujica, que encontramos no ano passado sentado com sua companheira em uma cadeira perto da esplanada municipal, estava entre nós, pesando a dor de sua partida, embora ao mesmo tempo um símbolo dos escassos esforços que havia feito para desmantelar a teoria dos dois demônios. Pelo contrário, com cuidadosa parcimônia, ele introduziu uma política de conciliação que era inaceitável de todos os pontos de vista, éticos, políticos e humanos. Algo incompatível com a prioridade da vida numa perspectiva ontológica, isto é, do ser sobre o ter, que caracterizava seu estilo, e também imperdoável, para alguém que pregava a vida como verbo e não como propriedade.

A esse jardineiro das flores, enquanto falava da vida que instava a conquistar enquanto a sua se apagava, seus olhos se enchiam de primaveras. As flores da chácara, com as quais ganhou a vida antes de se tornar lenda, nunca estiveram isentas de espinhos. As que deixou para a política também não.

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Artur Scavone.

Nota do tradutor


[i] Pepe Mujica passou mais de uma década preso durante a ditadura militar uruguaia, sendo mantido em condições extremamente precárias. Em alguns períodos, ele ficou isolado em solitárias, incluindo um confinamento de mais de dois anos no fundo de um bebedouro velho para cavalos, onde sofreu privações severas.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES