Ainda temos o amanhã

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Por MARIAROSARIA FABRIS*

Anotações sobre o filme de estreia de Paola Cortellesi

Capa do semanário Tempo, anunciando, com uma manchete do Corriere della Sera de 6 de junho de 1946, o nascimento da República Italiana (foto de Federico Patellani)

Na penumbra de um modesto dormitório, um homem acorda e seu primeiro gesto é esbofetear a mulher que, deitada ao seu lado, acabava de despertar e lhe desejou um bom dia. Ela, “indiferente”, penteia o cabelo, troca de roupa, veste um avental, enquanto uma canção – que fala do desabrochar da primeira rosa vermelha, das primeiras violetas que brotam, da primeira andorinha que volteia no céu, e que convida a abrir as janelas – soa no ar.

E continua anunciando que é primavera, em sentido literal e metafórico, pois é quando os sonhos das jovens apaixonadas se renovam, junto com a esperança num futuro de amor.[1] Há um contraste gritante entre o que é dito pela letra da canção no plano metafórico e o que não é dito, mas mostrado, ou seja, como se desenrola a vida da protagonista, desde as primeiras horas do dia. Este é um dos exemplos das múltiplas funções que a música desempenha neste filme.[2]

Entrementes, a mulher vai abrindo as janelas dos vários cômodos do apartamento semienterrado, revelando, ao mesmo tempo, o espaço público (pernas que passam, como num filme de Nanni Moretti;[3] um cachorro que urina perto do caixilho; o pátio do prédio) e o familiar, em que ela está preparando o café-da-manhã, acordando a prole, preparando os lanches e sendo ameaçada pelo marido por ter supostamente quebrado a cordinha da descarga.

Quando finalmente os dois meninos vão para a escola, Marcella (a filha adolescente) para seu serviço de passadeira e Ivano (o pai) para seu trabalho de ladrão de túmulos, o sogro reclama pelo atraso de Delia em servir-lhe o desjejum. Enquanto a nora o acode, Seu Ottorino Santucci tenta apalpá-la e repreende-a por não aprender a ficar calada, quando ela lhe lembra seu passado de usurário. Um calendário de mesa móvel exibe a data dessa manhã ensolarada de maio – dia 14, terça-feira: portanto, como a canção anunciou, é primavera (no hemisfério norte).

Embora Ivano a acuse de não fazer nada e de descuidar do lar, a jornada de Delia mal começou, pois, fora de casa, tem várias obrigações a cumprir. Saindo no pátio, entrega um sanduíche a um dos condôminos, Alvaro, e, sobre a imagem do conjunto habitacional, surge o título do filme: C’è ancora domani, cuja tradução em português, Ainda temos o amanhã, se refere à esperança no porvir, deixando de lado a ideia de que algo ainda pode ser feito concretamente no dia seguinte. A tomada em ângulo mais fechado dos prédios que rodeiam o pátio remete ao enquadramento inicial do edifício em que se desenrolava Una giornata particolare, com o qual a realização de Paola Cortellesi dialoga, a começar pelo ar resignado da protagonista e, segundo Carmen Palma, pelo aproveitamento da lição do comecinho da trama:

Quando, em 1977, Ettore Scola adentrou um condomínio popular nos primeiros minutos de Um dia muito especial, o fez de forma lenta, calibrada, mostrando-nos os detalhes da casa da protagonista, o despertar da família, os primeiros afazeres domésticos, o café-da -manhã, todos aqueles rituais que podem ser transferidos para um plano social maior, os usos e costumes de uma época distante.

Ao chegar à rua, a câmera, que acompanha a caminhada compassada de Delia rumo a seus bicos – ao som de Calvin (1999), da banda de roque nova-iorquina Jon Spencer Blues Explosion –, vai revelando o bairro em que esta mora, Testaccio (tradicional bairro popular romano na margem esquerda do rio Tibre)[4], focaliza seus habitantes, os muros pichados contra a casa real e a favor da República, o transporte público ainda precário, a presença da military police no patrulhamento da cidade. Embora este último detalhe tenha um papel importante no filme, principalmente por caracterizar bem que a trama se desenvolve no imediato pós-guerra, alguns se perguntaram se, em meados de 1946, a military police ainda circulava por Roma.[5]

Terminada a apresentação do bairro – a qual, de alguma forma, lembra um dos longos planos-sequência de Roma (2018), de Alfonso Cuarón[6] –, os passos de Delia se tornam mais apressados, descompassando um pouco o andamento inicial do filme, que tem como pano de fundo a capital italiana ainda assolada pela miséria provocada pela guerra, em que os alimentos racionados obrigam a longas filas para obtê-los. O que não é o caso para os que souberam enriquecer com o mercado negro, como a família Moretti, dona do melhor bar local, cujo filho Giulio está namorando Marcella, para satisfação da mãe e grande júbilo de Ivano, que vê no casamento da filha uma chance de ascensão social.

Acompanhar Delia nos pequenos serviços extras que presta, significa penetrar um pouco mais a fundo na questão social e, principalmente, no papel da mulher naquele período. É interessante como, em vez de adotar um tom panfletário, Paola Cortellesi, graças a pequenos detalhes, pequenas anotações, consegue costurar seu discurso sobre as disparidades de classe e de gênero.[7]

Ao aplicar injeções numa casa abastada, nossa protagonista se depara com um café-da-manhã suntuoso, bem diferente dos dois pedaços de pão e da fatia de queijo que ela serve a cada um de seus familiares, mas se depara também com o mesmo desrespeito para com a mulher, que impera em sua casa. “Querida, cale-se”, diz o marido burguês à esposa, quando esta tenta apoiar a opinião do filho sobre a necessidade de mudanças na sociedade.

Em sua segunda parada, Delia vai entregar numa loja de armarinhos a roupa íntima (soutiens e cintas-ligas) que consertou em casa. Quando pergunta à patroa se tem meias desfiadas para recuperar, esta lhe responde com altivez que as joga no lixo, enquanto a dona de casa atravessou todo o período da guerra com elas.

A proprietária da loja de miudezas, no entanto, também enfrenta a discriminação masculina, como acontecerá mais adiante, quando um vendedor de zíperes pede para falar com o dono do estabelecimento e, ao saber que tem de tratar diretamente com ela, murmura algo sobre o fato de as mulheres, de um ano para cá, estarem pondo as manguinhas de fora.

O terceiro serviço de Delia é numa loja que vende e conserta guarda-chuvas. Enquanto ensina a um aprendiz como montar o objeto em questão, fica sabendo que este ganha mais do que ela, que está neste trabalho há três anos. Ao reclamar com o dono, recebe como resposta que o outro é homem.

E, por fim, em casa, a aguarda mais um bico: lavar os itens de cama e mesa para inquilinos endinheirados, que utilizam o elevador do prédio, enquanto ela sobe pelas escadas até o terraço, carregando a grande tina com a roupa a ser pendurada. Uma vez lá em cima, Delia e as outras duas comadres, que estão na mesma lida, ajudam-se reciprocamente na hora de estender ou tirar do varal os grandes lençóis de casal, em mais uma sequência que parece aludir ao citado filme de Ettore Scola.[8]

Numa de suas andanças, nossa incansável personagem depara-se com a fotografia de uma família negra no chão, perto do ponto de bloqueio de uma patrulha norte-americana. Ao ver um militar negro buscando algo ansiosamente, deduz que a foto só pode ser dele. Agradecido, o estrangeiro se apresenta, William, oferece-lhe dois tabletes de chocolate e diz que está em dívida com ela.

Na esfera do Neorrealismo, tantas vezes evocado ao se falar deste filme de estreia de Paola Cortellesi, o relacionamento entre militares negros norte-americanos e população italiana sempre foi conturbado e à sombra de acontecimentos trágicos, como no episódio napolitano de Paisà (Paisá, 1946), de Roberto Rossellini, ou em Senza pietà (Sem piedade, 1948), de Alberto Lattuada, os quais, com a marginalização social de ambos os lados, deixavam um travo de amargura nos espectadores.

Em Ainda temos o amanhã, Delia ao encontrar William, fica meio desconfiada, mas, aos poucos, se tranquiliza e, no fim, estes dois “párias” sociais (a partir da foto, se deduz a origem dele e, a partir das marcas no corpo dela, o militar entende que a mulher é vítima de violência) saberão dar a volta por cima.

Na feira livre do bairro, a dona de casa troca dois dedos de prosa com Marisa, comerciante de frutas e verduras (que sempre dá um jeito de enfiar alguma mercadoria na sacola da amiga), narra-lhe seu encontro com William e as duas acabam falando da beleza dos americanos, que têm todos os dentes, muitos, mais do que os italianos. Por fim, conversam sobre Ivano, o qual, por ter feito duas guerras, sofre dos nervos (é a eterna desculpa que dá para seus rompantes de agressividade contra a esposa) – ao violento ladrão de túmulos se contrapõe a figura do doce marido da feirante, a qual, porém o considera um débil mental.

Essa sequência, com o feirante anunciando sua mercadoria e a esposa que deixa na mão a freguesa que lhe está devendo dinheiro, traz à memória o filme Campo de’ fiori (Cada qual com seu destino, 1943), de Mario Bonnard, um dos antecessores do Neorrealismo, com suas filmagens em cenários reais, seus intérpretes ligados ao teatro de revista, seus personagens populares que se expressavam em fala regional: rodado no pitoresco mercado ao ar livre da praça (que dá nome ao filme) situada no coração da cidade, a realização contava com Aldo Fabrizi e Anna Magnani nos papéis de um vendedor de peixe e uma vendedora de verdura.

A crítica tem tentado estabelecer um elo entre a interpretação de Paola Cortellesi (mas, poderia se pensar também na caracterização que Emanuela Fanelli faz de Marisa) e Anna Magnani, lembrando geralmente suas atuações em Roma città aperta (Roma, cidade aberta, 1944-45), de Roberto Rossellini, ou em Bellissima (Belíssima, 1951),[9] de Luchino Visconti, quando, na verdade deveriam ser apontados antes L’onorevole Angelina (Angelina, a deputada, 1947), de Luigi Zampa, ou o citado filme de Bonnard, estabelecendo assim uma linha de continuidade entre a comédia realista anterior ao surgimento da nova vertente cinematográfica no segundo pós-guerra e o chamado Neorrealismo menor (ou rosa), até desembocar na comédia à italiana, que foi se afirmando nos anos 1960.

Em todo caso, as duas atrizes hodiernas não parecem dotadas, no bom sentido, daquela personalidade histriônica que caracterizava Anna Magnani, em constante oscilação entre uma comicidade mais escancarada e uma dramaticidade intensa, às vezes, excessiva. Não se trata de uma crítica, mas de reconhecer que a novos tempos correspondem outros tipos de interpretação. Na construção do processo de conscientização de Delia, com sua atuação, Paola Cortellesi soube criar uma personagem constantemente desorientada, de rugas marcantes, olhar cansado, que denota sua inquietação, mas também de um sorriso luminoso, em alguns momentos de desanuviamento.

A caminho de casa, Delia passa pela oficina mecânica de Nino, um antigo namorado que, trinta anos atrás, a deixou escapar e se arrependeu. Percebe-se que ainda existe um sentimento entre os dois, mas a dona de casa furta-se às investidas pelo silêncio. Na sequência mais romântica do filme, ela divide com o mecânico um dos tabletes de chocolate que ganhou. Assim que cada um coloca um pedacinho de chocolate na boca, quase simulando um beijo, e ambos passam a olhar-se com intensidade, a câmera começa a rodopiar ao redor deles ao som de M’innamoro davvero (1999), de Fabio Concato, em que um homem experimenta estranhas sensações diante da mulher pela qual sabe que irá se apaixonar.

É um momento de encantamento pelo reencontro, mas, ao mesmo tempo, os dois têm consciência de que foram derrotados pela vida, pois há desespero no rosto dela e melancolia nos olhos dele. Mesmo o sorriso que trocam é velado de tristeza: os dois estão com os dentes manchados de chocolate, pretos, como se fossem cariados, de gente sofrida, em contraste com a dentadura branca e perfeita dos americanos.

É interessante notar que essa sequência chamou a atenção de profissionais da área de odontologia, como Gianna Maria Nardi que, ao sublinhar a importância do sorriso nas relações humanas, destacou ”a grande intensidade emotiva” desse momento em que os dois trocam um “sorriso intenso, lento e profundo, embora não branco e luminoso como o sorriso dos soldados americanos, sujo de chocolate”.

Se o momento idílico se passasse alguns meses depois, ou melhor ainda, em meados do ano seguinte, poderia se pensar que estivesse calcado em alguma das fotonovelas do período, histórias de amor em quadrinhos – fotografadas, como a própria denominação indica –, veiculadas por semanários como Sogno e Grand Hotel, lidas principalmente por mulheres, seja de camadas sociais menos favorecidas, seja de uma pequena burguesia urbana empobrecida, cujos intérpretes provinham do mesmo ambiente social e cultural de seu público. No documentário L’amorosa menzogna (As mentiras do amor, 1949), Michelangelo Antonioni se debruçou sobre esse universo, tendo como um dos protagonistas Sergio Raimondi, um ex-mecânico que se tornou um grande astro das fotonovelas.

O que chama a atenção em Ainda temos o amanhã, não é só o fato de Nino ser um mecânico, como Raimondi foi no filme de Antonioni e na vida real, mas também a caracterização de Vinicio Marchioni para que seu personagem lembrasse a do “divo” do passado. E, uma vez que Delia e Nino se despedem como se dissessem adeus a um sonho, não seria arriscado concluir que, como no documentário de 1949, neste caso também as relações amorosas estão baseadas em algo ilusório, são regidas por convenções sociais estabelecidas, correspondendo a modelos estereotipados.[10]

De volta ao lar, a dona de casa se entretém com três vizinhas bisbilhoteiras que estão realizando pequenas tarefas no pátio. Encontra ainda Marcella e Giulio, intencionado a propiciar o encontro das respectivas famílias para oficializar o noivado. Apesar dos protestos da filha, irá encarregar-se do almoço de confraternização, pois, como manda a tradição são os pais da noiva que recebem os pais do noivo.

Ao entrar no prédio, a zeladora quer entregar-lhe uma correspondência, mas Delia diz com toda naturalidade que é o marido que se encarrega disso, uma vez que, na época, qualquer comunicação epistolar passava pelo crivo do pater familias. Diante da insistência da zeladora, pega a missiva e pede-lhe para não comentar nada com Ivano. No dormitório, depois de tê-lo lido, esconde o papel numa das gavetinhas da máquina de costura, junto com alguns trocados que subtrai regularmente do dinheiro que ganha antes de entregá-lo ao marido.

Mais tarde, a filha a recrimina pelo convite feito aos pais de Giulio, porque se envergonha de seus familiares e da penúria em que vivem. Logo em seguida, Ivano chega do trabalho com seus sapatos sujos de terra e, como sempre, começa a implicar com o pouco dinheiro que mãe e filha trazem para casa, com o qual mal dá para pagar as contas. A esposa tenta convencê-lo de que não é bem assim e, para acalmá-lo, fala-lhe do almoço de noivado.

O marido, depois de lamentar que, com o casamento de Marcella, não haverá mais uma mulher em casa, corre à janela para que todos ouçam que sua filha vai fazer um bom casamento, terá outro nível de vida, diferentemente dos mortos de fome do condomínio. Enquanto isso, os irmãos que dividem uma das camas do quarto em que dorme também a moça, já discutem pela posse do leito à disposição.

Para comemorar, Delia resolve repartir o outro tablete de chocolate, mas Ivano, que desconfia do comportamento da esposa para ganhá-lo, tranca-se com ela no quarto. E aqui começa uma das sequências mais surpreendentes do filme, pois uma situação rotineira é mostrada de forma estilizada, transformada numa espécie de coreografia, sem perder sua carga de violência.

Segundo Ester Annetta, durante essa sessão de maus-tratos, “cada marca – o sangue, as tumefações – aparece e, logo em seguida, desbota, reabsorvendo-se numa ferida interna em vez de permanecer externa”. Ou seja, cada marca transforma-se numa ferida mais profunda e duradoura. A música, de novo, tem uma função de contraponto; só que, dessa vez, no final, reforçará a sensação de que a dona de casa está presa num círculo vicioso.

De fato, a canção Nessuno (1959), de Antonietta De Simone (letra) e de Edilio Capotosti e Vittorio Mascheroni (música), faz a exaltação de um amor que ninguém, nem o destino, conseguirá separar porque será iluminado para sempre pela alegria infinita que ele propicia. Um amor doce que representa o passado e o porvir, que resume em si todo o universo de quem o vive (o princípio e o fim). Só que, nos versos finais da canção, a intérprete repete, como se fosse um disco engasgado, que “este amor se iluminará / de eternidade / de eternidade / de eternidade / de eternidade / de eternidade”, gritando com voz cada vez mais estrídula.

Dessa forma, o que deveria ser uma felicidade infinita, transforma-se numa pena eterna à qual Delia parece condenada. Sensação corroborada pela substituição da linha melódica da composição original por um ritmo mais sincopado na versão de 2004 do duo Musica Nuda – formado por Petra Magoni (voz) e Ferruccio Spinetti (contrabaixo) –, mais próxima da pegada jazz da interpretação de Mina, ainda em 1959.

A sequência gerou opiniões contrastantes, porém, conforme declarou no making-of oficial, a diretora não queria retratar a truculência do marido de forma voyeurística e a metáfora da dança pareceu-lhe ainda mais violenta do que as encenações realistas presentes em tanto filmes.

Em seu quarto, os filhos esperam amedrontados que aquilo termine. No pátio, as três vizinhas bisbilhoteiras esperam caladas, como se a dor de uma fosse a dor de todas as mulheres. Como se nada tivesse acontecido, Ivano prepara-se para sair, ajudado pela esposa, que o perfuma embora sabendo que ele vai atrás de mulher, o que causará a revolta da filha que prefere matar-se do que acabar como a mãe. E quando lhe pergunta por que não vai embora, Delia, resignada, responde-lhe, “para onde?”. Sozinha no dormitório, torna a ler a correspondência escondida e, depois de amassá-la, joga-a na cesta de lixo. Na manhã seguinte, a dona de casa, já acordada mas ainda na cama e com ar indiferente, está verificando se o criado mudo está empoeirado, enquanto o marido, satisfeita a própria lascívia, diz que ainda a ama e se desculpa pela surra da noite anterior.

Via di Villa Certosa (bairro Tuscolano), Roma, 1946

Na rua, Delia, assim como dezenas de outras mulheres, está na fila dos alimentos racionados, na esperança de obter uma massa que não seja o macarrãozinho para a sopa, mas em vão. Na volta para casa, torna a encontrar William, que percebe que ela apanhou, e passa na feira-livre para conversar com Marisa, que a convida a tomar um café num bar. Depois ficam fumando, falando da vida e Delia confidencia-lhe que conseguiu guardar 8.000 liras para o vestido de noiva da filha. É uma pequena sequência, quase uma pausa, que, graças sobretudo à interpretação despojada das duas atrizes, adquire um frescor inusitado (como na cena das três donas de casa no terraço, recolhendo roupa do varal).

No pátio do prédio, como de costume, os velhos estão jogando baralho e as três vizinhas estão trabalhando e conversando. Uma delas prontifica-se a emprestar a toalha de mesa para o almoço de noivado, o que desencadeia uma briga, pois outra fala mal da família do noivo. Em seguida, vemos Delia atarefada com os preparativos, enquanto Marcella tenta acalmar os irmãos. O avô ficará trancado no quarto e o pai precisará ser policiado para não entornar o copo. A chegada dos Moretti, todos bem vestidos e que, educadamente, trouxeram uma bandeja de doces, sublinha a grande diferença entre as duas famílias, embora também o pai do noivo mande a esposa calar a boca, quando começam a falar de eleições.

O almoço está fadado ao fracasso: o macarrão de forno foi feito da forma mais simples, sem muitos ingredientes além do macarrãozinho de sopa; a carne servida é de má qualidade; o pai bebe além da conta; o avô, que esqueceram de trancar no quarto, aparece andando (para grande espanto da família) e joga na cara de Moretti o passado infame do sócio do bar, que denunciava dissidentes aos nazistas; Delia, tentando contornar a situação, se prontifica a servir os doces, mas, ao tropeçar, os deixa cair no chão, quebrando por cima um prato herança de sua sogra, o que chateia o marido. O clima fica tenso e Giulio, para desanuviar o ambiente, propõe irem tomar sorvete no bar paterno. Ivano diz que ele e a esposa irão em seguida e, depois que todos saíram, fecha a porta do quarto. Os espectadores já sabem o que vai acontecer.

No bar, enquanto os jovens tomam sorvete, o casal Moretti conversa em outra mesa sobre a família cafona e ignorante de Marcella: a mulher espera que sua filha, ao casar, faça uma escolha melhor, mas o marido diz que a escolha será dele (a prática de impor um casamento às moças ainda era muito comum). Um trabalhador, que afixa uns cartazes perto do bar, irrita o dono, o qual reclama que faz um ano que estão enchendo com aquela história, sem dissuadir o cartazeiro.

Na manhã seguinte, Ivano tem uma longa conversa com o pai, que o aconselha a não bater muito em Delia, para que ela não se acostume. Basta uma boa sova uma vez por todas. Ademais, tem pena dela quando a ouve chorar. Foi o que ele fez com a esposa e deu certo. O filho escuta-o, cabisbaixo e com ar compungido. Em seguida, dirige-se ao dormitório do casal, abre a porta e, com toda força, estica o braço para a frente (para a câmera) e, em primeiro plano, aparece não o punho cerrado, pronto a desferir um golpe, mas sua mão direita aberta, convidando sua estarrecida cara metade a dançar.

E é o que fazem, ao som de Perdoniamoci (1960), de Umberto Bertini (letra) e Enzo Di Paola (música). Enquanto os dois volteiam pelo quarto no compasso da canção entoada por Achille Togliani, surgem, paralelamente, lembranças de quando se conheceram, na época da Primeira Guerra Mundial (o uniforme militar dele e o tipo de filmagens que remete ao primórdios do cinema na Itália o confirmam), do casamento numa humilde igrejinha, dos primeiros tapas na frente dos filhos pequenos.

Se a música convida um casal a perdoar-se reciprocamente pelos erros cometidos, a voltar a amar-se como se os dois fossem uma só alma, a recordar o dia radioso do primeiro encontro que lhes mudou a vida, a recuperar a sinceridade perdida, na verdade seria só o marido quem deveria pedir perdão à esposa, se conseguisse entender que o seu é um jeito torto de amar.

Porque ele provavelmente ainda gosta dela – basta ver a expressão patética de seu rosto enquanto ensaiam mais uma dança –, mas, ao mesmo tempo, pela educação que o pai lhe deu, pelo ambiente que o circunda, pelos anos vividos sob um regime falocêntrico, segue os valores de masculinidade que lhe foram inculcados. É o típico cabeça de bagre – ou, em bom italiano, testa di cazzo (em tradução literal: cabeça de pênis), expressão em que o órgão masculino indica algo sem nenhuma importância.

Assim sendo, Ivano também, de alguma forma, é vítima, como Delia, por estarem ambos submetidos às convenções sociais, que determinam os papéis de cada um. Das quais não se subtrai nem Marisa, que aparenta ser mais livre, quando tacha o marido de bocó, por ser cordial. Deste modo, o que está sendo contestado é o status masculino com o qual muitos homens são coniventes, pelos “direitos” e pelo domínio sobre as mulheres que lhes é consentido.[11]

Como afirmou o psicólogo Jacopo Pampiani, ao incitar os homens a falar de violência e a fazer um mea culpa no que diz respeito a seu relacionamento com as mulheres: “Este filme fala também de mim enquanto homem, da herança masculina que me foi transmitida pelos homens, com a qual tenho de lidar. Se eu acredito mesmo que seja injusta a violência de gênero, é meu dever confrontar-me com este filme, de questionar-me e de fazer algo para mudar as coisas. Se não quiser fazer isso por mim, ao menos tenho de fazê-lo pelos meus filhos e pelo ensinamento e/ou modelo, que quero transmitir-lhes, de homem na sociedade de hoje”.

A preocupação do psicólogo quanto ao legado a ser deixado às futuras gerações vem ao encontro da dedicatória à própria filha que a diretora faz no filme e das inúmeras manifestações em que ela traça um elo entre o passado e o futuro da mulher, partindo de um ponto de vista hodierno, como na declaração feita a Rita Luzi: “O meu é um filme contemporâneo ambientado no passado: uma homenagem às histórias de minha avó, a qual, em seu pátio romano recolhia os desabafos resignados de muitas mulheres maltratadas pelos maridos-patrões. Quero que minha filha saiba de onde partimos e aonde temos de chegar. Desejo que aprenda a nunca tomar algo como certo. Nossas conquistas custaram lágrimas e sangue. Não se pode baixar a guarda”.

De volta à rotina de todos os dias, a dona de casa torna a cruzar com o militar norte-americano, o qual, ao perceber, mais uma vez, marcas de violência em seu corpo, se oferece para ajudá-la a sair daquela situação. Em seguida, há um novo encontro com Nino, que lhe comunica sua decisão de migrar para o Norte, em busca de melhores oportunidades, e pede-lhe para acompanhá-lo. Delia, porém, não lhe promete nada. No pátio do prédio, na presença de vizinhos, Giulio está aos pés de Marcella, demonstrando-lhe seu amor, replicando o pedido de Ivano quando conheceu sua futura esposa.

Entretida com o namoro, a moça esqueceu a panela com as batatas do jantar em cima do fogo, mas a mãe assume que as deixou queimar e apanha no lugar da filha. Filhos mudos na sala, vizinhas caladas lá fora. O marido sai de casa e Delia, na cozinha, prepara a sopa de leite para a prole. A filha, indignada, pergunta-lhe por que se deixa tratar feito um trapo inútil. No dormitório, recupera na cesta de lixo a folha de papel que amassou, a alisa e, pensativa, a esconde no fundo de uma caixinha em cima da cômoda.

No dia seguinte, ao entregar uma nova remessa de peças íntimas consertadas, a dona de casa vê na vitrine do armarinho um casaquinho e, depois de certa indecisão, o adquire, subtraindo 300 liras do dinheiro que deveria entregar ao marido. Mais um encontro com o norte-americano, feito só de olhares, e mais uma visita a Marisa na feira-livre, a quem pede que, no próximo domingo, se perguntarem por ela depois da missa, confirme que foi aplicar injeções. Em casa, enquanto ajeita o casaquinho na máquina de costura, fica de olho no namoro da filha.

Giulio não gostou que ela esteja pintada e pense em continuar trabalhando depois de casada, borra-lhe a maquiagem e a segura com força pelo pescoço. A mãe só observa e depois, tenta dissuadir Marcella do casamento, que é pelo resto da vida, lembra-lhe que ainda dá tempo de desistir, mas em vão. No pátio, os velhos falam do futuro casamento, comentando que até que os Moretti tiverem o bar, isso será bom para todos da família Santucci.

O bar, porém, explode. Depois do estrondo, William aparece e com o apito dá o alarme, assim que Delia, na calçada em frente, deixa a rua. A repercussão é grande no condomínio, fala-se da carga de TNT que acabou com o local e com as ilusões da família da noiva. Enquanto o pai reclama que pediram o anel de volta, a filha chora desconsolada e acusa a mãe, que continua costurando a máquina, de não fazer nada, mas isso é o que ela acha. À noite, o pátio está deserto. Delia está passando o casaquinho – começam os acordes de È la sera dei miracoli (1980) –, que colocará na bolsa junto com a correspondência recebida, o batom, uma quantia de dinheiro e um envelope no qual escreveu algo com muito esforço.

Sobe até o terraço para fumar o cigarro que Marisa lhe deu, enquanto o marido está jogando baralho, em algum canto por aí. Sobre seu rosto pensativo mas sereno, a voz de Lucio Dalla – cantando a cidade que coletivamente se movimenta em seus becos e jardins, com pessoas nos bares, o que cria uma atmosfera de comunhão – espalha-se por toda Roma, onde os cartazeiros continuam trabalhando;[12] jovens divertem-se ao ar livre; há gente nas ruas; diante do espelho, a dona do armarinho está cuidando do cabelo, a mãe de Giulio da pele do rosto; Nino está aprontando a mala; ela fuma, olha para a lua e sorri. Para Delia também é uma noite milagrosa, porque a decisão que tomou será uma surpresa para todos.

De manhã, enquanto pai e filhos já estão saindo de casa, a mãe vai dar uma espiada no sogro. Este faleceu, mas, para não atrapalhar seus planos (“Hoje, não!”, exclama), ela cobre-o como se estivesse dormindo e sai. No pátio, vizinhos comentam que estão indo votar; a família, porém, dirige-se à igreja para a missa. Alvaro, entrementes, resolve verificar se está tudo bem com Seu Ottorino e, ao dar-se conta do acontecido, gritando que o velho faleceu, sai em disparada em direção à igreja, onde o padre está recomendando aos pouquíssimos fieis presentes que naquele dia ajam de acordo com a própria consciência.

Delia está tentando desvincular-se da família para ir “aplicar as injeções”, mas a chegada de Alvaro frusta seu plano. Para sorte dela, o vizinho floreia as informações e continuará fazendo isso o tempo todo, assim ninguém saberá exatamente quando o sogro faleceu. Em mais uma cena patética (com um Valerio Mastandrea histriônico na medida certa), Ivano cai de joelhos nos degraus da igreja, invocando o pai, o que sublinha que ele está representando sua dor para os presentes.

No dormitório de Seu Ottorino, seu corpo está sendo velado e alguns homens presentes louvam o defunto, o que provoca alguns olhares de esguelha do filho, disfarçados, porque a representação da dor continua. Marcella está chorando, mas não a morte do avô e sim o fim de sua relação com Giulio. Os irmãozinhos já estão de olho no quarto que ficará vago.

Delia, que está servindo café a todos os presentes, está preocupada com o horário e com um provável desencontro com Marisa, o que provaria que ela mentiu. A amiga chega com o marido, as duas fingem espantar-se com a falta de coincidência e vão sentar-se ao lado do leito de morte de Seu Ottorino, não para lastimar seu falecimento, mas para enxovalhar sua memória.

A dona de casa confessa sua frustração por como transcorreu aquele dia e a feirante, achando que está deplorando uma malograda fuga romântica, diz que foi melhor assim, que tem que pensar nos filhos, o que, mais uma vez, demonstra que para Marisa as normas sociais são irreversíveis. Delia responde que está pensando exatamente na filha, mas que ainda lhe resta o dia de amanhã.

De fato, no dia seguinte, bem cedo, depois de velar o defunto, ela apaga a lamparina, atualiza o calendário móvel (é 3 de junho), deixa no criado mudo da Marcella um envelope que tira da bolsa, olha para os filhos adormecidos, como se estivesse se despedindo. Quando está prestes a sair, aparece Ivano, mas ela o convence de que vai aplicar injeções e ganhar algum dinheiro para que o sogro tenha um enterro digno. Ao fechar a porta atrás de si, não se dá conta de que um papel caiu no chão.

Ao cruzar com a zeladora, as duas se entreolham, e, na rua, a dona de casa aperta o passo – ao som de B.O.B. (Bombs Over Baghdad, 2000), da dupla norte-americana de rappers OutKast –, corre até um bar para se trocar (veste o casaquinho) e pintar os lábios, passa voando pela oficina fechada de Nino, sem nem olhá-la, e chega numa praça onde há uma grande aglomeração, sobretudo de mulheres sorridentes, muitíssimas de batom.[13]

Enquanto isso, no apartamento, Ivano encontra o papel: depois de lê-lo, amassa-o, atira-o no chão e sai célere atrás da fugitiva. Logo em seguida, Marcella acorda se depara com o envelope perto de sua cama, em que a mãe lhe deixou as 8.000 liras antes destinadas ao vestido de noiva, para seus estudos, contrariando a opinião do cônjuge para quem só os filhos homens tinham o direito de estudar. Ao encontrar o papel amassado no chão, a filha abre-o e imediatamente entende do que se trata.

Mãe depositando seu voto na urna

Diante da escola, o marido não consegue localizar a mulher; esta, ao dar-se conta de que perdeu o papel, não sabe o que fazer, mas percebe uma movimentação atrás de si: não se trata de Ivano e sim de Marcella que, sorridente,[14] lhe entrega a carta de convocação para a eleição.[15] É quando começam a ecoar as primeiras notas de uma canção, “Fatece largo che pass…”, mas não se trata do verso inicial da famosíssima La società dei magnaccioni[16]; trata-se do início de duas estrofes de A bocca chiusa (2013), uma exaltação do protesto, de Daniele Silvestri: “Fatece largo che / passa domani, che adesso non si può” (“Abram alas que / vai passar amanhã, pois agora não dá”) e “Fatece largo che / passa il corteo e se riempiono le strade” (Abram alas para / a passeata e as ruas ficam lotadas”).

E, enquanto na música se proclama que participação é liberdade e resistência – resistência pela fala, que se expressa mesmo com a língua cortada, porque ainda se pode cantar com a boca fechada –, as mulheres manifestam sua presença social, afirmam sua existência. Para não invalidar a cédula eleitoral, ao lacrá-la, tiram o batom da boca: a mãe de Giulio, a dona do armarinho, Delia, a qual, depois, satisfeita, no patamar da escada da escola, sorri para Marcella, mas também vê um Ivano ameaçador.

Não cede à tentação de fugir, mas desafia a ordem patriarcal cantando com a boca fechada. Seu canto solitário transforma-se num coro coletivo, de mulheres e também de homens, porque, como anotou a jornalista Anna Garofalo em 2 de junho de 1946: “As conversas que nascem entre homens e mulheres têm um tom diferente, paritário” (declaração reproduzida por Giorgia Serughetti).

E, assim, não há mais mistério algum: o conteúdo da correspondência endereçada a Delia foi revelado e ela, embora a princípio titubeante, resolve ser uma cidadã plena, fazer parte daquele pelotão de mulheres de 25 anos para cima que, em 2-3 de junho de 1946, pela primeira vez na Itália, tiveram o direito de votar e de serem votadas, de escolher, como os demais eleitores, o novo regime político (Monarquia ou República) e também, embora o filme o omita, de eleger os 556 membros (dentre os quais 21 mulheres) da assembleia encarregada de elaborar a nova constituição do país, que entrará em vigor em 1 de janeiro de 1948.[17]

Na opinião de Ezia Maccora, juíza do Tribunal de Milão: “O crescimento da consciência da própria condição de vida é construído com muito cuidado e eficiência. […] A descoberta do direito ao voto, à instrução e à liberdade, o respeito próprio e o amor pela filha são os momentos salientes do resgate social e cultural que Delia amadurece lentamente ao longo do filme, e nisso representa não apenas as muitas mulheres, de qualquer extração social, que no pós-guerra eram discriminadas e submissas, mas consegue veicular uma mensagem nítida a favor das mulheres que ainda hoje são discriminadas e maltratadas: buscar, a partir de si mesmas, a força para reagir e mudar o próprio destino a fim de que a emancipação engaje todas”.

Roma, junho de 1946, seção eleitoral

É o elogio dessa massa anônima de mulheres que, segundo Letizia Giangualano, atraiu o público[18]: “Já faz anos que nos empenhamos em trazer à luz histórias de mulheres extraordinárias que ficaram presas nas dobras da História. Ao lado delas, porém, sempre existiu uma multidão de mulheres comuns, silenciosas, que não saíram de seu lugar e de seu papel, mas, a partir daquelas gaiolas, foram parte ativa de uma resistência sólida e invisível. Mulheres sem voz, sem histórias, a não ser um ou outro caso curioso transmitido no âmbito familiar, mulheres que não saíram às ruas para reclamar seus direitos, mas que, ao aceitarem a opressão pelo bem de todos, ainda hoje nos ensinam que cada conquista, cada privilégio é parte de um caminho no qual cada ser invisível se torna massa na coletividade. Não sufragistas, mas eleitoras. É um canto para elas, este filme […]”.[19]

Um canto que saiu da “ordem do privado” para adquirir “uma dimensão pública, social, coletiva e política”, poderia se acrescentar, nas palavras de Chiara Lanini. Não foi uma conquista fácil, mas uma longa batalha que durou mais de meio século, no plano oficial, e continuou no plano pessoal, pois, como lembra Flavia Schiavo, a violência física e/ou simbólica “não era reconhecida como um problema político, cultural ou social, quando muito era uma questão privada a ser mantida entre quatro paredes”, como bem demonstra o filme com os vários exemplos de mulheres maltratadas e/ou caladas pelo marido ou por outro homem.

Nesse sentido, é importante que o passamento de Seu Ottorino aconteça logo no dia 2 de junho. Dentro da trama, tem a função de ameaçar a “emancipação” de Delia, mas, no plano simbólico seu falecimento significa a morte do patriarcado, do machismo, da misoginia alimentados por uma ditadura falocrática e violentíssima, com a qual a casa real Saboia havia se alinhado. Por isso era necessário que o velho regime (a Monarquia) morresse para que o novo (a República) pudesse nascer. E Paola Cortellesi acaba insinuando que a República foi uma escolha das mulheres. Se não foi exatamente assim, pela foto de Patellani parece inegável que a República Italiana nasceu mulher. Uma mulher jovem, sorridente e esperançosa.

Sobre registros de época e os créditos finais paira a voz de Angela McCluskey interpretando The little things (2016), acompanhada pelo duo instrumental norte-americano Big Gigantic, a qual, ao exaltar a importância das pequenas coisas na vida – “It’s the little things in life that I feel” –, resume a mensagem final do filme. Um filme que jogou sobre subtrações para surpreender o espectador menos familiarizado com o período em tela, relegando a detalhes quase insignificantes os antecedentes e a datação da virada final (ao passar rapidamente pelas pichações, ao não focalizar diretamente os cartazes que conclamavam a votar,[20] ao não fazer abertamente um discurso político-partidário, porque as mudanças nascem de dentro de cada um antes de confluírem para a coletividade). Um filme que optou por um desfecho heterodoxo, pois o tão aguardado “final feliz” foi político e não amoroso.

O reencontro de Delia e Nino, seguido, no mesmo dia, pela chegada da correspondência e, posteriormente, pela proposta de tentarem uma nova vida a dois, criou em muitos espectadores falsas expectativas de um “… e foram felizes para sempre”, injustificadas.[21] Ademais, essa solução tão característica da comédia romântica da década de 1950, iria de encontro à proposta de Ainda temos o amanhã.

Nesse gênero, segundo Renato Noguera, “a mulher é protagonista dentro de uma identidade discursiva feminina que a transforma em alguém que só poderá ser completamente validada socialmente se encontrar o seu par. […] ela não será completa sem um ‘homem’”. O discurso de Paola Cortellesi vai exatamente no sentido oposto, ou seja, fugir dos lugares comuns que determinam a priori como deverá ser uma relação. Lugares comuns que podem se revelar uma armadilha, que Delia conhece bem e da qual consegue subtrair Marcella, ao livrá-la de modo bombástico do casamento e apontar-lhe o caminho da emancipação. Isso num tom aparentemente bem popular, em que a dura realidade de Delia é contrabalançada por “momentos cômicos habilmente espalhados ao longo de todo o filme para aliviar a carga de um tema delicado e doloroso, sem (quase nunca) diminuir o alcance moral da obra e a dramaticidade dos acontecimentos tratados”, nas palavras de Simone Tommasi.[22]

Então como rotular esta primeira realização de Paola Cortellesi, se necessário for? Um drama, uma comédia? Se se pensar numa linha de continuidade, poderia ser classificada como uma comédia amarga, igual a Io la conoscevo bene (Conheço bem essa moça, 1965), desencantada reflexão de Antonio Pietrangeli, mestre da comédia à italiana,[23] sobre a condição feminina, que termina com o suicídio da protagonista. Isso levaria a considerar Ainda temos o amanhã um sopro de renovação no gênero cômico, sem desconsiderar possíveis diálogos com outras vertentes do cinema italiano, particularmente.

A própria diretora admitiu que nos primeiros oito minutos e meio filmados em formato 4/3 (janela clássica) quis reportar-se às produções do chamado Neorrealismo rosa, constantemente reprisadas na televisão, para mergulhar os espectadores, também graças ao uso do preto e branco, à cenografia, aos figurinos e outros adereços de época, na Itália de 1946. Em seguida adotou o formato 16/9 (formato padrão) e uma trilha sonora anacrônica, porque, embora busque “uma reconstrução histórica meticulosa”, não quis engendrar uma “operação nostálgica a todo custo”, como salientou Marcel Davinotti, apesar das imagens em preto em branco suscitadas pelas lembranças das história ouvidas na infância.[24]

Ainda temos o amanhã é um bom filme, talvez não seja uma obra-prima (o tempo dirá), mas é a “opera prima” (primeira realização) de uma diretora que tendo conquistando seu espaço na televisão, no teatro e no cinema de seu país como apresentadora, atriz, roteirista etc., ensejou seu pulo do gato, alfinetando a sociedade italiana. E um gato, como se sabe, costuma cair de pé.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros textos, de “O cinema italiano contemporâneo”, que integra o volume Cinema mundial contemporâneo (Papirus).

Referências


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Notas


[1] Trata-se de Aprite le finestre, de Pinchi (letra) e Virgilio Panzuti (melodia), na interpretação de Fiorella Bini (1956). Embora a ação do filme se passe dez anos antes, a canção revela-se adequada, pois a música popular italiana seguia ainda modelos de décadas anteriores. Em todo caso, em meados dos anos 1950, alguns compositores já abriam caminho para uma vertente de sua renovação, a dos cantautori (cantautores), que se afirmará no início da década seguinte. Paralelamente, na esteira dos blues shouters norte-americanos, na passagem dos anos 1950 para os 1960, surgem os chamados urlatori (“berradores, em tradução literal), que propunham um rock and roll mais moderado. A difusão dos primeiros juke-boxes impulsionou o sucesso desses jovens cantores (Tony Dallara, Adriano Celentano, Mina etc.), na época os que mais se contrapunham aos intérpretes melódicos tradicionais, entre os quais Achille Togliani, presente no filme. Segundo o verbete “musica” da enciclopédia Treccani, “a verdadeira “‘revolução’” se deu em 1958, quando Domenico Modugno, com Nel blu dipinto di blu (mundialmente conhecida como Volare), consagrou a música popular italiana fora das fronteiras do país.

[2] Isso diz respeito sobretudo às canções que funcionam como uma espécie de subtexto e que são citadas ao longo deste trabalho, mas a trilha sonora é integrada também pelas músicas originais do compositor Lele Marchitelli (Irrequietezza, La lettera, Ansia e dolore, C’è ancora domani) e por Swinging on the right side e Tu sei il mio grande amor, de Lorenzo Maffia e Alessandro La Corte.

[3] Refiro-me à sequência final de Bianca (Bianca, 1984), quando Michele Apicella abre a cortina de uma janela da sala do delegado que o está interrogando. Como o ambiente é semienterrado, a câmera passa a focalizar um vai-e-vem contínuo de pernas.

[4] Flavia Schiavo fez um levantamento das locações, a maioria situadas no bairro Testaccio: o condomínio popular, na rua Bodoni, 98; o ponto de bloqueio da military police, na via Flavio Gioia; o antigo mercado do Testaccio reconstruído, na praça Testaccio; a oficina mecânica de Nino, na rua Monte Testaccio; as lojas diante das quais as mulheres fazem fila para receber os alimentos racionados, na rua Antonio Cecchi; o bar Moretti (num local histórico, de 1914), na rua Amerigo Vespucci, 35. Alguma estão localizadas em outras regiões da cidade: no bairro Monti, a fachada da casa do tabelião em que a dona de casa aplica injeções é a de um prédio da via della Madonna dei Monti, mas as sequências internas foram realizadas, no bairro Prati, num antigo apartamento da via Cola di Rienzo; no bairro Parioli, o armarinho, na via Locchi, 4; no bairro Torpignattara, a loja de guarda-chuvas e o local em que o marido e os amigos jogam cartas; no bairro Trastevere, os lugares do namoro de Delia e Ivano, e a igreja de Santa Maria in Cappella, onde casaram; no bairro Monteverde, o ex-hospital Carlo Forlanini com a cenográfica escadaria de sua morgue transformados na seção eleitoral; no bairro Sant’Angelo, a igreja Santa Caterina dei Funari, onde a família Santucci assiste à missa. A variedade das locações permitiu driblar as inevitáveis modernizações que mesmo uma cidade histórica como Roma sofreu e tentar recuperar o clima dos anos 1940. O mesmo cuidado esteve presente nos figurinos, nos penteados, nos adereços, nos letreiros das lojas, nos meios de transporte, no mobiliário e no cenário da humilde moradia de Delia toda construída num estúdio de Cinecittà.

[5] A dúvida surgiu num grupo do Facebook, “Roma città aperta – Gli anni della guerra”, mas não foi dirimida. Em todo caso, no site da “Fondazione Cinema per Roma”, há um depoimento do ator Franco Interlenghi, que lembra da presença da military police pelas ruas de Roma, em outubro de 1945, quando estava sendo rodado Sciuscià (Vítimas da tormenta), de Vittorio De Sica.

[6] Trata-se da sequência em que Cleo e Adela, para alcançarem uma lanchonete, correm pelo centro da cidade, captada em seus detalhes pela câmera que acompanha a corrida das duas empregadas domésticas.

[7] Fica algo descabido o comentário de Inácio Araujo, que desqualifica o filme do ponto de vista cinematográfico, ao dar a entender que, neste caso, a arte teria sido substituída pela ideologia.

[8] É a sequência na qual, no terraço do prédio, Gabriele, um radialista homossexual, ajuda a dona de casa Antonietta a recolher a roupa do varal, que esta guarda na tina trazida de seu apartamento. O que irmana os dois filmes, é antes a capacidade de reproduzir a atmosfera de uma época, resgatando pequenos gestos do cotidiano, que foram se perdendo com o tempo.

[9] Em todo caso, Belíssima, como declarou a diretora a Arianna Colzi, “foi uma fonte de inspiração para as ambientações do filme”.

[10] Para outras informações sobre L’amorosa menzogna, ver artigo de minha autoria em que analiso os primeiros filmes de Antonioni.

[11] O psicanalista Rafael Kalaf Cossi salientou que, segundo a antropóloga cultural Gayle Rubin, o falo é “a encarnação do status masculino, com o qual os homens consentem, e do qual certos direitos são parte inerente – entre outros, o direito a uma mulher. É uma expressão do domínio masculino”.

[12] Embora seja apenas uma tomada curtíssima, os cartazeiros, com seus veículos e uniformes, trazem à lembrança Ladri di biciclette (Ladrões de bicicleta, 1948), de Vittorio De Sica.

[13] Se a mulher, como diz Flavia Schiavo, é “objeto de controle (sobre seu corpo, suas ações e seus comportamentos, quem sabe sobre seus sonhos, abafados pelos maus tratos)”, constantemente submetida ao “juízo social”, então ela tem de “emancipar-se do papel a que foi relegada e obrigada pela sociedade. O batom, no filme simboliza logo este impulso evolutivo e emancipador”, na opinião da psicóloga Simona Colamartino. E poderiam ser acrescentados também os cigarros que Delia fuma às escondidas.

[14] Esse momento é importante, porque, dentro da trama do filme, é a primeira vez que Delia e Marcella se conectam de forma positiva. Na opinião de Simona Colamartino: “a relação mãe-filha chama a atenção sobre a herança emotiva e a transmissão intergeracional do que foi vivido, não apenas traumaticamente, como os abusos aos quais os menores estão expostos, mas também dos valores e papéis familiares. Através da ligação com a filha se dá a tomada de consciência de uma mulher que achava que não tinha querer, não valia mais nada, não tinha mais tempo, enquanto vê na filha a luz da mudança e da esperança. Assim encontra tempo para realizar escolhas para si mesma e para as gerações sucessivas. É essa cumplicidade entre mulheres que liberta dos grilhões”.

[15] Na Itália, outrora, todo cidadão apto a votar recebia uma carta de convocação pelo correio e, depois do voto, era-lhe entregue um certificado eleitoral; só a partir do ano 2000 foi adotado o título de eleitor (tessera elettorale), no qual fica registrado também o comparecimento às urnas. Ainda hoje, vota-se em dois dias consecutivos, em geral no domingo e na segunda-feira, mas pode variar. Por isso Delia, não podendo comparecer à seção eleitoral no primeiro dia, sabe que, no dia seguinte, ainda dará tempo.

[16] La società dei magnaccioni(A sociedade dos apreciadores da boa mesa, em tradução literal), é um hino à Roma popular, uma exaltação atrevida dos hábitos de seus habitantes, gravada em 1962, mas provavelmente de origem mais antiga; seu verso inicial diz: “Fatece largo che passamo noi” (“Abram alas que nós vamos passar”). Sua presença destoaria do tom do filme, pois se trata de uma exaltação popularesca e não de uma contestação; mais um drible da diretora.

[17] Dos quase 25 milhões de eleitores que compareceram às urnas, cerca de 13 milhões eram mulheres. Embora o decreto que sancionou o voto feminino seja de 10 de março de 1946, a tramitação havia iniciado catorze meses antes, por isso, no filme, as constantes referências feitas por homens a certa agitação das mulheres no último ano. O caminho percorrido pelo direito ao voto, contudo, foi mais longo, iniciando-se a cavaleiro do século XX, segundo Matteo Dalena.

[18] Entre 26 e 29 de outubro de 2023, semana de seu lançamento, o filme registrou bilheteria de € 1.656.742. Em São Paulo, estreou no dia 4 de julho de 2024 e continua em cartaz, provavelmente graças ao boca a boca, pois a crítica local não se ocupou muito dele. Segundo Maria Rosaria Di Giacinto, o segredo do sucesso do filme está na habilidade intuitiva da diretora em “tratar um tema tão delicado e dramático com pontas de leveza e ironia”, como apontaram alguns críticos. Para mais dados sobre sua repercussão, especialmente na Itália, ver o site da Wikipedia.

[19] “A narrativa é permeada por uma perspectiva que valoriza a história a partir de baixo, enfocando as experiências das pessoas comuns e suas lutas cotidianas”, afirma também Erik Chiconelli Gomes em artigo publicado neste site, em que analisa a importância de Ainda temos o amanhã à luz dos historiadores Joan Scott, Sheila Rowbotham e Eric Hobsbawn.

[20] Em entrevista a Barbara Marengo, a cenógrafa Paola Comencini explicou que os cartazes relativos ao referendum de 1946 não puderam ser exibidos por causa dos direitos autorais. O impedimento favoreceu certo clima de suspense criado pela realização.

[21] Para Inácio Araujo, “é difícil engolir um roteiro que se dispõe a iludir o espectador com insinuações de romance extraconjugal para poder saltar à questão central do filme, que, aliás, nem tinha sido proposta até ali”. É uma leitura equivocada, uma vez que, pelo encadeamento dos dois fatos ocorridos no mesmo dia, não teria dado tempo de Nino, depois do encontro, escrever e postar uma carta para Delia, a qual, aliás, nem na primeira, nem na segunda ocasião, alimenta as esperanças do mecânico. Quanto à questão central, o grande ponto de virada do filme, é claro que ela foi escamoteada para não estragar o elemento surpresa, mas vários indícios foram semeados aqui e ali, anunciando-a desde o início: o calendário móvel de seu Ottorino, as pichações nos muros de Roma, a atividade dos cartazeiros que incomoda o patriarca Moretti, os resmungos masculinos contra certas ideias das mulheres, a advertência do pároco, está tudo lá.

[22] Nos dizeres de Federica D’Alessio, Ainda temos o amanhã é um “filme de alma fortemente popular, primeiro trabalho de direção de uma artista que cresceu no cinema, também com uma cultura cinematográfica fortemente marcada pelo caráter popular”. Essa afirmação encontra sua complementação na opinião de Mariantonietta Losanno sobre Paola Cortellesi: “Sua estreia na direção parece ser a síntese de uma reflexão pregressa e nunca interrompida, manifestada em mais de uma ocasião. […] Pensamos […] na sua filmografia, na exploração das dinâmicas do desejo feminino em Qualcosa di nuovo (2016, dirigido por Cristina Comencini e interpretado pela dupla Cortellesi-Ramazzotti), na representação do cérebro “de volta” – depois de ter “dado fuga” – em Scusate se esisto! (2014), ou na guerra contra a precariedade do trabalho em Ma cosa ci dice il cervello (2019), ambos dirigidos por Riccardo Milani. Ainda temos o amanhã parece ser o compêndio – não em termos de simplificação – de um discurso iniciado faz tempo e de uma urgência agora improrrogável: um ponto de chegada e um de partida. De chegada porque nasce, logo, de pensamentos já expressos em precedência cinematograficamente ou não, e de partida porque se trata de uma primeira contribuição em termos de direção. Paola Cortellesi opera no campo da comédia à italiana com uma sensibilidade que se manifesta no plano estilístico não menos do que no temático”. A futura diretora foi uma das roteiristas de Qualcosa di nuovo (Algo de novo), no qual atuou ao lado de Micaela Ramazzotti, e dos dois filmes dirigidos por seu marido Riccardo Milani: Scusate se esisto! (Desculpe a minha existência) e Ma cosa ci dice il cervello (Mamãe é uma espiã). Sua atividade como roteirista sempre foi compartilhada, como no caso de Ainda temos o amanhã, em que contou com a colaboração de Giulia Calenda e Furio Andreotti.

[23] Segundo Mariantonietta Losanno: “A comédia à italiana foi a filha algo degenerada do Neorrealismo, nascida como ‘pacificadora’ (o Neorrealismo rosa), testemunha de uma Itália reconfortada e provincial, pouco atrelada à realidade. Depois cresceu, cavou fundo, tornou-se inquietante: de consoladora passou frequentemente a provocadora. É nessa direção que Cortellesi trabalhou: rumo a uma comédia na qual, por trás da herança do Neorrealismo e da sátira da comédia à italiana, transparece o conto alegórico, a fábula. A diretora não renuncia às suas licenças humorísticas, ao contrário, modula de forma equilibrada motivos históricos e sociais, políticos e existenciais, culturais e cinematográficos, harmonizados no registro de um melancólico mas eficaz humorismo crítico.

[24] Paola Cortellesi não quis emular o Neorrealismo nem pelo uso do preto e branco, nem por outro motivo qualquer, porque, para ser neorrealista seu filme deveria ter sido rodado no calor da hora. Ademais, o diálogo com outras cinematografias mais modernas e o recurso constante a músicas anacrônicas, como já referido, lembram o tempo inteiro aos espectadores a partir de que época a diretora está engendrando seu discurso.


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