Anita— história de um romance

Roy Lichtenstein, Pincelada, escultura em alumínio e tinta, 1962
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Por FLÁVIO AGUIAR*

Um romance sobre a liberdade das paixões, e sobre a paixão pela liberdade

A Ivana Jinkings, heroína do mundo editorial brasileiro.

1.

Meu primeiro contato mais próximo – hoje diríamos um contato imediato do terceiro grau  –  com a história de Anita e Giuseppe Garibaldi se deu por volta dos meus 14 ou 15 anos, em 1961 ou 1962. Eu estava empolgado pelo que fora o Movimento da Legalidade, liderado por Leonel Brizola, para garantir a posse de João Goulart na presidência da República, pelas ideias de resistência e liberdade. Além disto, começava a me iniciar na literatura dita para adultos.

Já era um leitor contumaz, tendo devorado toda a obra de Monteiro Lobato para crianças, partes de As mil e uma noites, todas as aventuras da série dos Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, todas as aventuras de Sherlock Holmes, as de Tarzan, dentre muitos outros livros. Era um leitor contumaz da Coleção Amarela, onde pontificava a estrela de Edgar Wallace, de romances policiais de todos os tipos e quadrantes, do Mistério Magazine de Ellery Queen, dos quadrinhos da Edição Maravilhosa e da Epopeia, além de frequentador assíduo das matinês domingueiras dos cines Capitólio e Marabá, recheadas de faroestes, piratarias, filmes de capa e espada ou de guerra, como se dizia então.

Nestas matinês havia também melodramas, que nós, a gurizada, detestávamos, e chamávamos pejorativamente de filmes de amor, mas que faziam parte do clima, e tiveram sua parte na minha paixão garibalda adolescente. Há pouco ganhara de presente, dado por um primo mais velho, um exemplar do romance Spartacus, Espartáco em português, do escritor norte-americano Howard Fast.
Foi no meio deste redemoinho de aventuras que um dia comprei, com o dinheiro de minha mesada, um exemplar das Memórias de Garibaldi, na antiga Livraria Vitória, na popular Rua da Praia, no hoje chamado Centro Histórico da capital dos gaúchos.

Um aparte: a livraria pertencia ao saudoso Arnaldo Campos, que conheci e com quem mantive amizade. Ele tinha fama de comunista. No mínimo era de esquerda, mas de uma esquerda muito especial. Quem comprasse um exemplar de O capital ganhava de brinde um exemplar da Bíblia! Ao ler os capítulos iniciais do livro, fiquei imediatamente fascinado. Ali estavam os antepassados gaúchos e Farroupilhas, que eu já conhecera um pouco através da leitura de livros didáticos de história, com descrições um tanto pálidas. Eles eram retratados agora com as tintas idealizadas de um aventureiro romântico. Eram chamados de “os melhores cavaleiros do mundo”, eram bravos, destemidos, e lutavam na companhia dos valentes carbonários italianos, liderados pelo caudilho Giuseppe Garibaldi e dirigidos pelo revolucionário Giuseppe Mazzini, desde a para mim mítica Londres, todos canonizados pela aura do exílio.

Outro aparte: que faziam ali, no meio do “meu” pampa, aqueles carbonários da distante Itália? Só mais tarde elucidei a questão. Pertenciam à organização Giovine Italia, Jovem Itália”, liderada por Mazzini, que lutava pela unificação italiana, dominada pelos austríacos ao norte, pelo Papa no centro e pelos Bourbon no sul. A monarquia brasileira era aliada dos Habsburgo austríacos. Então, lutar contra a Corte e o Império do Rio de Janeiro era também lutar contra Viena!

Havia a descrição de feitos espantosos, como o transporte de dois navios de guerra da Lagoa dos Patos para o oceano, através do pampa e do inverno, puxados cada um por cinquenta juntas de bois.

Pairava também sobre eles um matiz de melancolia e infortúnio. Não raro, apesar da bravura, desperdiçavam oportunidades, entre derrotas, hesitações e naufrágios. Um daqueles barcos que atravessara o pampa naufragara em meio a uma tempestade na costa catarinense, levando consigo dezenas de mortos, inclusive de muitos italianos.

Havia sacrifícios pungentes, como os do norte-americano John Griggs, estraçalhado pela artilharia imperial no combate da Barra de Laguna, em Santa Catarina, e do italiano Luigi Rossetti, o sofisticado, inteligente e libertário, redator do jornal oficial dos rebeldes, O Povo, caído enfrentando sozinho o inimigo, perto de Setembrina, hoje município de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre. Rossetti fora quem apresentara Garibaldi a Bento Gonçalves e ao Conde Tito Lívio Zambeccari, outro carbonário, ambos presos no Rio de Janeiro.

A cereja do bolo deste quadro digno do pincel de um Eugène Delacroix (como em La Liberté Guidand le Peuple, de 1830, ou em Scène des Massacres de Scio, de 1824) era, decididamente, a história da paixão de Ana de Jesus Ribeiro, que se tornaria Anita, e do caudilho Garibaldi. Esta paixão de desmedido padrão romântico os conduziria através do labirinto da revolta rio-grandense, da defesa de Montevidéu contra as forças de Oribe e Rosas (quando por um momento Garibaldi contou com a ajuda de seu antigo adversário na Batalha de Laguna, o almirante Mariath) e da luta pela libertação e unificação da futura Itália, chamada de Risorgimento).

Embora faça breve referência à morte posterior de Anita, a narrativa das Memórias se detém em 2 de julho de 1849, quando Garibaldi, com alguns milhares de seguidores, tendo Anita a cavalo a seu lado, vestida de homem” (sic), abandona Roma em direção ao norte, na tentativa frustrada de alcançar Veneza, que ainda resistia aos austríacos aliados do Papa, como os franceses que atacavam a futura capital italiana para restabelecer o domínio da Santa Sé sobre ela.

E toda esta narrativa épica, com momentos de lirismo, também romântica e algo melodramática, vinha sob a chancela de um de meus heróis literários (aliás, até hoje) dos mais preferidos, Alexandre Dumas, Pére! Garibaldi e Anita passavam a ocupar o Panteão de alguns de meus heróis favoritos, como D’Artagnan e Constance Bonacieux, Edmond Dantès e Haydée Tebelen. Devo assinalar que nestas Memórias também tomei contato, pela primeira vez, com um personagem que, depois, no meu romance, viria para o primeiro plano: Andrés Aguiar, dito O Negro ou O Mouro de Garibaldi.

Esta leitura emblemática se incrustou em minha memória de modo indelével. Com a adesão posterior à “carreira” de escritor, ela só fez crescer. Veio a ocupar o primeiro plano de minha imaginação a partir do começo dos anos 90 do século passado, quando tomei a decisão: eu tinha de escrever algo a respeito.

2.

Sim, tinha, mas o quê e sobretudo como? Minhas primeiras navegações nesta área me levaram na direção de um conto. Um escritor, meu sósia ficcional, se deixava embalar e tomar pela história do par romântico e revolucionário e partia em busca de traços dela em locais remotos, no planalto gaúcho e catarinense, nas serras em torno do rio das Antas, na restinga arenosa que, entre a Lagoa dos Patos e o oceano, através “da praia mais longa do mundo” une os municípios do litoral norte do Rio Grande do Sul a São José do Norte, na Barra da Lagoa.

Encontrando vestígios aqui e ali, como velhos botões de farda, lâminas enferrujadas de antigas facas e outros objetos do gênero, o escritor vai se fixando cada vez mais na personagem Anita e ao mesmo tempo vai se perdendo entre o delírio e a confusão, terminando por desaparecer sem deixar traço. Suspeita-se que sumiu em direção ao passado, o que daria um toque fantástico à narrativa. Outras vezes eu me empolgava, imaginando o começo de um filme. Na sua abertura, aparecia um campo gélido onde caía neve. Através do cenário embaralhado pelos flocos, emergia uma coluna a cavalo, liderada por um cavaleiro ruivo e barbudo (Garibaldi) e o letreiro: Brazil, Southern High Plateau, 1839, como se fosse um filme produzido nos Estados Unidos, com Robert Redford no papel principal, mas com Gloria Pires no papel de Anita, destoando do cenário kitsch-hollywoodiano.

Eram ideias algo destrambelhadas que, felizmente, não prosperaram, embora a primeira, a do conto, ainda guarde algum charme para mim. Através delas me convenci de que meu alvo principal era Anita, não Giuseppe, embora, claro, este fosse um coadjuvante indispensável. Mas permaneciam de pé as perguntas: o quê e como escrever. Comecei a ler sobre o tema. Na bibliografia que anexei ao final do romance, estão listados 19 livros que me ajudaram diretamente a moldar os e as personagens do romance.

Na verdade, li muito mais. Aqui me limitarei a referir-me aos que me inauguraram caminhos. Também vi muita coisa, ao vivo ou através da memória. Mas a fonte mais importante para o romance foi a leitura. Ressalto que, na época, não havia ainda a biografia Anita Garibaldi, uma heroína brasileira, de Paulo Markun, livro que sintetizou muito do que antes se escrevera sobre ela, lançado apenas em 1999, ao mesmo tempo que o romance.

A primeira fonte impactante foi a biografia escrita por Wofgang Ludwig Rau, Anita Garibaldi, o perfil de uma heroína brasileira, na edição de 1975. Foi o primeiro relato abrangente sobre as vicissitudes de sua vida que encontrei, redigido meticulosamente, com método e farto em documentação. Fui complementando esta leitura com outras, históricas ou ficcionais. Saltou-me aos olhos a constatação de que algumas vezes nestas narrativas ficção e história se misturavam.

Por exemplo: li o romance italiano La donna del generale, uma ficção epistolar em que Anita escreve cartas sobre suas aventuras para sua família que permanece em Laguna, cuja autora, também chamada Anita Garibaldi, é bisneta do casal. Qual não foi minha surpresa quando, prosseguindo nas leituras, deparei com a obra de um historiador que citava estas cartas como se fossem, de fato, escritas pela heroína de dois mundos”!

Percebi uma tônica nos livros, por vezes discreta como um baixo contínuo de uma peça musical barroca, outras vezes mais saliente como um primeiro violino: o cabeça ideológico do casal era o caudilho; Anita se tornara uma guerreira e heroína apenas “por amor”, imagem que convinha a uma leitura conservadora da presença feminina e que aliás, fora o título de um livro publicado sobre ela em 1949.

Mas junto vieram indícios e referências de que as coisas não eram bem assim. Ana Maria de Jesus Ribeiro vinha de uma família onde havia gente com simpatias pela causa dos rebeldes rio-grandenses. Fora tocada, portanto, por este vírus da rebeldia. Incorporara-o. Encontrei relatos, talvez algo lendários, quem sabe históricos, que a diziam ser anti-escravista: onde há fumaça, há fogo, diz o ditado. Seu primeiro marido, Manuel Duarte de Aguiar, sapateiro, fora simpático aos imperiais, parte da desavença entre os dois.

Certamente o que unira Giuseppe e Ana fora uma paixão avassaladora, e mútua. Mas isto, se era necessário, era insuficiente para explicar o comportamento dela. Ana assumiria uma nova identidade: Anita, diminutivo italiano para seu nome, que, por sua conta, virou nome próprio e com vida própria depois. Muitas vezes participou – mesmo contra a vontade manifesta de Giuseppe – das escaramuças e dos combates que tiveram pela frente, fluviais, marítimos ou em terra, sempre revelando, até quando sozinha, uma determinação férrea e indômita, tanto na sua fuga no planalto catarinense, quando pensava que Giuseppe poderia estar morto, quanto na sua fuga em Mostardas, com o filho recém-nascido, quando embebedou os soldados imperiais que a guardavam e saiu pelo pampa a cavalo com o menino de poucos dias nos braços.

Na futura Itália, deixou Nizza (hoje a francesa Nice) e foi para Roma lutar com Garibaldi e os resistentes, atravessando as linhas inimigas com grande risco de vida. Não, as atitudes desta mulher valorosa não cabiam na imagem de uma pessoa simplesmente atordoada ou iluminada por uma “paixonite” poderosa mas no fundo limitante de seu discernimento e independência. Ao invés, devia tratar-se mesmo da grande paixão de corpos e almas que se encontravam em torno do desejo mútuo e também de um ideal comum.

No momento em que eu chegava a esta conclusão, encontrei, na seção de livros raros da Biblioteca Florestan Fernandes, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o livro que foi fundamental para redigir o romance: a biografia – La vita di Giuseppe Garibaldi de Gustavo Sacerdote, publicada em 1933. Houve uma conjunção de motivos para que isto acontecesse.

3.

Eu não queria escrever uma biografia romanceada da Anita. Eu queria escrever um romance histórico. Permanecia com a ideia lukacsiana de que a melhor chave para um romance deste tipo é colocar personagens secundários no primeiro plano e os protagonistas históricos no segundo. Mas que personagens?, eu me perguntava.

No livro de Gustavo Sacerdote encontrei a lista dos legionários italianos que regressaram ou foram para a futura Itália com Garibaldi, em 1848/1849. Alguns destes legionários não eram italianos. Havia Ignacio Bueno, uruguaio. Voltei a encontrar Andrés Aguiar (com uma fotografia dele), Il Moro di Garibaldi. E havia um misterioso José da Costa, a que Garibaldi se refere numa de suas cartas como il mulatto Costa”, dizendo que ele era feroz no combate e que desafiava os inimigos de viva voz. E é tudo o que se sabe dele.

Pronto, eu me disse: descobri o personagem perfeito. Ele é histórico, estava lá, mas é quase uma página em branco: um convite à imaginação e à ficção. Vou contar a história dele, e da relação dele com Garibaldi e… com Anita. Andrés Aguiar também era um personagem tentador. Mas dele se sabe quase tudo. Era escravo liberto de um oficial uruguaio, que lhe dera o nome de família e, além disto, o dera” a Garibaldi. Tornara-se uma espécie de guarda-costas dele e de Anita. Tinha caráter jovial, tratava bem as crianças, lutara em Roma e morrera heroicamente, varado por uma bala ou um estilhaço de granada, conforme a versão, de 29 para 30 de junho de 1849. Há vários quadros que pintam sua morte, ou seu cadáver.

Este foi outro detalhe importante. Além de trazer enorme documentação sobre Garibaldi e o Risorgimento, o volumoso livro de Gustavo Sacerdote traz farta iconografia sobre sua biografia e as lutas garibaldinas. Supria ele uma deficiência minha: estivera na Itália uma única vez, em 1989, mais especificamente em Roma e arredores, e desconhecia vários dos lugares por onde Garibaldi e Anita tinham andado. Quanto ao Brasil, o livro de Gustavo Sacerdote tinha algumas deficiências, apresentando, por exemplo, imagens de índios mais ou menos amazônicos misturados com o pampa e o planalto sulino. Mas neste particular eu me supria com outras fontes e meu conhecimento particular.

Foi assim que eu me convenci que tinha na cabeça, no coração e nas mãos motivos para escrever aquilo que, na quarta capa da edição da Boitempo, Luís Fernando Veríssimo chamou de “um romanção”: “(…)trazendo um personagem secundário – um coadjuvante – na vida de Anita para o primeiro plano, ele o coloca ao lado do leitor, como um companheiro de viagem e confidente, nesta louca e admirável aventura por dois mundos. Aguiar contando Costa contando Anita, vidas que deram um romanção. Prepare-se para ser fascinado”.

Tinha eu assim um alvo, Anita; um protagonista ao mesmo tempo histórico e livre para a imaginação, Costa; e tomei das fontes históricas ou criei vários coadjuvantes, além do próprio Garibaldi. Dou alguns exemplos. Históricos: o já mencionado Luigi Rossetti, intelectual revolucionário e refinado; o general Netto, proclamador da República Riograndense; o coronel Joaquim Teixeira Nunes, alcunhado “O Gavião”, comandante das duas Brigadas de Lanceiros Negros do Exército Farrapo, odiado e jurado de morte pelos imperiais, que afinal conseguiram assassina-lo em 28 de novembro de 1844.

Digo “assassina-lo” porque foi degolado quando já estava ferido e prisioneiro da tropa que o perseguia, tamanho era o ódio que lhe devotavam; o padre Ugo Bassi, revolucionário italiano, condenado à morte e executado pelos austríacos perto de Bolonha, em 8 de agosto de 1849.

Ficcionais: o Sargento Charrua, ex-índio charrua obcecado pela ideia de “encontrar uma pátria”; e toda uma galeria de personagens femininas, a começar pela mãe do Costa, escrava trazida da África para Recife, no Brasil, onde o protagonista cresceu e onde vem a morrer, durante a manifestação histórica de 30 de setembro de 1866, quando estudantes republicanos e abolicionistas acorreram ao centro da cidade e enfrentaram a cavalaria imperial; na sequência, do alto de uma sacada do prédio onde funcionava um jornal da cidade, o poeta Castro Alves declamou de improviso seu célebre poema em que diz que “a praça é do povo, como o céu é do condor”; também aparece ali uma neta sua, Ana Guadelupe, que recolheu um suposto manuscrito, origem e fundamentação da narrativa.

Bem, eu tinha tudo: protagonistas, coadjuvantes, um manuscrito sobrevivente, uma linha narrativa para desenovelar, mas… qual seria o leitmotiv desta narrativa, o nó, núcleo, semente de uma reflexão, que faria desta narrativa um romance, a matriz de uma experiência individual ou várias experiências individuais retidas num memorável, espelhando uma condição coletiva de vida num determinado contexto cultural, social, histórico?

4.

Encontrei-o ao desfolhar a vida da Anita, e do Giuseppe vistas pelo Costa, como se fosse uma estrutura simultânea, onde se possa ver o começo, o meio e o fim de um único golpe de vista. São personagens que optam por mudar suas vidas, em várias ocasiões, chegando ao ponto de mudar de identidades, como Ana de Jesus que vira Anita; Giuseppe, que de guerrilheiro fracassado passa a herói nacional e a consagrado parlamentar italiano e europeu; Costa, que começa seus dias como um menino fugido da escravidão e termina-os como um empresário supostamente francês que se estabelece no Brasil.

Ao mesmo tempo, optam por tentar mudar o mundo em que vivem, lutando por seus ideais seja no Brasil, no Uruguai ou na Europa. De certo modo, conseguem que o mundo mude, mas não do jeito como imaginavam. Ou seja, fazem um movimento pensando em ir de A a B, digamos, mas terminam chegando às incógnitas algo inesperadas X, Y ou Z. É a aceitação desta indeterminação dos movimentos que transforma suas trajetórias em experiência, em algo que pode ser contado e retido pela memória, como quer Walter Benjamin em seu ensaio O narrador”.

Nestes movimentos insuspeitos, a experiência da narração sempre nos faz ir ao encontro de uma sensação em que se misturam ganho e perda, como aquela que experimenta a personagem Ana Guadelupe, neta do Costa, ao final do romance, quando ela encontra um lenço que este tomara da mão da Anita que conhecera e perdera: “Algumas moscas importunas foram pousar na face do morto. Ela então reparou que do bolso da sobrecasaca que o vestia despontava um lenço. Num gesto de instinto ela o tomou e cobriu-lhe a face, como para poupa-lo do incômodo. Ao fazer isso, viu que o lenço tinha as iniciais AG, bordadas em vermelho, num dos cantos. Sentiu-se confortada pela delicadeza dele ter mandado bordar um lenço com as suas iniciais: Ana Guadelupe. Só depois de ler o manuscrito é que compreendeu o verdadeiro sentido das letras. Mas o lenço fora para o túmulo do padrinho, levando consigo, e para sempre, o seu segredo”.

Dito isto, só resta dizer, em homenagem a todas e todos personagens deste romance, sejam os históricos, sejam os ficcionais: este é um romance sobre a liberdade das paixões, e sobre a paixão pela liberdade.

Muito obrigado.[1]

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

Ensaio apresentado como comunicação na mesa “História, Identidade e Literatura”, do Colóquio Internacional dos 200 Anos de Anita Garibaldi, organizado pela Fundação Catarinense de Cultura, em 11 de agosto de 2021.

Referência


Flávio Aguiar. Anita: romance. São Paulo, Boitempo, 1999, 332 págs. [https://amzn.to/4fQbf8D]

Nota


[1] Me dei conta de que meu romance Anita (Prêmio Jabuti 2000), pubicado em 1999, está completando 25 anos de lançamento, pela Boitempo Editorial. Para comemorar a data, divulgo este ensaio, escrito em 2021, por ocasião dos 200 anos do nascimento de Anita Garibaldi.

No mais das vezes um romance tem um autor individual. Mas isto não quer dizer que seja sempre uma aventura solitária. Pode ser solidária. No caso de Anita recebi a ajuda, através de sugestões sobre a escrita, acesso a fontes ou de outras maneiras, das seguintes pessoas: In Memoriam: Meu irmão Rogério Wolf de Aguiar. Historiadora Sandra Jatahy Pesavento, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Ulrich (Uli) Fleischmann, do Lateinamerika Institut, Freie Universität Berlin. E mais: Zinka Ziebell, Valter de Almeida Freitas, Sandra Guardini T. Vasconcelos, Rejane Coutinho, Mauro Marcelo, Marlene Petrus Angelides, João Roberto Faria, Iole de Freitas, Druck Isabel Florentino.


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