Antropofagismo político

Imagem: Cien Nguyen
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Por MARCELO BARBOZA DUARTE*

Práticas simbólicas e figuradas como instrumentos de apropriação do outro e de suas qualidades

1.

A prática do antropofagismo no sentido literal da palavra assim como no sentido simbólico e figurado, foram e em parte ainda são, uma prática comum em quase todas as sociedades e tempos sociais, culturais, místicos, religiosos, econômicos, políticos e históricos. É evidente que não podemos generalizar. Assim como precisamos especificar e contextualizar esses termos e suas práticas literais, simbólicas e figuradas. O que são várias e em vários sentidos, tipos, modos, âmbitos e aspectos.

Também precisamos desde já informar que há o canibalismo ou antropofagismo envolto por práticas místicas, mágicas, políticas, religiosas e culturais quanto o canibalismo como prática de certo tipo de hobby, ainda que soe estranho, cruel e desumano. Mas é um fato e é real. Os canibais das sociedades modernas que o digam. Porém, muitos talvez já estejam mortos ou presos. Entretanto, essa prática é bem antiga, assim como veremos.

Há vários tipos, modos, aspectos e formas de canibalismo ou antropofagismo, como o literal, o simbólico e o figurado. Assim como há o canibalismo cultural, institucional, físico-corporal e dentre tantos outros. Aqui nós nos debruçaremos no canibalismo político, uma nova ou antiga prática. É o que iremos refletir, mas sem fechar o assunto e ou a discussão.

O canibalismo foi amenizado ou suavizado pelo termo antropofagismo ou antropofagia, e que não são práticas novas e nem verificadas apenas entre os povos africanos e indígenas, acusações e práticas comumente atribuídas à apenas a esses dois povos e suas culturas, isso por parte de e entre sujeitos alienados, néscios, incultos e incautos. Ou seja, o canibalismo ou de forma eufemista mais suavizada, o antropofagismo ou a antropofagia, foi na verdade uma prática bastante antiga e evidenciada entre muitos povos, culturas e sociedades que atualmente são consideradas como supostos povos, culturas e sociedades civilizadas e ou altamente civilizadas.

O termo antropofagismo ou antropofagia é de origem grega antiga, o que significava a prática de comer carne humana ou de sua espécie. Podemos dizer que esse termo já era utilizado por volta ou entre os séculos VIII-III a.C., ou seja, há quase 2.800 anos atrás, e a prática em si era bem mais antiga do que os gregos ou da formação dos povos gregos, bem como o da nominação de comer partes ou seres humanos por inteiro, vivos ou mortos, em rituais ou não, como antropofagia ou antropofagismo.

Com isso, em certos contextos políticos, econômicos e históricos as práticas de canibalismo ou antropofagismo foram evidenciadas e criticadas por alguns escritores romanos como Ovídio, Cícero e outros. E não apenas em rituais de sacrifícios humanos. Sendo assim, podemos dizer que rituais de e com sacrifícios humanos, assim como práticas antropofágicas foram evidenciadas em e entre povos e culturas etruscas, egípcias, gregas, judaicas e romanas, assim como também entre normandos, sumérios, mesopotâmicos, babilônicos, persas, fenícios, celtas, turcos, saxões, germanos, pela região da Escandinávia e dentre tantos outros lugares, povos, sociedades e culturas.

Podemos então dizer que a prática do antropofagismo ou canibalismo não nasceu com os povos africanos e indígenas, mas sim que foi uma realidade ocorrida há mais de 3.000 mil anos atrás e em diferentes culturas e sociedades. Assim como por diferentes motivos, ocasiões, contextos, significados e objetivos. Muitos rituais místicos “religiosos” antigos que sacrificavam serem humanos, também em muitos casos de alguma forma, tipo e modo direto e indireto, possuíam rituais de comer partes ou beber o sangue de seres humanos sacrificados.

Sem mencionar hipóteses de seres humanos famintos que devoraram literalmente outros seres humanos pela fome, miséria e escassez de alimentos. Parece estanho, mas há casos recentes de tragédias de aviões e outros tipos, em que seres humanos devoraram o cadáver dos outros. Ou seja, a fome ao extremo e sob condições extremas podem fazer seres humanos se devorarem vivos ou mortos. Isso não é colocar a necessidade de sobrevivência humana em certas circunstâncias juntamente com atos e práticas místicas, mágicas, religiosas e de hobby em que seres humanos devoram seres humanos, sejam vivos ou mortos. Em rituais ou não.

O fato é que a consumação da espécie humana pela espécie humana seja em partes ou total, em vida ou morta, é um tipo e modo de prática de antropofagia. Sobre essas questões práticas há inúmeras evidências, fatos e registros históricos, literários, artísticos e arqueológicos sobre tais eventos nos e dos povos mencionados, sobretudo de povos da Mesopotâmia, Egito, Roma e outros.

2.

No caso grego em específico, e apenas como um exemplo, os constantes rituais e sacrifícios ao Minotauro, no qual Teseu o herói grego se salvou e matou o Minotauro, já pode ser uma de várias amostras das evidências históricas sobre o tema e assunto da antropofagia ritualística, por hobby ou por necessidade e sobrevivência de quem sacrifica e consome o sacrificado (VRGÍLIO, 2021; BULFINCH, 2009; COMMELIN, 2017; COLEMAN, 2018).

Podemos citar Vico, 2008, p. 86-92 quando menciona vários povos, culturas e reinos da Europa, Ásia e Oriente que praticaram rituais de sacrifícios com seres humanos e até mesmo antropofagias ou canibalismos, desde povos saxões, germanos, gregos, fenícios, egípcios, persas, troianos, gauleses, celtas, noruegueses, chineses, normandos etc., onde em alguns casos também se comiam a carne ou bebiam o sangue do sacrificado.

Há também relatos da Bíblia sobre tais práticas, a exemplo, no livro de Gênesis, cap. 22, o patriarca Abraão iria sacrificar seu filho Isaac (importante dizer que ele de alguma forma sacrificou sua concubina Agar e seu filho Ismael com a mesma, quando os mandou ir embora sozinhos pelo deserto perigoso e mortal, ali havia ordens religiosas e de alguma forma, sacrificiais dessas duas vidas humanas).

Por mais que não sacrificou, a Isaac, abrem-se margens para se especular se não era uma prática comum no meio desses povos nômades, que iriam dar origem aos povos tidos como hebreus, judeus e mais tarde israelitas. Ou seja, se Abraão em um lapso de transe religioso, sob forças psíquicas, espirituais, misticismos ou até mesmo estresse da vida no deserto ou vestígios de problemas de saúde mental, como talvez esquizofrenia etc., quase sacrificou o próprio filho, há possibilidades de tais práticas religiosas, místicas e mágicas terem sido comuns aos povos nômades e viajantes daquela época e contexto.

Inclusive por terem contato com vários outros povos, culturas e religiões daquelas regiões. Ou seja, havia indícios de trocas e antropofagismos diversos, sejam culturais, místicos, religiosos etc., isso entre os povos, civilizações, culturas, religiões e indivíduos que viveram muitos séculos antes da era cristã. Na Bíblia há muitos relatos sobre sacrifícios humanos direta e indiretamente. Assim como canibalismos de hebreus em situações de fome e miséria. Passado a idade antiga, o período medievo também não fugiu das práticas de antropofagia ou canibalismos. Fossem eles realizados em práticas e manifestações místicas, ritualísticas e religiosas quanto por questões de fome e miséria.

Desde o séc. X d.C. ao XIV d.C. houve relatos de práticas de canibalismo pela fome e miséria pelos povos da Europa. Ora, a isso nos recordamos de que quando os colonizadores chegaram nas terras indígenas denominadas de Américas, se espantaram ao ver rituais com práticas de sacrifícios e canibalismo, o que eram ou foi comum e frequente em quase toda a história da Europa até aquele presente séc. XVI d.C. dos colonizadores diante de todos os povos indígenas a serem colonizados na futura América (COULANGES, 2004; FRANCO JR, 1983; VICO, 2008; BATAILLE, 2016; ELIADE, 2014, 2017; LANGER, 2004; JOSEFO, 2007; BÍBLIA, 2010, 2017).

3.

Após o movimento e processo de colonização europeia, o surgimento do capitalismo comercial e ou mercantilista, do capitalismo industrial e atualmente financeiro, ainda foram evidenciadas diversas formas e práticas de antropofagias, tanto literais quanto simbólicas e figuradas. Mas a historiografia europeia e dominante deu conta de fornecer apenas tais práticas relacionadas aos povos africanos e indígenas em e por seus rituais. Pouco ou quase nada se é reproduzido que milhares de europeus se devoraram pela fome e miséria durante o processo de construção e formação da Europa.

Mesmo os povos indígenas naqueles contextos de suas culturas ao praticarem antropofagias, não a faziam por fome e ou miséria, mas em certos rituais a contextos e momentos específicos. Diferentemente dos europeus que em boa parte se devoravam por fome e miséria. Mas a historiografia, antropologia, sociologia e arqueologia oficializada pelos euramericanos não demonstram tais fatos históricos, o da antropofagia deles e entre eles, até mesmo sobre os outros diferentes deles, mas sim apenas as dos povos e culturas indígenas e africanas e em seu passado.

Um bom exemplo de práticas de antropofagias após os períodos medievais dos sécs. XIV d.C. e durante as revoluções burguesas e industriais dos séculos XVI ao XIX d.C., foram justamente a transição dos miseráveis famintos da Europa entre a era feudal para a capitalista comercial e industrial, o que levou inúmeras pessoas a fome, a miséria e as novas práticas de antropofagia. Inclusive também entre esses processos havendo aqueles em que as praticavam seja por rituais quanto por hobby.

Mas o que isso tem a ver com a política? Ou seja, como isso se relaciona com o antropofagismo político ou canibalismo político moderno? práticas simbólicas e figuradas como instrumentos de apropriação do outro e suas qualidades? Ora, vamos restringir os fatos apenas ao Brasil nesse momento. Mesmo eles podendo serem estendidos a outros continentes, países e seus respectivos políticos. Iremos ficar com as reflexões restritas ao Brasil atual.

4.

O Brasil é um país de culturas de antropofagias diversas, indígenas, negras, europeias e americanas que aqui residem, transitam e atuam. Antropofagias figuradas, culturais e simbólicas. Talvez haja como a relacionar direta ou indiretamente a antropofagias literais por hobby ou rituais sem a consumação direta do outro, talvez simbolicamente. Isso pode ser relativo.

Mas quanto a questão política ela é mais limitada ou restrita ao aspecto, âmbito e modo simbólico, figurado e tipológico. Isso porque a antropofagia política ou o canibalismo político moderno estão centrados numa figura política e especializada nela. Talvez nesse momento possamos invocar e relacionar com as teorias políticas da obra O Príncipe de Nicolau Maquiavel. E também com as pesquisas antropológicas, sociológicas, históricas, filosóficas e dentre outras de FRAZER, 1984; DURKHEIM, 2014; TURNER, 2005; MAUSS, 1987; BARTH, 2000 e VAN GENNEP, 1996, que abordam entre tantos outros assuntos, às questões de transições de poder político, ligados ao poder mágico, místico, religioso, simbólico, econômico e de controle de uns sobre outros.

Além dessas transições envolverem também rituais de passagens e de pedagogias que dividem os grupos envolvidos entre superiores e inferiores, mestres e discípulos, especializados e não especializados, iniciados e não iniciados, vítimas e algozes, e assim por diante. Mas, sobretudo e fundamentalmente essas obras em suas observações e comentários envolvem os aspectos dos rituais, dos sacrifícios e da morte. Há aqueles que são os sacrificadores, assim como há aqueles que serão os sacrificantes e consecutivamente há aqueles que serão os sacrificados.

Tudo isso envolvem procedimentos, práticas e modos de se agir para ritualizar e mistificar o processo de sacrifício, morte e tão logo a antropofagia. E antropofagia política ou o canibalismo político moderno. moderno porque em O Príncipe de Nicolau Maquiavel se é possível averiguar a forma com que um líder, governante ou especializado político e politicamente tenta e deve fazer para se manter no poder e sob o controle do mesmo, bem como inutilizar e imobilizar seus atuais e futuros adversários.

Se relacionarmos essas teorias e seus aspectos com os aspectos, simbologias, significados e objetivos de certos rituais antropofágicos, poderemos ver que a consumação e destruição do outro, enquanto eu o devoro e o destruo, simultaneamente eu adquiro as capacidades, instrumentalidades, poderes, habilidades, influências e domínios do outro que foi ritualizado, sacrificado, devorado e destruído. Era exatamente desse modo que se criava o imaginário de controle do caos, administração do presente, controle sobre o mal e o futuro sobre as posses dos que consomem o que ou aquele que é sacrificado e devorado, antropofagicamente falando.

*Marcelo Barboza Duarte é mestre em Educação, Gestão e Difusão em Biociências pelo Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Referências


ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2004.

BARTH, F. O guru e o iniciador e outras variações Antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000.

BATAILLE, G. Teoria da Religião. Belo Horizonte. Editora: Autêntica, 2016.

BÍBLIA. Em Ordem Cronológica, NVI. São Paulo. Editora Vida, 2010.

BÍBLIA. Editora: Paulus, 2017.

BULFINCH, T. O Livro da Mitologia. São Paulo. Martin Clarent, 2009.

COLEMAN, J. A. Dicionário de Mitologia. São Paulo: Pé da Letra, 2018.

COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

COULANGES, F. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2015.

DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Rio de Janeiro: Paulus, 2014.

ELIADE, M. História das crenças e das ideias religiosas: Vol.1-3. Rio de Janeiro. Zahar, 2014.

ELIADE, M. Sagrado e o Profano: A essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

ENGELS, F. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo. Boitempo, 2014.

FRANCO JR, H. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo. Brasilense, 1983.

FRAZER, J. G. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1984.

FREUD, S. O Mal-estar na Civilização. São Paulo: L&PM, 2011.

FREUD, S. Psicologias das Massas e Análises do Eu. São Paulo. Editora: L&PM, 2014.

HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

JOSEFO, F. História dos Hebreus. Rio de Janeiro. CPAD, 2007.

LANGER, J. Midvinterblot: O Sacrifício Humano na Cultura Viking e no Imaginário Contemporâneo. Universidade Estadual do Maranhão. Revista de Estudos Celtas e Germânicos Brathair: Brathair 4 (2), 2004: 61-85. ISSN 1519-9053.

MAQUIAVÉL, N. O Príncipe. São Paulo. Martin Clarent, 2008.

MAUSS, M. & HUBERT, H. “Ensaio Sobre a Natureza e a Função do Sacrifício”. In MAUSS, M.: Ensaios de Sociologia, pp. 141-227. São Paulo: Perspectiva, 1987.

VAN GENNEP, A. V. Os Ritos de Passagem. Petrópolis: Vozes, 1996.

VICO, G. Ciência Nova. São Paulo. Ícone Editora, 2008.

VIRGÍLIO. Eneida. São Paulo. Editora 34, 2021.

TURNER, V. Floresta de Símbolos – Aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EDUFF, 2005.


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