Arquétipos e símbolos

Imagem: Steve Johnson
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO

Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência

Na década de 1930 Carl Jung apresentou ao mundo a sua ideia de inconsciente coletivo. Por baixo do inconsciente pessoal analisado por Freud, Carl Jung aponta a existência, em cada indivíduo, de uma parte mais fundamental da psique humana que é comum a todos os homens, em todos os tempos e lugares, como uma herança psicológica, comum a toda humanidade. Disse ele: “O inconsciente contém, não apenas componentes pessoais, mas também impessoais, em forma de categorias, ou arquétipos.”

Esses arquétipos se expressam através de símbolos que se manifestam nos nossos sonhos e nos mitos de todas as tradições culturais. Esses mitos revelam a própria natureza da alma, são metáforas de nossa realidade interna mais profunda e essencial. De todos os mitos, o mais conhecido é o do herói. Eles são estruturalmente semelhantes nas mais diferentes culturas. Obedecem a uma forma, um padrão, universal, quer seja na Grécia antiga, nas tribos africanas, nos índios americanos, nos incas peruanos. Suas trajetórias são muito semelhantes.

Com a publicação de seu livro Psicologia do inconsciente ocorreu o distanciamento de seu mestre Freud, que estava focado no indivíduo e não aceitava a ideia de Carl Jung do inconsciente coletivo, formado por memórias ancestrais passadas, ou seja, a bagagem que os indivíduos trazem dentro de si. Carl Jung identificou a existência do inconsciente coletivo, além do inconsciente pessoal detectado por Freud.

Daí derivou a noção dos arquétipos (padrões universais e simbólicos que permeiam a psique de todas as culturas e indivíduos) que são memórias culturais coletivas que nos ajudam a compreender nossas histórias de vida. São diversos os arquétipos que moldam nossas personalidades, motivações e comportamentos.

Portanto, para Carl Jung, a psique humana é dividida em três partes: o ego (o lado racional ou consciente da nossa psique, que regula as nossas vidas), o inconsciente pessoal (que inclui nossas próprias memórias individuais – memórias e emoções reprimidas) e o inconsciente coletivo (onde estão armazenados os arquétipos que herdamos de nossos ancestrais e que se encontram na narração de histórias e mitos).

Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência. É um reino profundo e misterioso que compõe a essência da experiencia humana. Eles transcendem fronteiras culturais e temporais, conectando a humanidade em sua jornada de autodescoberta e crescimento. Reconhecer e compreender tais arquétipos dentro de nós é um grande passo para abraçar tanto a luz como a sombra que compõem a natureza humana. Ao aplicarmos essa compreensão em nossas vidas cotidianas e relacionamentos podemos desenvolver uma maior empatia, sabedoria e aceitação, tanto de nós mesmos quanto dos outros.

Dentre os principais arquétipos figuram:

(i) O self (Si mesmo) é um dos arquétipos mais fundamentais de Carl Jung já que é o núcleo central da psique, simbolizando a totalidade e a integração da personalidade humana. Ponto de referência psicológico que abrange tanto o consciente quanto o inconsciente. O objetivo final de individuação do ser humano, quando se alcança a autorrealização e o crescimento pessoal, ocorre quando se alcança uma conexão significativa com o Eu.

(ii) A persona, que representa a máscara social que cada indivíduo utiliza para se apresentar ao mundo. Ela é a fachada externa que usamos para nos adaptarmos e nos adequarmos às expectativas e normas da sociedade. É através dessa máscara que nos apresentamos ao mundo e interagimos com os outros. Ao reconhecer a presença da persona e confrontá-la com a verdadeira identidade, o indivíduo pode trabalhar uma integração mais equilibrada entre a persona e o self. Atrás das máscaras que usamos para nos adaptarmos ao mundo, reside a verdadeira essência do Eu, esperando para ser descoberta e integrada em toda a sua complexidade.

(iii) A Sombra, o lado oculto da psique, representa os aspectos obscuros, reprimidos e negados da personalidade de um indivíduo. Engloba aqueles traços que preferimos esconder ou negar, seja por medo de julgamento, vergonha ou inadequação. Incluem nossas fraquezas, instintos primitivos, desejos mais profundos e impulsos que podem ser considerados socialmente inaceitáveis. A individuação requer a integração da Sombra, compreendendo, aceitando e integrando tais impulsos à nossa personalidade já que ela é parte dela. Negá-la é puro auto engano.

(iv) Anima e Animus, são conceitos que representam aspectos psicológicos do sexo oposto presentes em cada indivíduo. A Anima presente no inconsciente do homem, personifica as características femininas; o Animus, presente no inconsciente da mulher, personifica as características masculinas. Para os homens, a Anima representa a parte feminina de sua psique, que desperta a intuição, a sensibilidade emocional e a criatividade.

Para as mulheres, o Animus representa a parte masculina de sua psique, podendo ser retratado como um homem sábio, heroico, protetor ou intelectual, despertando o pensamento lógico, a assertividade e a busca de realizações. Ambos devem ser integrados nas psiques levando a um equilíbrio psicológico e a uma compreensão mais profunda de si mesmo.

(v) Mãe, fonte de nutrição e proteção da psique humana que transcende a figura individual da mãe biológica, personifica o instinto materno inato e abrange a dimensão universal do amor e acolhimento. Mãe alimenta tanto o corpo como a alma e simboliza a generosidade e compaixão. O arquétipo da Mãe na nossa psique nos mostra a importância de nutrir e proteger a nós mesmos e aos outros, trazendo conexão e compaixão com o mundo ao nosso redor.

(vi) Pai, é um arquétipo associado à autoridade, disciplina e proteção, presente em todas as culturas e na psique humana. O Pai representa o princípio que estabelece limites e orienta o desenvolvimento moral e ético. Símbolo de sabedoria, força e estabilidade, oferece orientação em momentos de dificuldade e incerteza.

(vii) Criança Divina, o encanto da inocência, o potencial criativo e a conexão com o divino. Este arquétipo personifica a inocência primordial, o potencial criativo inexplorado e a conexão com o divino, pautando-se por uma energia de renovação e esperança. É a parte da psique que não foi afetada pelas feridas e traumas da vida. É o arquétipo capaz de se maravilhar com o mistério do universo, pautando-se por potencial criativo ilimitado. É a nossa fonte de imaginação, inspiração, inovação e inocência, que devem ser preservadas na nossa vida adulta.

(viii) Herói, é o arquétipo que busca aventura, enfrenta desafios e supera obstáculos. Esse arquétipo remete a narrativas mitológicas e contos épicos que permeiam a história da humanidade, transcendendo culturas e gerações. Trata-se de jornada que também é interna, de autodescoberta e crescimento pessoal. As adversidades testam a coragem e o padrão arquetípico envolve o chamado à aventura, o encontro com um mentor, a travessia do limiar entre o mundo conhecido e aquele desconhecido, o enfrentamento de desafios, a transformação e o retorno ao mundo com um novo conhecimento e sabedoria, inspirando os que estão ao seu redor.

(ix) Trapaceiro, é o arquétipo brincalhão que desafia a ordem estabelecida e a transforma através do humor e da subversão. Este arquétipo, presente em diversas culturas e mitologias, pode assumir a forma de uma divindade, figura folclórica ou personagem mítico. Ele não se prende a normas sociais rígidas e pode desafiar a autoridade e a estrutura de poder, permitindo que as pessoas vejam as coisas de forma mais leve e flexível, trazendo à tona questões inconscientes e tabus reprimidos pela sociedade.

Atua como espelho, refletindo as sombras e contradições que precisam ser reconhecidas. É um agente de transformação. Mas pode, também, ser ambivalente, tanto representando a criatividade e a liberdade como também a trapaça e a enganação.

(x) Velho Sábio, a fonte da sabedoria, da experiência e do conhecimento acumulado. Emerge como guardião do conhecimento ancestral e fonte de orientação para aqueles que buscam sabedoria e conselho. Em inúmeras culturas e mitologias figuram sábios como os xamãs, os avós sábios, os eremitas e os mentores espirituais. O arquétipo do Velho Sábio representa a sabedoria, a experiência e o conhecimento acumulado. Fonte de orientação e inspiração ele representa a união de vários aspectos da psique, incluindo as experiências passadas, as sombras e a sabedoria interior, permitindo-nos a reconciliação com nosso passado e a compreensão de como ele moldou nossa identidade.

(xi) Donzela, o encanto da pureza e vulnerabilidade feminina, é um arquétipo comum em mitos, contos de fadas e lendas de diferentes culturas ao redor do mundo. Integrá-lo na nossa psique é reconhecer a importância da pureza e da vulnerabilidade e também abraçar a beleza e o encanto do feminino jovem em nós mesmos, além da importância da proteção dos aspectos vulneráveis de nós mesmos e dos outros.

(xii) Guerreiro, protetor e valente, ligado à força e à coragem, é um arquétipo que independe de gênero e personifica a força, a coragem e o espírito protetor que habitam nas pessoas, representando a busca por proteção, justiça e honra. Os verdadeiros desafios nem sempre são físicos; na maior parte das vezes são batalhas internas emocionais e espirituais.

(xiii) Morte e Renascimento, representa a transformação, o fim de uma fase, de uma forma de ser, ou de um aspecto da personalidade que já não serve mais ao indivíduo. E o início de outra fase. Algo precisa ser deixado para trás, ainda que isso seja doloroso ou desafiador. Trata-se de morte simbólica muitas vezes acompanhada de uma sensação de vazio, perda ou desconforto de enfrentar o novo, o desconhecido.

É uma jornada de transformação e simboliza o ciclo contínuo de morte e transformação que caracteriza a vida humana, convidando cada pessoa a abraçar as mudanças e a buscar a transformação interna e o renascimento emocional e espiritual que dão maior propósito à vida.

(xiv) Buscador, jornada de autoconhecimento e significado. É o arquétipo daqueles que anseiam por significado, buscam respostas e embarcam em uma jornada de autoconhecimento. A jornada é em direção à expansão da consciência, autodescobrimento e conexão com algo maior do que nós mesmos.

Joseph Campbell dedicou toda sua vida ao estudo das mitologias. Carl Jung o inspirou a estudar não as diferenças entre os mitos, como é feito na academia, mas sim, a evidenciar as semelhanças, os denominadores comuns, que revelam espantosa unidade.

Enquanto Carl Jung enfatizava a importância de equilibrar o consciente e o inconsciente, Joseph Campbell via na narrativa mítica não só um reflexo dessa dualidade, mas também um caminho para a transcendência e a realização do potencial humano. Joseph Campbell sintetiza esses conceitos de uma forma que se popularizou – expressa na famosa máxima “follow your bliss” (siga sua benção, felicidade, alegria) –, encorajando uma vivência autêntica e transformadora.

Em seu livro O herói de mil faces Joseph Campbell descreve a jornada do herói como uma manifestação arquetípica do processo de individuação, um conceito junguiano que se refere à integração dos opostos internos e ao desenvolvimento de uma personalidade completa. Ele mostra que cada herói adquire a face de sua cultura específica, mas sua jornada é sempre a mesma. Daí surge o Monomito.

Joseph Campbell ajudou a difundir os conceitos junguianos para um público mais amplo, ao mesmo tempo em que os reinterpretou em termos de mitologia comparada. Essa fusão permitiu que suas ideias influenciassem, por exemplo, o cinema e a cultura popular (como na saga de Star Wars), mostrando como as estruturas míticas podem ser ferramentas para compreender e vivenciar a jornada interior do ser humano. A influência de Joseph Campbell nos cineastas de Hollywood é bastante significativa: George Lucas, John Boorman, Steven Spielberg, George Miller, Francis Ford Coppola, entre outros.

A técnica de screenwriting incorporou tais ensinamentos sobre arquétipos. Joseph Campbell ajustou o monomito à estrutura dramática tradicional. A storyline do monomito é simples: o herói sai do seu ambiente familiar e seguro para se aventurar num mundo estranho e hostil, onde enfrenta o conflito da vida ou morte com um antagonista poderoso, quase sucumbindo, mas termina triunfando. Foi assim que o inconsciente coletivo de Carl Jung chegou a Hollywood. Hoje, o arquétipo típico do nosso tempo é o mito da eficiência.

*Marcos de Queiroz Grillo é economista e mestre em administração pela UFRJ.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES