Arte e cultura em Trotsky

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Por FLO MENEZES*

Leon Trotsky, as artes e a cultura, e suas influências no trotskismo brasileiro de Mário Pedrosa

“O ‘espírito’ é ‘maculado’ desde o início pela maldição da matéria, que surge sob forma de camadas de ar em movimento, sons, em suma, sob forma de linguagem.”
(Marx & Engels 1975, 313)

Da epopeia à tragédia

Um fato trágico ocorrido a 14 de abril de 1930 em Moscou encerra o ciclo dos primeiros 13 anos da Revolução Russa, tornando-se emblemático da época de sua aguda burocratização: o suicídio, aos 36 anos, do poeta Vladimir Maiakovski. Sendo Maiakovski considerado por muitos como o principal protagonista da poesia revolucionária e como um dos mais atuantes – nos termos de Trotsky – companheiros de viagem (Попутчик) da Revolução, tal acontecimento serve de foco para um importante texto do líder do Exército Vermelho, escrito, já no exílio, para o Boletim da Oposição Russa em maio daquele mesmo ano em homenagem póstuma ao poeta e convertido a posteriori em um dos capítulos de seu paradigmático livro Literatura e Revolução, de 1924.

No quarto parágrafo desse texto, intitulado “O suicídio de Maiakovski”, Trotsky procura denunciar o conteúdo pernicioso do aviso oficial do governo soviético acerca da morte do poeta, tal qual formulado pelo Secretariado-Geral do Partido – ou seja, por Stalin –, que procurava dissociar o ato extremo do poeta às suas atividades sociais e literárias. O ato de Maiakovski teve caráter passional: o poeta vivia em meio a uma complicada triangulação amorosa com sua amada Lília Brik e seu marido, e pode-se aventar certo componente potencialmente depressivo de seu caráter. Apesar disso, a frase inaugural da poesia-testemunho deixada pelo poeta dizia: “Ninguém é culpado da minha morte e, por favor, nada de fofocas”. Mesmo assim, Trotsky procura entender o contexto de seu ato e associa, não sem razão, a decisão trágica de Maiakovski à coerção crescente que a cultura e as artes sofriam sob o jugo do stalinismo já em curso: “Os melhores representantes da juventude proletária […] caíram sob as ordens de pessoas que converteram em critério de realidade a sua própria falta de cultura.” (Trotsky 1980a, 224).

Ao que se assistiu, dos primeiros dias da Revolução Russa ou mesmo dos anos que a ela imediatamente antecederam ao final da década de 1920, foi uma notável perda de vigor revolucionário e de liberdade de criação no terreno essencialmente especulativo das artes, concomitante à imposição intelectualmente obtusa de um pensamento provinciano, condizente com a teoria nacionalista e, naquele contexto, fundamentalmente antimarxista do Socialismo Num Só País, típico da burocracia stalinista.

Não tardou muito para que a asserção de Trotsky logo encontrasse oposição no seio do governo soviético. Homem de grande cultura e de digno passado militante nas fileiras históricas bolcheviques, Anatoli Lunatchárski, Comissário do Povo para a Instrução Pública até 1929, aos poucos perdia representatividade no governo stalinista e procurava, com sua habilidade política, flexibilidade e capacidade de adaptação aos cursos do poder, agarrar-se a alguma boia em alto mar e apartar-se da Oposição de Esquerda trotskista, e é neste contexto que, em 1931, concebe um eloquente texto dedicado ao poeta russo (“Vladímir Maiakovski, inovador”), em que, não sem certa ironia, se opõe à afirmação de Trotsky:

“Trotsky escreveu que o drama do poeta é ter amado a revolução com todas as suas forças, ter ido ao seu encontro, quando essa revolução já não era autêntica, se perdendo em seu amor e sua caminhada. Naturalmente, como podia ser autêntica a revolução, se Trotsky não participa dela? Só isso já basta para demonstrar que é uma revolução ‘falsa’! Trotsky também afirma que Maiakovski tirou a própria vida porque a revolução não seguia a via trotskista. […] No interesse de seu pequeno grupo político, insignificante e falido, Trotsky acolhe tudo o que é hostil aos elementos progressistas do mundo socialista que estamos criando.” (Lunatchárski 2018, 199)

Procurando delimitar a crítica trotskista simplesmente ao campo de uma mera disputa interna pelo poder, movida pela vaidade pessoal e não por uma concepção essencial e eminentemente política e ideológica, Lunatchárski ainda precede a esta passagem duas frases que o fazem situar, naquele momento, no campo oposto ao de Trotsky: “Atualmente, Trotsky está com os filisteus. Ele não é mais, como nós, camarada do Maiakovski de ferro, mas de seu duplo [pequeno-burguês]” (idem, ibidem).

Mas mesmo em meio à crise política soviética que se alastrava pelo início da década de 1930, e que resultaria na dizimação completa da Oposição de Esquerda russa e no implacável controle das artes pela ditadura stalinista, fazendo daí resultar uma arte engajada e classificada como da escola do Realismo Socialista – com uma qualidade artística das piores que já se viu na história das artes –, Trotsky e Lunatchárski pareciam concordar em um ponto: os elos que atavam a revolucionária obra maiakovskiana ao velho mundo burguês. Trotsky mesmo, ao início de seu ensaio, afirmava:

“Maiakovski quis, sinceramente, ser revolucionário, antes mesmo de ser poeta. Na realidade, ele era acima de tudo um poeta, um artista, que se afastou do velho mundo sem romper com ele.” (Trotsky 1980a, 223)

Mas teria podido Maiakovski livrar-se por completo, mesmo tendo feito parte do bolchevismo histórico e da Revolução, dos matizes de classe com os quais sua elaboração poética estava, de certo modo, tingida? Afirmando-se pela especulação do Novo artístico na forma e no conteúdo, e dando as mãos à Revolução, teria o poeta podido livrar-se, mesmo assim, de sua proveniência pequeno-burguesa ou – nos termos de Lunatchárski – de seu duplo?

 A arte submetida à sua análise classista

É provável que tal dilema tenha contribuído sobremaneira para a decisão de Maiakovski de pôr fim à sua existência. A estratégia stalinista da “autocrítica” ali já se perfilava e viria a caracterizar a farsa coercitiva dos Processos de Moscou, os quais culminariam por dizimar quase que a totalidade dos revolucionários de 1917. Não seria ilógico deduzir, pois, que os rumos castradores do stalinismo no poder soviético foram fatores determinantes para o desânimo existencial do grande poeta: a cobrança moral e autopunitiva constituíra provavelmente o ingrediente psíquico decisivo que lhe teria impelido à auto-aniquilação.

A mesma questão que se coloca diante do fato artístico é, contudo, extensível a qualquer outro campo do saber. A rigor, poderíamos nos perguntar se os maiores revolucionários de nossa história moderna, Marx, Engels, Lenin, os próprios Trotsky e Lunatchárski, a maior parte dos bolcheviques, Mao Tse-Tung, Fidel Castro e Che Guevara, teriam como se desvencilhar de suas origens pequeno-burguesas, e mais: se a própria questão faria algum sentido[i].

Fato é que toda a história do saber decorre irrevogavelmente de suas condições históricas, e sendo o projeto socialista posterior à revolução burguesa, é natural que a Cultura, que, na bela definição de Roland Barthes, “é tudo em nós exceto nosso presente”[ii], carregue consigo os traços classistas de sua proveniência histórica para dentro da nova construção socialista.

A questão esbarra na análise propriamente marxista da arte e da cultura, que procurou desvendar os elos ideológicos que unem as camadas conscientes e subconscientes do pensador e – poderíamos estendê-lo – do artista. Em uma carta a Franz Mehring, de 14 de julho de 1893, escreve Engels: “A ideologia é um processo que o presumível pensador segue, sem dúvida conscientemente, mas com uma consciência falsa. As verdadeiras forças motrizes que o impelem são-lhe desconhecidas, pois, se assim não fosse, não se trataria de um processo ideológico.” (Engels in: Marx & Engels 1974, 44).

Já prenunciando o enfoque nos modos pelos quais o subconsciente faz transparecer, no nível da elaboração plenamente consciente, as raízes sociais, pulsionais e afetivas, enfoque este que viria caracterizar os pilares da teoria psicanalítica freudiana no século XX, Engels nos atenta sobretudo para a influência, em qualquer fato de pensamento – e, por conseguinte, de cultura –, da ideia sobre as formulações, isto é, do conteúdo sobre a forma, ideia esta necessariamente decorrente das condições materiais de vivência e de sobrevivência dos cidadãos e que são impostas e geridas pelas classes dominantes. É nesse sentido que, na Ideologia alemã, Marx e Engels afirmarão: “As ideias da classe dominante são também as ideias dominantes de cada época, ou, por outras palavras, a classe que é a potência material dominante da sociedade é também a potência espiritual dominante.” (Marx & Engels 1974, 22).

Mas se essas premissas são verdadeiras, o mérito de Marx e Engels em desvendar os mecanismos de dominação nas sociedades classistas não os impediu de evitar com que uma própria interpretação de tipo mecanicista se tornasse preponderante no marxismo histórico e fosse aplicável, sem qualquer tipo de relativização, a qualquer campo do saber humano, o que implicaria em uma atitude previamente condenatória de todo fato de cultura, uma vez que uma sociedade sem classes sequer ainda existia. Em outras palavras – e nos atendo apenas ao campo artístico e cultural –, para Marx e Engels, mas não para boa parte daqueles que reivindicariam de suas ideais, a dialética materialista marxista deveria estar apta a entender, interpretar e refletir sobre as influências classistas nas obras de arte, mas os produtos da arte não poderiam deixar, igualmente, de serem considerados a partir de suas próprias especificidades, de modo a podermos, mesmo em uma nova sociedade socialista, usufruir dos fatos de cultura, necessariamente históricos.

Foi precisamente sobre este ponto que se debateu Trotsky, já nos inícios dos anos 1920, contra tendências mecanicistas no seio do bolchevismo, quando discutia a relação entre “O partido e os artistas” (artigo de 9 de maio de 1924), afirmando que “a arte e a política não podem ser abordadas do mesmo modo. Não porque a criação artística seja uma cerimônia ou uma mística, […] mas antes porque possui suas regras e seus métodos, suas leis próprias de desenvolvimento, e sobretudo porque na criação artística os processos subconscientes desempenham um papel considerável, e tais processos são mais lentos, mais indolentes, mais difícil de serem controlados e dirigidos, precisamente por serem subconscientes.”[iii] (Trotsky 1973, 138).

Ora, se a Revolução Socialista era almejada pelo marxismo, não o era para que as classes trabalhadoras continuassem a se ver tolhidas do acesso à cultura e se verem obrigadas a restringir sua existência às necessidades de sobrevivência e à opressão do trabalho explorado, mas, ao contrário, para que sua emancipação significasse também uma emancipação de seu espírito. Foi nesse sentido que Lenin, tão crítico quanto Trotsky com relação à defesa de uma “cultura proletária” (proletcult) – tal como promulgada por alguns de seus camaradas (dentre os quais o próprio Lunatchárski) no seio do partido bolchevique –, afirmara, em um artigo intitulado “A cultura proletária”, de 9 de outubro de 1920, que “o marxismo conquistou sua significação histórica universal como ideologia do proletariado revolucionário porque não rechaçou de modo algum as mais valiosas conquistas da época burguesa, mas, ao contrário, por ter assimilado e reelaborado tudo o que houve de mais valioso em mais de dois mil anos de desenvolvimento do pensamento e cultura humanos.”[iv] (Lenin 1979, 271).

O fato, entretanto, de o marxismo consistir antes em uma interpretação de cunho filosófico-político dos fatos de cultura, e não propriamente em um modus operandi da própria criação artística, isto é, de o marxismo, diante do fato artístico, se ater antes à interpretação e ao entendimento das ideias do que na produção ativa e criativa das formas, fez com que acabasse por servir ao pensamento mecanicista – àquele mesmo ao qual Marx teria repetido sua célebre frase: “Então eu mesmo não sou marxista” – não como instrumento de interpretação e reflexão (e até mesmo de posicionamento) diante do fato artístico, mas antes como instrumento de imposição à criação artística de certa “conduta ideológica” a ser seguida pelo criador.

As consequências mais funestas deste desvio das intenções genuinamente marxistas, as conhecemos bem: a ideologia “marxista” passa a exercer papel condenatório, de julgamento e controle, enquanto deveria, criticamente, se abster – como desejaram Marx e Engels, Lenin e Trotsky – de procurar exercer mão de ferro sobre o ato da criação artística. As concepções marxistas, quando diante das obras artísticas, passam então a serem identificadas com aquelas que darão importância sobretudo ao conteúdo ideológico explícito da obra de arte, a despeito do que ela, mesmo quando manifestamente reacionária, pudesse conter de formalmente revolucionária. Como bem descreve um dos principais críticos literários que o Brasil já teve, o marxista Antonio Candido, “para essas concepções [marxistas, ou, a bem da verdade, pseudo-marxistas], as obras de arte e de literatura deveriam ser necessariamente interpretadas e avaliadas segundo a sua dimensão social e, não raro, segundo o seu significado político potencial. Em consequência, a crítica tendia a concentrar-se no conteúdo e a negligenciar as questões de forma, inclusive a fatura.” (Candido in: Castilho Marques Neto 2001, 15).

Entretanto, o desejo de que o crítico ou a crítica marxista pudesse dar conta dos problemas da forma não foi ausente dos revolucionários russos. Lunatchárski, ao elaborar as “Teses sobre as tarefas da crítica marxista” (de abril a junho de 1928), reconhece que “o crítico marxista toma como objeto de sua análise, antes de tudo, o conteúdo da obra, a essência social que essa encarna”, mas em seguida expressa esse desejo, afirmando que não se podia “ignorar a tarefa particular de análise das formas literárias”, e que “o crítico marxista não deve se omitir a esse respeito” (Lunatchárski 2018,144).

Quando faz isso, esbarra na questão de que nas próprias formas artísticas – e isto mesmo em relação às linguagens artísticas mais distantes dos significados verbais quando voltadas a si mesmas, tal como principalmente o caso da linguagem musical – podem-se como que “rastrear” conteúdos ideológicos que, de certo modo, lhe deram vazão. A afirmação, contudo, daria igualmente vazão a uma interpretação tendenciosa e controladora das próprias formas artísticas. Por tal viés, a autonomia das formas artísticas perderia qualquer sentido, deixando-se de reconhecer o que tipifica a obra de arte: o exercício sobre si mesma e sobre a história de sua linguagem; em outras palavras, sua intertextualidade.

 As características definitórias da arte

Quando Trotsky afirma, em Literatura e Revolução, que “a arte deve abrir por si mesma o seu próprio caminho”, e que “os métodos do marxismo não são os mesmos da arte” (Trotsky 1980a, 187), tem em mente justamente as especificidades do campo artístico e, considerando-se a arte como um todo, suas leis genéricas, porém próprias, e que escapam à análise marxista. Se os métodos do marxismo podem interpretar a arte e até mesmo “explicar”, do ponto de vista sociológico e ideológico, o advento de determinada tendência artística, eles serão insuficientes para entendê-la em toda a sua plenitude, e muito menos ainda uma dada obra artística em particular. Assim sendo, somente adentrando o terreno específico das linguagens artísticas é que uma determinada obra poderá ser profundamente compreendida:

“É perfeitamente exato que nem sempre se pode seguir somente os princípios marxistas para julgar, rejeitar ou aceitar uma obra de arte. Uma obra de arte deve-se julgar, primeiramente, segundo seus próprias leis, isto é, segundo as leis da arte. Mas só o marxismo pode explicar por que e como, num determinado período histórico, aparece tal tendência artística; em outras palavras, quem expressou a necessidade de certa forma artística, e não de outras, e por que.” (Trotsky 1980a, 156)

O jdanovismo cultural, isto é, a doutrinação stalinista que arregimentou as artes (sem falarmos das outras áreas do saber humano), tal como promulgada mormente por Andrei Jdanov a partir de 1946, mas que nada mais fazia que corresponder às coerções que os artistas já sentiam na pele ao final dos anos 1920, ignorou por completo as leis às quais se referia Trotsky, genéricas a toda criação artística e independente das leis que lhes seriam complementares, quais sejam: as que regem especificamente cada uma das linguagens artísticas. Contrariando o princípio supremo que fundamenta toda obra artística de valor ao longo da história da humanidade, qual seja: o da liberdade de criação, a doutrinação jdanovista repetiu o ato trágico de Maiakovski: fez com que a arte produzida sob seus “auspícios” cometesse suicídio.

Seria deveras pretensioso fazer uma análise exaustiva e taxativa de todos os aspectos que poderiam tipificar uma obra de arte, mas vejamos, sucintamente, os fatores que parecem condicionar a fatura da obra artística, ou seja, àquilo a que Trotsky aludira quando falava de suas “próprias leis” ou de que trata o Manifesto da F.I.A.R.I. em seu ponto 2, quando fala das “leis específicas a que está sujeita a criação intelectual”.

 Intertextualidade

A primeira dessas características é o que chamamos acima de intertextualidade, isto é, a faculdade da obra arte em dialogar com outras obras de sua linguagem, contemporâneas ou pertencentes ao passado. Se a música – para a tomarmos como exemplo de uma das linguagens artísticas – fora bem definida por Roman Jakobson como uma semiosis introversiva (cf. Jakobson 1973, 100), isto é, uma linguagem cujos signos se remetem continuamente a elementos interiores à sua própria articulação sígnica, à sua própria técnica, e se por isso ela se distingue da linguagem verbal, cujas palavras rementem-se externamente aos conceitos que evocam, quando ouvimos uma cadência tonal, um ritmo, uma citação de outra peça ou certa maneira de orquestrar – atendo-nos somente à sua percepção estética –, tecemos relações com todo o arsenal de cultura musical que temos depositado em nós. E o mesmo ocorre com toda obra de arte em todas as demais linguagens. A obra artística estabelece diálogos contínuos com aspectos precisos de sua história: “A atividade criadora do homem histórico é, de modo geral, hereditária” (Trotsky 1980a, 156). Ao mesmo tempo em que institui um Novo, a obra é também, por mais que se queira romper com o passado, sempre um comentário sobre o que já se fez.

Tecnicidade

A este aspecto, alia-se um segundo, a ele indissociável. A obra de arte necessariamente lida com sua tecnicidade. A julgar pelo grau de elaboração de suas técnicas, dada linguagem artística pode inclusive encerrar o risco de tornar-se inacessível ou pouco acessível àqueles que não se inteirarem de seus meandros técnicos, ao menos no nível de uma sua compreensão plena. Tal risco ocorre particularmente com a música, com suas técnicas de escritura musical – o que certamente faz da linguagem musical a mais difícil das artes, dado o elevado nível de sua tecnicidade –, mas tal característica faz parte, em maior ou menor grau, de toda linguagem artística.

Não-linearidade histórica

A obra de arte que faz época, ou seja, que se firma na história de sua linguagem por suas qualidades artísticas, guardará sempre o potencial de ser “relida” e “reinterpretada” em épocas futuras e em condições distintas daquelas pelas quais nascera. E mais que isso: há diversos casos, na história das artes, em que uma obra é redescoberta ou revalorizada, tirando-a do esquecimento. Tal fato distingue substancialmente a obra de arte da política: em política, as ações têm de surtir efeito imediato para terem validade; caso contrário, sucumbem e não são consideradas como vitoriosas. Poder-se-ia argumentar que o trotskismo é prova contrária a essa tese:

Trotsky saiu derrotado e acabou morto a mando de Stalin, mas as ideias trotskistas excedem a pessoa de Trotsky. Sua ressonância demonstrou-se, em certo sentido, vencedora, pois permanece atuante, e em pleno 2019 é de Trotsky e de seu legado que estamos falando no Congresso de Cuba, e não do legado stalinista! O julgamento daquilo que é propriamente “vencedor” ou “perdedor”, no terreno político, deve, pois, ser relativizado. Mas como quer que seja, toda ação política visa algum efeito imediato, mesmo que no plano das ideias. A obra de arte, ao contrário, não visa qualquer efeito imediato para além do gozo estético que institui em si mesma – aquilo que Barthes chamava, em seu magnífico Le plaisir du texte, de jouissance. E, assim agindo, guarda todo o seu potencial estético para uma eventual fruição futura.

Ainda que, na trama intertextual que institui os diálogos do artista com a história de sua linguagem, haja “progressividade” e inegável desenvolvimento de sua técnica, não há propriamente “progresso linear”, ou seja, linearidade histórica absoluta na história da arte, e as obras de arte podem se referir a feitos artísticos às vezes muito distantes delas temporalmente. Na mesma medida, não se pode decretar a não validade de determinado feito artístico simplesmente por não ter exercido influência imediata em obras subsequentes: “Na economia da arte, como na economia da natureza, nada se perde e tudo se interliga” (Trotsky 1980a, 174)[v]. Lidamos mais com um trans-gresso, com um desenvolvimento não-linear dos fatos artísticos. Se não há mera casualidade, tampouco há causalidade irreversível na história das linguagens artísticas. Nisso a arte distingue-se igualmente da ciência, pois que se na história da ciência podem-se observar certos feitos que darão frutos mais à frente, a regra geral do curso histórico científico é a contínua superação imediata de seus feitos pelas vias da veracidade: uma vez comprovada determinada tese, certifica-se a hipótese anterior ou se a revoga de modo implacável. Em arte, contudo, não há verdades estabelecidas, e nem superadas. Os feitos artísticos sucedem-se continuamente sem se anularem, e o novo feito não anula o potencial estético de feitos passados; ao contrário: pela vias da intertextualidade, amplia-o[vi].

Erro e risco

Indubitavelmente o artista almeja a formulação que lhe interessa: a jouissance estética de sua obra. E o artista honesto deseja o acerto em suas elaborações. Mas diante da criação, não há como evitar o risco e, com ele, o próprio erro, e isto a ponto de o erro adquirir, às vezes, lugar de honra na obra de arte. Assim é que Arnold Schönberg, um dos maiores músicos do século XX, assevera: “[O erro] merece um lugar de honra, porque graças a ele é que o movimento não cessa, que a fração não alcança a unidade e que a veracidade nunca se torna verdade; pois nos seria demasiado suportar o conhecimento da verdade.”[vii] (Schönberg 2001, 458)

Vemos então que é na arte que toda a incerteza e toda a instabilidade da expressão têm lugar pleno de articulação, isto é, é na arte que a dramaticidade inerente a todo signo linguístico encontra seu lugar mais propício de exploração. A arte potencializa, assim, as ambiguidades e as antinomias já existentes na própria relação entre significantes e significados no interior do próprio signo linguístico e as que existem entre o próprio signo e o objeto que representa. A essa antinomia, que se revela como algo essencial à dinâmica das línguas, já se referia Jakobson, quando escreve: “Por que isto é necessário? Por que é necessário sublinhar que o signo não se funde com o objeto? Porque ao lado da consciência imediata da identidade entre signo e objeto (A é A1), é necessária a consciência imediata da ausência de identidade (A não é A1); tal antinomia é indispensável, pois que sem paradoxo não há dinâmica dos conceitos, nem dinâmica dos signos, a relação entre conceito e signo se automatiza, arrefece o curso dos eventos, atrofia-se a consciência da realidade.” (Jakobson 1985, 53).

A arte parece, pois, constituir o lugar ideal para o exercício supremo em cima das ambiguidades que os próprios veículos expressivos das linguagens artísticas oferecem ao criador. Com isso, acabam por instituir também o campo otimizado da percepção estética essencialmente dialética, pois a passagem seguinte, na qual Trotsky fundamenta, em termos filosóficos, a continua mutação que se traduz em essência de sua teoria da Revolução Permanente (revigorando o termo originariamente formulado em 1850 por Marx: “Revolution in Permanenz” (cf. Hosfeld 2011, 79)[viii]), assemelha-se sobremaneira à formulação jakobsoniana:

“O axioma ‘A’ é igual a ‘A’ é, por um lado, ponto de partida de todos os nossos conhecimentos e, por outro, é também o ponto de partida de todos os erros do nosso conhecimento. […] Para os conceitos, também existe uma ‘tolerância’ que não está fixada pela lógica formal baseada no axioma ‘A’ é igual a ‘A’, mas pela lógica dialética baseada no axioma de que tudo se modifica constantemente.” (Trotsky 1984, 70)

A invenção e o Novo

Se a religião lida com o dogma e sua crença, e se a ciência, com a hipótese e sua veracidade, a arte lida com a invenção e sua escritura (écriture, em sentido barthesiano). A obra artística empreende um movimento paradoxal no tempo, e tal paradoxo é de sua própria natureza: por um lado, tece relações, pelas vias da intertextualidade, com as obras passadas; por outro, centra grande parte de sua energia na invenção do Novo, apontando para o futuro. “Ich suche das Neue” – “procuro o novo”, diz um dos personagens da ópera Von heute auf morgen op. 32 de Schönberg. Todo anacronismo em arte, na repetição não inventiva e diluída de feitos passados, tende a morrer no ostracismo. Apenas o Novo irrompe no presente, abre caminhos e faz a obra perdurar, e apenas ele, quando não surte o “efeito” imediato da inovação, guardará potencial para sua redescoberta futura. Como objeto de conhecimento, o Novo é aquilo que permite à fruição estética a consciência do próprio exercício da sensibilidade. Marcel Proust escreve:

“Não conhecemos verdadeiramente a não ser o que é novo, aquilo que introduz bruscamente em nossa sensibilidade uma mudança de tom que nos atinge, aquilo que o hábito ainda não substituiu por seus pálidos fac-símiles.”[ix] (Proust 1989, 110)

Mais que irromper no presente, o Novo faz com que o criador com o presente não se contente e, abrindo caminhos, aponte para o futuro. Tal é o papel da vanguarda artística, correlata à vanguarda política. E foi desta forma que Arthur Schopenhauer, filósofo de cabeceira de Arnold Schönberg, e que tão bem definira o gênio artístico – conceito tão mal compreendido e preconceituosamente categorizado como uma noção “burguesa” –, referiu-se, em sua Metaphysik des Schönen, à “nervosidade” dos indivíduos geniais:

“[…] O presente raramente lhes é suficiente, porque na maior parte das vezes não preenche sua consciência, na medida em que é demasiado insignificante. Daí o empenho infatigável pela procura incessante de objetos novos, dignos de contemplação.” (Schopenhauer 2003, 63)

Controle absoluto versus imponderabilidade

A arte é, pois, o domínio da plena consciência e, por conseguinte, da quase desesperada – mas em geral muito prazerosa – busca por um total controle do feito artístico, pois o Novo é aquilo que desperta a consciência plena:

“Qualquer sucessão de eventos nos quais tomemos parte por meio de sensações, percepções e, possivelmente, de ações, gradualmente cairá para fora do domínio da consciência quando a mesma sequência de eventos se repetir, da mesma maneira e com elevada frequência. Mas será imediatamente elevada à região consciente se, em tal repetição, a ocasião ou as condições ambientais encontradas em sua busca diferirem daquelas que existiram em todas as incidências anteriores.” (Schrödinger 1997, 109)

O físico Erwin Schrödinger chama-nos a atenção, pois, para o fato de os processos orgânicos “associarem-se à consciência na medida em que são novos” (Schrödinger 1997, 112)[x], e quando Trotsky discorria, em passagem previamente aludida por nós, acerca do papel considerável que desempenham os processos subconscientes na obra de arte, não o fez em vão: reconhecer a interferência de processos subconscientes é, ao mesmo tempo, enaltecer a busca da consciência plena das articulações e dos jogos de linguagem ao elaborar uma obra de arte, pois que apenas com a plena consciência dos processos e almejando-se um controle o mais rigoroso das técnicas de escritura é que pode-se dar vazão a um afloramento genuíno dos processos inconscientes ou subconscientes. Em outras palavras, quanto mais controle se procura ter do objeto artístico, mais autêntico aquilo que, apesar de todo controle, brota de imponderável, imprevisível e inesperado. É, pois, no exercício de um chamado à consciência que acessamos a porta de nosso inconsciente; e é nisso que consistiu a revolução da psicanálise freudiana.

Nesse sentido, as poéticas do acaso em arte – tal como o Surrealismo –, são estéticas periféricas ou minoritárias, e mesmo tendo originado obras de valor, acabam sempre transparecendo uma clara e consciente postura do artista diante de sua criação. O artista não pode se furtar à sua responsabilidade diante do feito artístico; ele é, desta forma – e mesmo quando se pronuncia em sentido contrário –, a encarnação de sua própria consciência diante do Novo que deseja instituir: e é assim que se coloca, mesmo quando realiza mais sínteses do que inovações, na vanguarda estética de sua época[xi].

Liberdade e Utopia

Por todas as suas características e por sua essência especulativa, inventiva, a arte não aceita e nem poderia aceitar qualquer coerção. É o terreno da liberdade plena, pois que sem liberdade não pode haver pensamento especulativo. A obra de arte encerra em si, portanto, a possibilidade do impossível, sob o risco do erro, mesmo não se furtando o artista de sua enorme responsabilidade social e histórica – social, porque “até o discurso mais solitário do artista vive do paradoxo […] de falar aos homens”[xii] (Adorno 2003, GS 12, 28-9); histórica, porque mesmo quando enseja uma ruptura, o artista não deixa de se inserir na trama intertextual da história de sua linguagem e da linguagem dos homens. A obra de arte, por isso, é o lugar onde sonha-se acordado, no sentido do Tagtraum (sonho diurno) de que falava o filósofo marxista Ernst Bloch[xiii]; institui, assim, uma Utopia tópica: é o lugar ou ambiente, criado pelo artista, em que vive-se, com liberdade plena, o que ele a nós propõe, podendo-se, como espectador, sair deste mundo quando bem se queira e abandoná-lo, ou amar esse novo mundo e revisitá-lo. A liberdade da criação é correlata à liberdade de seu usufruto.

Por todas as suas leis gerais, somadas às suas leis específicas, vemos que os métodos marxistas são insuficientes para lidar com o fenômeno artístico, e, por conseguinte, qualquer controle exercido sobre a atividade artística criadora só poderá advir daqueles que desconhecem por completo a essência da criação artística e do próprio marxismo:

“[…] No campo da literatura e da arte, não queremos suportar nem a tutela ‘trotskista’ nem a stalinista. […] Um poder autenticamente revolucionário não pode nem quer se dar a tarefa de ‘dirigir’ a arte, e menos ainda dar-lhe ordens, nem antes e nem depois da tomada do poder. […] A arte pode ser o grande aliado da Revolução na medida em que seja fiel a si mesma.”[xiv] (Trotsky 1973, 210-211)

1 – O erro e o acerto surrealistas

Ao assumir o acaso como estratégia principal, o artista acaba abrindo mão da busca do controle total de seus materiais – mesmo sabendo que tal controle pleno será inatingível – e promove à primeira instância das elaborações artísticas aquilo que jamais emergirá na superfície da consciência sem abrir mão do que é: o subconsciente. Tal foi o erro fundamental – mas um erro que não deixou, frisemos mais uma vez, de dar origem a algumas obras de valor histórico – do Surrealismo, talvez a mais inconsistente das vanguardas históricas no campo das artes: assentar sua poética na crença de que o inconsciente pudesse constituir a instância primeira das elaborações artísticas.

A escritura “automática”, como queria André Breton em literatura, é, pois, uma ilusão, uma vez que todo processo de elaboração criativa, e portanto necessariamente interferente (pois visando um Novo), passa irrevogavelmente por opções conscientes do criador. Compreendeu-se mal o que Sigmund Freud formulava acerca do inconsciente, e o Surrealismo foi, a rigor, um ledo engano. O próprio Trotsky, nas discussões que entreteve com Breton com vistas à elaboração do Manifesto da F.I.A.R.I. (Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente), esboçou suas dúvidas quanto ao emprego do acaso por Breton, como relata o poeta francês em seu discurso na concentração organizada pelo Partido Operário Internacionalista em comemoração ao aniversário da Revolução de Outubro em 11 de novembro de 1938, em Paris. Teria lhe dito Trotsky: “Camarada Breton, o interesse que você dedica aos fenômenos de acaso objetivo não me parece claro” (Trotsky & Breton 1985, 62). O Manifesto, como se sabe, foi redigido por Breton, corrigido por Trotsky e assinado no México a 25 de julho de 1938 por Breton e Diego Rivera (Trotsky achou por bem não assiná-lo, pois abstendo-se, transpareceria a autoria clara dos artistas), e centra questão nas condições sociais e políticas da arte e na necessidade da afirmação de sua liberdade, mas ele não trata, obviamente, de questões eminentemente artísticas, ficando o emprego do acaso e a discussão acerca da pertinência ou não de seu uso fora do âmbito do documento. O diálogo relatado por Breton bem demonstra, entretanto, que a aproximação de Trotsky com o Surrealismo pautou-se sobretudo por uma estratégia política, e não por um viés propriamente artístico.

E justamente nesse ponto reside a importância do Manifesto. Ainda que aliado a um movimento artístico – arriscamo-lo a dizer – de pouca consistência ou no mínimo questionável, Trotsky alia-se, sintomaticamente, a uma corrente artística que, mesmo se incorrendo no risco do erro, adquiria grande projeção como corrente da vanguarda artística internacional e colocava-se em crassa oposição ao raso realismo imposto pelo totalitarismo stalinista: o Realismo Socialista.

De projeção internacional foi também, à época do Manifesto e depois dele, a oposição ao Realismo Socialista pela esquerda anti-stalinista. Num importante texto intitulado “Realismo não é realidade” (de 11 de maio de 1957), o revolucionário brasileiro, certamente o maior crítico de arte do Brasil, Mário Pedrosa, bem afirmaria em sua conclusão: “Não se pode pôr nenhum ismo na realidade” (Pedrosa 1995, 106). A crítica de Pedrosa voltava-se ao Realismo Socialista stalinista, ainda predominante na cultura soviética naquele final da década de 1950, mas sua oposição ecoa, na verdade, os brados do Manifesto trotskista de 19 anos atrás. E, nesse ponto, o Surrealismo empreendeu talvez seu maior acerto: afirmar-se como a corrente que mais claramente se opôs à barbárie cultural que o stalinismo impôs não somente aos artistas, mas a toda a população sob o domínio soviético. Dez anos depois deste seu breve texto em oposição ao jdanovismo cultural, Pedrosa ainda voltaria ao tema (no texto “A Revolução nas artes”, de novembro de 1967) e, referindo-se incialmente à postura radicalmente aberta e estimuladora de Trotsky perante à arte de vanguarda de seu tempo (mais especificamente à obra de Vladimir Tatlin em seu Literatura e Revolução), proclama:

“Eis aí a linguagem racional, honesta, de um dos grandes construtores do regime, em face dos projetos mais livres e audaciosos dos seus artistas. Mas tudo mudou depois; a arte dos mais autênticos artistas revolucionários russos é expulsa, jogada nos porões dos museus e muitos deles são obrigados a exilar-se ou esconder-se ou capitular moral e esteticamente diante dos poderes cada vez mais distantes e amedrontadores do dia, no ano mesmo em que Trotsky é também expulso da própria Rússia soviética, em 1929, e transformado num herético tangido de país em país, até morrer assassinado por um agente de Stalin, no México, em 1940, às vésperas da invasão da Rússia dos sovietes, sua terra e sua obra também, pelas hordas de Hitler.” (Pedrosa 1995, 150)

2 – O papel das artes e da cultura nas sociedades modernas

A questão principal que se coloca é: se todo produto artístico advém necessariamente de uma sociedade econômica e politicamente organizada, se inevitavelmente reflete consigo – mesmo que a eles se opondo – traços ideológicos e classistas dessas sociedades, e se a defesa da liberdade e da total ausência de coerção é conditio sine qua non para o exercício do fazer artístico, qual a relação de correspondência que se mantém entre arte e sociedade?

A arte na sociedade stalinista

Quanto ao stalinismo, não restam dúvidas – certeza esta corroborada pelo raso nível de elaboração artística das obras do Realismo Socialista: com a ascensão do poder stalinista e a burocratização do Estado Soviético, é indubitável a utilização da arte por parte da burocracia, mediante coerção e cerceamento da liberdade criativa, como propaganda da casta dirigente e propagação de uma nova forma de “capitalismo de Estado”, sufocando as vozes independentes na arte e na política que se opõem à burocracia e impondo à fruição artística – ao que sobrou dela – a ideologia dominante. Todos os atributos da arte, tais quais verificados acima, são contrariados ou simplesmente abolidos:

A intertextualidade é anulada, pois que, para o stalinismo, dialogar com a história é dialogar com a arte burguesa, que deve ser esquecida;

A tecnicidade é sacrificada, pois denegando sua própria história, de onde se desenvolve, a obra aplasta sua técnica no nível de uma mera representatividade inequívoca e direta (o culto à personalidade na pintura; o uso restrito de uma tonalidade elementar – e anacrônica, paradoxalmente burguesa – na música etc.);

A não-linearidade é denegada, pois todo produto artístico tem forçosamente que representar a inevitabilidade do transcurso histórico que resulta na emergência do grande Líder (burocrático) da Revolução, e tem-se a instauração do romance ou da poesia essencialmente teleológicos, finalistas, dirigidos ao tom apoteótico do novo regime;

Não há mais espaço para a experimentação livre: o erro ou o risco são categoricamente abolidos, pois que a arte passa a ser deliberadamente afirmativa, lugar ideológico da supressão de toda dúvida no enaltecimento do Estado Soviético;

A invenção e o Novo dão lugar aos preceitos vindo de cima e às fórmulas de expressão artística aceitas pela burocracia, e não à toa tanto técnica quanto elementos de linguagem constituem, na verdade, recursos há muito usados – e bem melhor – pela arte burguesa do passado: figurativismo, tonalidade, versificação tradicional na poesia, arquitetura cerceada por mera utilidade prática dos espaços etc.;

O controle sobre os materiais cede passo ao controle exercido não pelo artista, mas pelos poderosos sobre os artistas; o regime “aprova” ou “reprova” a produção artística, num verdadeiro aniquilamento dos esforços nos quais o artista deve empreender sua força criativa para o domínio dos matérias de sua própria escolha, e consequentemente, num total controle não apenas sobre as formulações conscientes do criador, como também sobre elementos imponderáveis que delas pudessem emergir; para o “realismo” socialista, não há espaço para o improvável: a arte é o lugar da afirmação daquela realidade, inquestionável;

Por fim, aniquila-se a liberdade e o sonho – contrariando fundamentalmente Lenin, segundo o qual “quem não pode sonhar é um mau comunista” (Lenin apud Lunatchárski 2018, 239); a arte deixa de ser o lugar da Utopia para ser o topos de afirmação ideológica do poder instituído, pois que, para a burocracia, não há mais onde se chegar: se proclama-se o Socialismo em Um Só País, então seria este o lugar do Socialismo: o lugar da burocracia intangível.

Por todas essas razões, o Realismo Socialista decretara, na verdade, a morte da arte, ou, como já o dissemos, seu suicídio, e por tal viés Trotsky faz alusão ao caráter simbólico do ato trágico de Maiakovski. E nisso, o Realismo Socialista deu as mãos ao fascismo, pois nada mais simbólico e ao mesmo tempo real e cruel que a intenção desvelada pela sentença proferida pelo promotor fascista Michele Isgrò, em 28 de maio de 1928, diante do intelectual e revolucionário Antonio Gramsci, quando o Tribunal de Mussolini condena-o ao cárcere: “Per vent’anni dobbiamo impedire a questo cervello di funzionare![xv] (in: Gramsci 1977, XXV).

A arte nas sociedades capitalistas

Mas o que dizer da relação entre arte e sociedade nos marcos do capitalismo em período concomitante à burocratização do Estado Soviético, época na qual originou-se o Manifesto da F.I.A.R.I.?

Neste período – e na verdade já desde o início do século XX, com o advento do atonalismo na música, da arte expressionista e das vanguardas históricas (incluindo o próprio Surrealismo em artes plásticas), com as experimentações poéticas que tenderam a ultrapassar a versificação ordinária na poesia (Mallarmé e outros), dando origem à poesia visual, concomitante ao processo de extrema densificação ou de uma “poetização” da prosa (Joyce) etc. –, os artistas visionários da vanguarda – aqueles aos quais Trotsky se referiu como “escombros criativos” que vislumbravam novas formas de ver a arte – sentiam-se cada vez mais apartados da sociedade. A contrário do apogeu da arte burguesa, que se deu com o desenvolvimento inicial do capitalismo até a virada do século XIX para o século XX, em que o artista, mesmo quando contrapondo-se à ordem sócio-política, encontrava ainda certo respaldo social para sua arte, assistimos, com a crise do capitalismo de início da era moderna e o advento do capitalismo monopolista e do imperialismo, a um divórcio entre arte de vanguarda e público, processo esse que deu lugar à emergência de uma forte padronização da arte de consumo com o advento do que Theodor W. Adorno definirá, como toda pertinência, de indústria cultural. A arte experimental – tal qual a grande arte sempre o foi, diga-se de passagem –, passa a ser, se não propriamente amordaçada, ao menos sistematicamente isolada e circunscrita cada vez mais a especialistas. Na sociedade capitalista moderna, o artista moderno é um artista fundamentalmente incompreendido, exótico, alienado do contato com as grandes massas. Isola-se, voluntária ou involuntariamente, em sua “torre de marfim”. Paradoxalmente, pelo caráter “elitista” que lhe é imposto pelos mecanismos da indústria cultural, passa por vezes a ser identificado inclusive como o “artista burguês” sui generis, e por vezes é por isso mesmo valorado sobremaneira, o que, lhe dando certo sustento (quando não tornando-o um abastado), o isola ainda mais da massa dos trabalhadores e, se consciente de seu papel revolucionário, o arremessa na contradição com seus próprios ideais[xvi]. Aquilo que apresentava-se como um “protesto” trata de ser logo assimilado pelo sistema, e isto em plena época da emergência de uma verdadeira cultura de massa, até então inexistente na história do saber humano. É como se, justamente diante de uma fase em que a comunicação e seus meios de transmissão atingem potencialmente um número maciço de pessoas, o capitalismo o condenasse com a seguinte sentença: “Viva bem com seus protestos e suas incompreensíveis experimentações, mas contente-se em veicular seus produtos apenas entre nós, burgueses, que lhe pagamos bem!”

É nesse sentido que, ainda hoje, se reveste de grande atualidade as palavras-de-ordem com as quais o Manifesto trotskista se encerra:

“A independência da arte – para a Revolução!
A Revolução – para a liberação definitiva da arte!”

A emancipação do espírito, a que almeja a Revolução Socialista, é também a emancipação da arte, topos onde se encontra o espírito em sua forma mais livre e soberana.

3 – As contradições entre as artes e a indústria cultural capitalista: um balanço dialético

Se consciente de seu papel como artista, e se consciente do papel revolucionário das artes, o artista é, na sociedade capitalista – e independentemente do fato de ser bem ou mal remunerado –, um infeliz. Para entendermos a complexidade de sua situação dramática, nada melhor que a metáfora empregada por Adorno e Max Horkheimer na Dialética do esclarecimento (Dialektik der Aufklärung), reportando-se ao famoso episódio na Odisseia de Homero, quando Ulisses, ouvindo e usufruindo do canto das sereias, tem suas mãos presas ao mastro da nau para não se sentir impelido a se jogar ao mar, enquanto os remadores, para que não se deixem levar pelo prazer daquele canto e também serem tentados a se suicidarem, têm seus ouvidos tampados por cera, um episódio que bem ilustra a crítica adorniana com relação à sociedade de consumo capitalista, como descreve de forma magistral o filósofo marxista brasileiro Rodrigo Duarte:

“A crítica se aprofunda em virtude do ardil empregado por Ulisses para sobreviver ao canto das sereis: seus comandados, que devem impulsionar a embarcação, têm seus ouvidos preenchidos com cera para não ouvirem a música e remarem vigorosamente. O próprio Ulisses gostaria de ter uma noção, ainda que vaga, da beleza do canto, e então se deixa atar ao mastro do navio a fim de não se atirar para a morte ao ser hipnotizado pelo som. De acordo com Adorno e Horkheimer, essa situação é uma alegoria da situação da arte e da cultura no que eles chamam de ‘mundo administrado’, pois elas tornam-se um artigo de luxo para o consumo de uma pequena minoria, que, no entanto, se encontra de mãos e pés amarrados, e totalmente inacessíveis à imensa maioria, a quem cabe tocar o barco com os ouvidos tampados, sem qualquer perspectiva de ter pelo menos uma noção da beleza em seu grau superlativo.” (Duarte 2002, 32, grifos do autor)

Ou seja, o criador ou aquele que o compreende e tem acesso à sua obra usufruem da arte, mas, impotentes, têm suas mãos atadas diante da sociedade, enquanto que os trabalhadores se veem impedidos de exerceram sua sensibilidade estética, pois se isto viesse a ocorrer, a arte serviria, certamente, como instrumento propício ao despertar de sua consciência. Uma vez acessível, a arte torna-se aliada da fome: aos anseios por melhores condições de vida corresponderão, necessariamente, os anseios de uma melhor qualidade de vida, o que implica diretamente o exercício pleno da cultura. A arte – e este aspecto, ainda que implícito, não é abordado por Adorno e Horkheimer – guarda, tal como bem ilustra o genial episódio de Homero, um potencial transformador, e por isso não deixa de ser vista, pelo sistema capitalista, como perigosa e ameaçadora. Por tal razão, o capitalismo não titubeia no incentivo da produção de uma cultura de massa, tanto rasa quanto muito disseminada, servindo de amortecimento à sensibilidade estética. Daí o fato simbólico de que o canto das sereias incita aqueles que os usufruem à morte, pois que ninguém pode resistir à (sua) beleza e, consequentemente, ao desejo de ter acesso ao pleno exercício da sensibilidade estética, o que iria de encontro ao capitalismo como forma de exploração do trabalho; mais que isso: dobrando-se à beleza estética em plena sociedade de classes e arremessando-se ao mar do deleite estético, o artista caminha em direção à sua própria morte, a uma morte social de sua produção intelectual.

Frente às condições culturais que nos impinge o sistema capitalista, ao homem de cultura não lhe restam mais que duas alternativas: integrar-se ao sistema, adaptando-se e servindo aos mecanismos de alienação cultural; ou resistir e opor-se a esses mecanismos, denunciando, com sua visão apocalítica e com sua obra de vanguarda (seja em seu conteúdo, seja em sua forma – por simplesmente fazê-la –, ou em ambos), os meandros ideológicos pelos quais o capitalismo amordaça a sensibilidade da grande maioria da população e desta aliena a sua própria produção sensível. Mas de uma forma ou de outra, o artista necessariamente lida com essas questões no capitalismo, pois, vivendo nele, é com os mecanismos do sistema capitalista que também terá de lidar para sua sobrevivência. Se Marx bem ressaltava essa condição avessa ao criador no capitalismo, ao dizer, na “Teoria sobre a Mais-Valia”, que “a produção capitalista é hostil a certos ramos da produção intelectual, como a arte e a poesia” (Marx in: Marx & Engels 1974, 64), defendendo a integridade do artista ao mesmo tempo em que afirmando que o artista não deveria criar visando lucros, mas evidentemente precisaria de recursos financeiros para criar[xvii], ele bem sabia que nada escapa ao capitalismo, que trata tudo como mercadoria. É a isso que se reporta o início de O Capital, em frase que, aos ouvidos do artista radical, soa como uma sórdida realidade:

“A mercadoria é em primeira instância um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, sacia necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza de tais necessidades – se estas provêm por exemplo do estômago ou da fantasia – não altera este fato em nada.”[xviii] (Marx em Das Kapital – Kritik der politischen Ökonomie, Erster Band, Buch I: Der Produktionsprozeß des Kapitals, in: Marx & Engels 1986, 49)

A análise sociológica de Umberto Eco, na descrição perspicaz desses dois tipos de postura – a dos apocalíticos e a dos integrados –, reveste-se, então, de grande relevância no debate sobre a cultura nas sociedades de consumo. Mais que isso: uma vez que o artista irrevogavelmente vive no sistema capitalista (até que uma Revolução Socialista o revogue), sua análise sobre os prós ou contras da indústria cultura reveste-se de grande pertinência, uma vez que, ao criá-los, o capitalismo não deixa de trazer à luz muitas contradições quanto aos mecanismos de sua dominação cultural.

As peças de acusação contra a indústria cultural

Expondo de modo sucinto o que Eco chamou de “peças de acusação” contra os mass media (meios de comunicação de massa), a cultura de massas capitalista e a indústria cultural (cf. Eco 2011, pp. 40-43), temos os seguintes argumentos:

A cultura de massas tende a uma padronização indistinta do gosto popular através de uma própria indistinção dos seres que compõem as massas populares; age como se o gosto popular pudesse se nortear por um gosto médio (e mediano), aplastando as diferenças e anulando as individualidades;

Ela não promove “renovações da sensibilidade” (p. 40), mas antes reforça velhas tradições estilísticas, diluindo valores culturais burgueses nas instâncias socialmente subalternas das sociedades de consumo, como se se tratasse de soluções artísticas atuais e inovadoras;

A indústria cultural provoca ou evoca emoções intensas, apelando ao pathos sentimental como veículo de alienação em oposição a uma real elaboração da sensibilidade, tal como ocorre mormente na música, usada “como estímulo de sensações mais do que como uma forma contemplável” (p. 40);

Através da força persuasiva da publicidade, a indústria cultural modela o consumo e o desejo da população;

Mesmo quando veicula produtos culturais de grande elaboração, a indústria cultural o faz de forma nitidamente diluída, seja na forma, seja nas “pequenas doses” pelas quais administra tais acessos (p. 41);

A indústria cultural procura “nivelar” os produtos culturais de alta elaboração com produtos culturais estilizadamente amordaçados por estilemas-padrão, amortecendo, assim, o potencial crítico e o interesse, pelas vias da distinção do que é mais elaborado, pelo exercício pleno da sensibilidade, e desestimulando, por conseguinte, o “esforço pessoal pela posse de uma nova experiência” (p. 41);

Na indústria cultural, abunda a oferta cultural rasa e, com isso, inflaciona-se o exercício cultural através do encorajamento de “uma imensa informação sobre o presente” (p. 41); com isso, os mass media “entorpecem toda consciência histórica” (p. 41);

“Feitos para o entretenimento e o lazer”, os meios de comunicação de massa enaltecem “unicamente o nível superficial da nossa atenção”, e dessa forma o produto de cultura não atua “como um organismo estético a ser penetrado em profundidade, mediante uma atenção exclusiva e fiel” (p. 41); a arte é diluída como “fundo” em meio a outras atividades da vida social, e não como lugar de exercício e aprofundamento da sensibilidade estética;

Instituem-se e impõem-se, assim, “símbolos e mitos de fácil universalidade” (p. 41) e de fácil reconhecibilidade, nivelando as individualidades ao nivelá-las ao mínimo;

Deste modo, a indústria cultural atua de modo essencialmente conservador, reforçando de modo sistemático o consenso comum e, subliminarmente, enaltecendo todo conformismo acrítico;

Por fim, os mass media atuam “como uma típica ‘superestrutura de regime capitalista’” e como “instrumento educativo típico de uma sociedade de fundo paternalista mas, na superfície, individualista e democrática” (p. 42).

As fissuras da indústria cultural

Diante dessa realidade, há de se reconhecer, dialética e estrategicamente, de um ponto de vista revolucionário, os eventuais pontos positivos e contraditórios na forma como são agenciados os meios de comunicação capitalistas e a indústria cultural burguesa, valendo-se das fissuras do sistema para empreender uma tática de transformação cultural efetiva que se oponha aos mecanismos de dominação classista, e isto mesmo ainda dentro dos marcos do capitalismo. Explorar tais fissuras e tais contradições equivale a estabelecer um programa mínimo no âmbito da cultura. Eis, em resumo, os argumentos ou relativamente favoráveis aos mass media, ou com os quais o artista revolucionário terá por força de lidar, tais como expostos por Eco (cf. Eco 2011, pp. 44-48):

A cultura de massa inevitavelmente decorre de toda sociedade industrial, a partir dos novos meios de reprodutibilidade técnica e da veiculação de massas das informações e dos bens culturais, não sendo, segundo Eco, algo típico apenas “de um regime capitalista” (p. 44); Eco evoca as culturas de massa da China de Mao e da União Soviética;

Ela é veículo necessário a qualquer comunicação de qualquer grupo político ou econômico em sua comunicação “com a totalidade dos cidadãos de um país” (p. 44);

Ela veicula informações antes inacessíveis a grande parte da população; “portanto, o homem que assobia Beethoven porque o ouviu pelo rádio já é um homem que, embora ao simples nível da melodia, se aproximou de Beethoven […], ao passo que uma experiência do gênero era, outrora, privativa das classes abastadas, entre cujos representantes, muitíssimos, provavelmente, embora submetendo-se ao ritual do concerto, fruíram a música sinfônica ao mesmo nível de superficialidade” com que o faz a maioria da população com os produtos da chamada baixa cultura capitalista (p. 45);

O acúmulo de informação verte-se, de algum modo, em formação (p. 46), em que dados quantitativos acabam como que promovendo certa mutação qualitativa dos níveis culturais, através de um afluxo abundante de absorção, ainda que superficial, de dados culturais; a veiculação dos bens culturais em abundância acaba, de certo modo, fazendo com que as massas tenham contato de alguma forma com os produtos mais elaborados da alta cultura burguesa, podendo despertar o anseio nas massa de um maior acesso à cultura e à educação;

Eco força-nos a reconhecer que “desde que o mundo é mundo, as multidões amaram os circenses” (pp. 46-47), ou seja, os produtos de entretenimento sempre fizeram parte do “gosto das massas” e dizem respeito a certa necessidade básica dos seres humanos pela distração e pelo lazer[xix];

Eco insiste, ainda, no fato de que “uma homogeneização do gosto contribuiria, no fundo, para eliminar, a certos níveis, as diferenças de casta, para unificar as sensibilidades nacionais”, ao que se pretende, em última instância, todo projeto socialista;

Quanto ao que chama “revolução dos paperbacks” (p. 47), com a publicação e edições baratas ou de bolso de grandes clássicos a preços muito acessíveis, Eco vê aí uma forma positiva de divulgação massiva de produtos de grande elaboração artística;

Segundo Eco, toda comunicação de massa tende ainda a, de certo modo, tornar-se um slogan, tornando-se alvo de “uma recepção de tipo esquemático e superficial” (p. 47), como os próprios escritos ou teses críticas à própria cultura de massas e até mesmo como a própria visão marxista do que seja a cultura, que acabou dando vazão inclusive à visão stalinista do Realismo Socialista; o fenômeno de um “nivelamento por baixo” não é exclusivo, portanto, da cultura de massas do capitalismo;

Há indiscutivelmente certa sensibilização do homem contemporâneo face ao mundo, mesmo que pelo viés de uma oferta abundante sem que sejam sugeridos “critérios de discriminação” (p. 48) entre as informações veiculadas; Eco argumenta que as massas “atuais”, das sociedades contemporâneas, “parecem-nos bem mais sensíveis e participantes, no bem e no mal, da vida associada, do que as massas da antiguidade, propensas a reverências tradicionais face a sistemas de valores estáveis e indiscutíveis” (p. 48); ou seja, “os grandes canais de comunicação difundem informações indiscriminadas, mas provocam subversões culturais de algum relevo” (p. 48);

“Por fim”, afirma Eco, “não é verdade que os meios de massa sejam estilística e culturalmente conservadores. Pelo fato mesmo de constituírem um conjunto de novas linguagens, têm introduzido novos modos de falar, novos estilemas, novos esquemas perceptivos”, instituindo certa “renovação estilística” (p. 48) no seio das sociedades de massa.

É indubitável que, mesmo quando apontando certas contradições e coexistência entre aspectos positivos e negativos dos meios de comunicação de massa e da própria indústria cultural, os argumentos de Umberto Eco revelam-se como pertinentes e devem ser levados em conta por aquele que se coloca do ponto de vista marxista, leninista ou trotskista diante da cultura.

Há de se observar, ainda, que a criação resulta sempre da equação entre as condições históricas a que se submete o criador e sua capacidade criativa, seu talento, e por vezes um produto de cultura passa a ser avaliado por quanto o criador conseguiu, em sua obra, superar os limites sociolinguísticos que lhe eram impostos. Se isto é válido para a obra da chamada “alta cultura”, ou seja, para as obras que, vanguardas à época de sua concepção, delinearam e impulsionaram o desenvolvimento das linguagens artísticas ao longo da história, isto deveria também ser levado em conta, nas devidas proporções, com relação às obras advindas da cultura popular de massa nas sociedades capitalistas ou mesmo nas atividades culturais autenticamente folclóricas: há, indubitavelmente, criações artísticas de valor mesmo naquelas que se enquadram dentro dos moldes da cultura de massa (como, aliás, reconhece Eco), isto é, obras que procuram superar os limites que lhe são impostos[xx]. A relativização que deve, entretanto, ser levada igualmente em conta no que diga respeito às criações da arte popular “de consumo” decorre do fato de que, mesmo se dando lugar a genuínas obras de valor, os limites dentro dos quais o artista cria, moldados pelo sistema cultural de consumo, não chegam a ser superados a ponto de instituir um Novo estético, isto é, a obra artística não passa de certos limites e sua intertextualidade (aquilo com o qual dialoga no âmago mesmo da linguagem) se encontra limitada a um campo restrito, condizente com certos padrões aceitos pela indústria cultural. Tais obras não são verdadeiramente especulativas, e por tal razão não é a elas que se refere um Manifesto como o da F.I.A.R.I.: o ponto de apoio estético de um documento como este encontra-se sintomaticamente – com todos os seus problemas – no Surrealismo, ou seja, numa das tendências das vanguardas históricas.

Por fim, se os pontos negativos da cultura de massas constituem os aspectos a serem combatidos numa sociedade de consumo e denegados na construção do Socialismo, há de se reconhecer os pontos positivos que as contradições da indústria cultural nos revelam para que sirvam a uma causa revolucionária da cultura como um todo. Quando o próprio Lunatchárski, em fase áurea de sua atuação revolucionária num texto de abril de 1919 (“O proletkult e o trabalho cultural soviético”), escreve que “o proletariado deve ter plena propriedade da cultura universal [grifo do autor]”, e que “menosprezar a ciência e a arte do passado sob o pretexto de que elas são burguesas é tão absurdo quanto, sob o mesmo pretexto, jogar fora as máquinas das fábricas ou as estradas de ferro” (Lunatchárski 2018, 58), aponta para a mesma evidência formulada anos depois (em 1939) por Trotsky a respeito da necessidade, em uma nova sociedade socialista, de se utilizar dos avanços e das conquistas das sociedades burguesas, o que se aplica igualmente ao domínio da cultura:

“Para salvar a sociedade não é necessário deter o desenvolvimento da técnica, fechar as fábricas, conceder prêmios aos agricultores para que sabotem a agricultura, depauperar um terço dos trabalhadores nem convocar os maníacos para fazerem as vezes de ditadores. […] O que é indispensável e urgente é separar os meios de produção de seus atuais proprietários parasitas e organizar a sociedade de acordo com um plano racional.” (Trotsky 1990, 57-58)

No Socialismo, os meios de comunicação de massa não deveriam ser, portanto, destruídos ou denegados, mas sim expropriados dos usurpadores da cultura, vertendo-os em meios de aprofundamento cultural das massas ou, melhor dizendo, dos indivíduos.

4 – Mário Pedrosa: pensador trotskista da cultura

“A vida é por demais rica em surpresas para ser encasulada em quaisquer hipóteses elaboradas pelo espírito” (Pedrosa 1939, 317). Assim se expressa o maior político revolucionário da história do Brasil em um dos mais lúcidos textos da literatura marxista: “A defesa da URSS na guerra atual”[xxi]. A frase, de cunho filosófico, na verdade dirigia-se ao “dogma” defendido pelos trotskistas, e em obediência a Trotsky, da defesa incondicional da URSS, ao qual se opôs Pedrosa como um dos mais ativos trotskistas na construção da IV Internacional. Lembremo-nos que foi Pedrosa quem, ao lado do grego Georges Vitsoris, substituiu Rudolf Klement, sequestrado e esquartejado por agentes stalinistas, como secretário administrativo do Movimento pela IV Internacional, tendo atuado ativamente na conferência de sua fundação no congresso de 3 de setembro de 1938, em Périgny, nos arredores de Paris[xxii].

Para Pedrosa, mais que um Estado Socialista Burocratizado, o stalinismo já teria convertido a União Soviética numa espécie de Capitalismo de Estado, e a depender da situação política em que a URSS se encontrasse em um dado confronto bélico, o defensionismo até então defendido por Trotsky deveria ser relativizado, uma vez que as ações do Exército Vermelho, sob o comando de Stalin, por vezes massacravam ou no mínimo neutralizavam as forças potencialmente revolucionárias nos países invadidos (tal qual foram os casos das invasões soviéticas na Polônia e na Finlândia em 1939). O debate, trazido por Pedrosa ao seio da IV Internacional em gestação[xxiii], e apesar de ele ter sido o único representante das dez seções trotskistas latino-americanas no Congresso de Périgny (cf. Karepovs 2017, 74), custou-lhe o afastamento das fileiras trotskistas por iniciativa do próprio Trotsky, como bem relata a atriz e militante trotskista Lélia Abramo:

“Houve um tempo em que até com Trotsky ele [Pedrosa] teve um desentendimento e houve uma ruptura – foi quando Trotsky, na discussão havida na IV Internacional, impôs a palavra de ordem de defesa incondicional da União Soviética, já que defender a URSS seria defender a própria revolução, posição que se acirrou com o pacto Hitler/Stalin. Nesse ponto Mário Pedrosa redigiu um documento em que fez restrições à linha de Trotsky. Como consequência, Trotsky reorganizou a Secretaria da IV Internacional e Mário Pedrosa foi excluído.” (Abramo in: Karepovs 2017, 22)

O assassinato de Trotsky no México pouco tempo após o acalorado debate talvez tenha contribuído para provar que Pedrosa quiçá estivesse certo. Como quer que seja, se a discussão acabou tirando Pedrosa da IV Internacional, não o tirou do trotskismo: sua trajetória e obra teórica e crítica comprovam que continuou, até o fim de seus dias, fiel às concepções de Trotsky, ao qual constantemente se referia com respeito e admiração, e em especial sua atuação como crítico de arte e curador constitui a prova de que uma das maiores influências que exerceram o Manifesto da F.I.A.R.I. e as concepções marxistas, leninistas e trotskistas acerca da arte e da cultura foram justamente em solo brasileiro.

Em seu magnífico texto “Arte e Revolução”, aqui já citado, Pedrosa desfere seu arguto ataque contra o stalinismo cultural, sempre a partir de um ponto de vista trotskista. Tanto sua fé na Revolução Socialista quanto sua defesa incondicional da sensibilidade estética, em oposição ao espírito obtuso que tanto caracterizou o jdanovismo cultural, transparecem implacavelmente quando diz:

“A revolução política está a caminho; a revolução social se vai processando de qualquer modo. Nada poderá detê-las. Mas a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do indivíduo, sua alma, não virá senão quando os homens tiverem novos olhos, novos sentidos para abarcar as transformações que a ciência e a tecnologia vão introduzindo, dia-a-dia, no nosso universo, e, enfim, intuição para superá-las. […] Confundir, pois, revolução política com revolução artística é de um primarismo bem típico da mentalidade burotecnocrática dominante nos Estados onipotentes ou totalitários de nossos dias, e de que o comunismo stalinista é ainda hoje a expressão mais acabada e sinistra.” (Pedrosa 1995, 98)

Sua palavras convergem para o Manifesto da F.I.A.R.I. em seu oitavo ponto, quando ali se afirma que “a arte não pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer diretiva estrangeira e a vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder atribuir-lhe, para fins pragmáticos, extremamente estreitos”. Opondo-se ao Estado totalitário stalinista e tendo passado sua vida lutando pelo Socialismo, Pedrosa foi um defensor da liberdade, do pensamento, da arte e da justiça social – em suma, de um Socialismo libertário. Ao final de sua vida, assinou, comovido, a ficha de filiação número 1 do emergente Partido do Trabalhadores (do qual provavelmente já teria saído ou sido expulso, convicção que é corroborada pela política reformista dos governos petistas que, em parte – e mesmo à sua revelia –, contribuíram para a ascensão ao poder do neofascismo no Brasil atual). Se estivesse vivo hoje, Pedrosa estaria certamente defendendo a arte de vanguarda e o Socialismo, de forma coerente com a trajetória política de toda a sua vida.

Num tributo a Pedrosa, o grande psicanalista e poeta marxista Hélio Pellegrino, um de seus companheiros de viagem, escreveria, no Jornal do Brasil de 5 de fevereiro de 1960, as comoventes palavras:

“Mario Pedrosa foi, indiscutivelmente, nosso mestre, e não só mestre nosso: ele ensinou ao Brasil inteiro que a revolução socialista é uma procura de liberdade, de mais liberdade. Não há socialismo autêntico sem liberdade, mas, ao revés, também não existe liberdade sem socialismo, já que não há verdadeira liberdade sem justiça.” (Pellegrino in: Karepovs 2017, 220)

A humanidade hoje não vive mais encurralada entre o stalinismo cultural e a indústria cultural capitalista. Nessa balança, o artista revolucionário não teria por onde ganhar. À exceção dos poucos países em que a Revolução Socialista permanece vitoriosa – como notadamente em Cuba –, o stalinismo, infelizmente, cumpriu seu curso, tal como previra Trotsky em 1936 em A Revolução traída, e o capitalismo foi restaurado. O fato, porém, de estarmos aqui, em Cuba, discutindo o legado trotskista é a prova mais cabal de que nem o stalinismo, nem o fascismo – para reportarmo-nos à sentença fascista condenatória de Gramsci – conseguiram aplacar o funcionamento do cérebro revolucionário, e se o golpe fatal do agente stalinista – que, em época de aliança inevitável e importante com a União Soviética burocratizada, encontrou paradoxalmente em Cuba seu último asilo –, se este golpe foi desferido justamente contra o cérebro do grande líder do Exército Vermelho, ele não foi suficiente para estancar a ressonância de suas ideias.

Hoje, já não existe o Realismo Socialista: ele é um defunto da história, como o stalinismo; encontra-se no ostracismo, como toda mediocridade. As vanguardas artísticas, por sua vez, não se sentem ameaçadas, mas tampouco encontram espaço, no capitalismo, para seu pleno florescimento: são, quando muito, assimiladas como o eram antes, em tom de desprezo, com sua ineficácia social, pelas malhas da quase hegemonia mundial do Capital. A conclusão do Manifesto da F.I.A.R.I., contudo – e justamente por tal razão –, permanece de uma clamorosa atualidade: a arte reivindica o Socialismo, e este, seu caráter libertário. E nada mais confluente com a essência da arte do que isso. Pois, como diria Trotsky em A Revolução traída, “a criação espiritual necessita de liberdade” (Trotsky 1980b, 125).

*Flo Menezes é Compositor, autor de cerca de cem obras em diversos gêneros musicais e de mais de dez livros, é fundador e Diretor do Studio PANaroma de Música Eletroacústica da Unesp (Universidade Estadual Paulista), onde é Professor Titular de Composição Eletroacústica.

O presente texto foi apresentado originalmente no Congresso “León Trotsky – vida y contemporaneidad. Un abordaje crítico” (Cuba, maio de 2019)

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Notas


[i] A própria tradição revolucionária marxista tem como certo a liderança das massas por parte de uma vanguarda revolucionária, a qual, pelas próprias condições estruturais das sociedades de classes, adviriam naturalmente de uma pequeno-burguesia. Como escreve Domenico Settembrini em seu verbete tendenciosamente crítico quanto ao Leninismo, porém, nesta passagem, com pertinência constatadora quando aborda a teoria de Lenin em sua superação do tradicional populismo russo: “Visto que a evolução da classe operária, no regime democrático parlamentar, a afasta do caminho do socialismo, far-se-á necessário, antes de qualquer coisa, um guia que mantenha as massas no justo caminho. Eis, pois, encontrada a necessidade e a tarefa de um partido integrado por revolucionários profissionais de origem pequeno-burguesa, formado fora da classe operária e não passível de controle nem de influência por parte dela. Partido que será o depositário da verdade, como intérprete da essência mais real da classe operária, a encarnação atual do socialismo, a única garantia de seu advento futuro.” (Settembrini in: Bobbio et alii 2016, 681)

[ii] “La culture [est] tout en nous sauf notre présent” (Barthes 1973, 32). A frase de Barthes parece relacionar-se diretamente com a de Marx em O 18-Brumário de Luís Bonaparte: “A tradição de todas as gerações mortas pesa muito no cérebro dos vivos.” (Marx & Engels 1974, 66)

[iii] “El arte y la política no pueden ser abordados del mismo modo. No porque la creación artística sea una ceremonia y una mística, […]  sino porque tiene sus reglas y sus métodos, sus propias leyes de desarrollo, y sobre todo, porque en la creación artística los procesos subconscientes juegan un papel considerable, y esos procesos son más lentos, más indolentes, más difíciles de controlar y de dirigir, precisamente porque son subconscientes.” (Trotsky: “El partido y los artistas”)

[iv] “El marxismo ha conquistado su significación histórica universal como ideología del proletariado revolucionario porque no ha rechazado en modo alguno las más valiosas conquistas de la época burguesa, sino, por el contrario, ha asimilado y reelaborado todo lo que hubo de valioso en más de dos mil años de desarrollo del pensamiento y la cultura humanos.” (Lenin: “La cultura proletaria”)

[v] Referindo-se à musica, escreve o grande musicólogo Carl Dahlhaus: “Diversamente da história política, na qual o não-efetivo em nada consiste, na história da música pode uma obra, da qual nada se segue, também ser significativa” [“Anders als in der politischen Geschichte, in der das Wirkungslose nichtig ist, kann in der Musikgeschichte auch ein Werk, aus dem nichts folgt, bedeutend sein”]. (Dahlhaus 1978, 340)

[vi] É nesse sentido que Umberto Eco afirma: “Em cada livro incrustam-se, ao longo do tempo, todas as interpretações que lhes demos. Não lemos Shakespeare como ele escreveu. Nosso Shakespeare então é muito mais rico que o lido em sua época.” (Eco in: Eco & Carrière 2010, 134)

[vii] “[Der Irrtum] verdient einen Ehrenplatz, denn ihm verdankt man es, daß die Bewegung nicht aufhört, daß die Eins nicht erreicht wird. Daß die Wahrhaftigkeit nie zur Wahrheit wird; denn es wäre kaum zu ertragen, wenn wir die Wahrheit wüßten.” (Schönberg 1949, 394).

[viii] O termo Revolução Permanente tem origem em Marx na redação de sua Mensagem à Liga dos Comunistas, em 1850 (cf. Dunayevskaya 2017, pp. 321-356, em especial a partir da p. 332). Neste texto, Marx escreve: “A atitude do partido operário revolucionário diante da democracia pequeno-burguesa é a seguinte: marcha com ela na luta pelo derrocamento daquela fração a cuja derrota aspira o partido operário; marcha contra ela em todos os casos em que a democracia pequeno-burguesa quer consolidar sua posição em proveito próprio. Mas a máxima contribuição à vitória final a farão os próprios operários alemães a partir da consciência de seus interesses de classe, ocupando o quanto antes uma posição independente de partido e impedindo que as frases hipócritas dos democratas pequeno-burgueses os apartem um único momento da tarefa de organizar com toda a independência o partido do proletariado. Seu grito de guerra há de ser: a revolução permanente” (Marx apud Dunayevskaya 2017, pp. 336-337). A este caráter permanente do processo revolucionário, que alia-se ao caráter em certo momento revolucionário da pequena-burguesia para logo em seguida atingir a revolução proletária, a teoria da Revolução Permanente de Trotsky acrescerá a transcendência da revolução em âmbito nacional para, num momento seguinte, o âmbito internacional.

[ix] “Nous ne connaissons vraiment que ce qui est nouveau, ce qui introduit brusquement dans notre sensibilité un changement de ton qui nous frappe, ce à quoi l’habitude n’a pas encore substitué ses pâles fac-similés.”

[x] Pensamento este em total convergência com o que afirma o neurobiólogo francês Jean-Pierre Changeux em diálogo com os compositores Pierre Boulez e Philippe Manoury: “A imagem cerebral da resposta à novidade revela no homem uma ativação dos córtex pré-frontal e temporal, assim como do córtex cingulado que fazem parte dos territórios cerebrais que intervêm no acesso à consciência, […] o que ilustra a ideia de uma ‘tomada de consciência’ despertando um interesse pela novidade” [“L’imagerie cérébrale de la réponse à la nouveauté révèle chez l’homme une activation des cortex préfrontal et temporal ainsi que du cortex cingulaire qui font partie des territoires cérébraux intervenant dans l’accès à la conscience, […] ce qui illustre l’idée d’une ‘prise de conscience’ ouvrant à un intérêt pour la nouveauté”] (Boulez & Changeux & Manoury 2014, 61).

[xi] Em um texto de 17 de junho de 1938 (“El arte y la Revolución”), Trotsky escreve: “[…] São pequenos grupos que fizeram a arte progredir. Quando dada tendência artística dominante esgotou seus recursos criativos, separam-se dela ‘escombros’ criativos que souberam olhar o mundo com novos olhos.” [“[…] Son pequeños grupos los que han hecho progresar el arte. Cuando la tendencia artística dominante ha agotado sus recursos creadores, de ella se separan ‘escombros’ creadores que han sabido mirar al mundo con ojos nuevos.”] (Trotsky 1973, 209)

[xii] “Denn noch die einsamste Rede des Künstlers lebt von der Paradoxie, […] zu den Menschen zu reden.”

[xiii] Arno Münster esclarece a respeito de Bloch: “Os sonhos diurnos são sempre orientados para o futuro, ao passo que os sonhos noturnos têm uma relação privilegiada com o passado […]” (Münster 1993, 25). É nesse sentido que Bloch fala de uma Utopia concreta assentada sobre os pés: “O ponto de contato entre o sonho e a vida, sem o qual o sonho é apenas uma utopia abstrata, e a vida, então, apenas trivialidade, é dado na capacidade utópica assentada sobre os pés, conectada com a realidade possível.” [“Der Berührungspunkt zwischen Traum und Leben, ohne den der Traum nur abstrakte Utopie, das Leben aber nur Trivialität abgibt, ist gegeben in der auf die Füße gestellten utopischen Kapazität, die mit dem Real-Möglichen verbunden ist.”] (Bloch 1985, 165)

[xiv] “[…] En el campo de la literatura y del arte no queremos soportar ni la tutela ‘trotskista’ ni la estaliniana. […] Un poder auténticamente revolucionario no puede ni quiere darse la tarea de ‘dirigir’ el arte, y menos aún darle órdenes, ni antes ni después de la toma del poder. […] El arte puede ser el gran aliado de la revolución en la medida en que sea fiel a sí mismo.” O pensamento é diametralmente oposto à conclusão que chegara Lunatchárski quando discorre sobre em que consistiria a crítica marxista. A julgar pelo conteúdo de determinada obra, a crítica marxista deveria, na visão daquele que viria a se tornar um dos defensores do Realismo Socialista stalinista, exercer até mesmo a censura: “[…] Entra em cena não a crítica marxista, mas a censura marxista” (Lunatchárski 2018, 147); ou ainda: “Os limites de liberdade que podemos conceder em um tempo de luta dependem da severidade com a qual avaliaremos esse tipo de ‘romântico’ e, se o aparato estatal considerar necessário deixar passar essas obras, ou as deixe escapulir, ou por um engano, ou por falta de vigilância (apesar de ele ser extremamente vigilante), então a crítica precisa, de todo modo, removê-los com a maior força […]. Não, vocês me perdoem, aqui não há lugar para este tipo de tolerância.” (Lunatchárski 2018, 241)

[xv] “Devemos impedir este cérebro de funcionar por vinte anos!”

[xvi] Mário Pedrosa, em um texto de 1975 de título “Arte culta e arte popular”, observa com doída pertinência: “Para fixar o valor da obra no mercado, não tem nenhuma importância se, dentro da sociedade capitalista, o artista lhe é servil e intransigente defensor de seus valores ou se é contestador e denuncia seus vícios. Inclusive, poderíamos dizer que, no mercado capitalista, o protesto tem melhor cotação que a postura submissa. Assim, o artista famoso representa, dentro da sociedade burguesa, a plena encarnação do herói individualista, o maior fetiche criado por essa sociedade e, por isso, por encarnar seu mito primordial, essa sociedade vê-se obrigada a gratificá-lo com todos os bens que possui, porque ele representa a máxima realização dos valores que ela defende e deve mostrar que aquele que é capaz de realizar esses valores alcança o paraíso burguês, ‘A Terra Prometida do Capitalismo’.” (Pedrosa 1995, 322)

[xvii] Marx assevera nos “Debates sobre a liberdade da imprensa”: “Naturalmente, o escritor deve ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas, em nenhum caso, deve viver e escrever para ganhar dinheiro” (Marx in: Marx & Engels 1974, 73). A frase é citada no nono ponto do Manifesto da F.I.A.R.I. e é totalmente confluente com a constatação de Marx e Engels em A ideologia alemã, quando afirmam: “[…] Os homens precisam estar em condições de viver para poderem ‘fazer história’.” (Marx & Engels 1975, 311)

[xviii] “Die Ware ist zunächst ein äußerer Gegenstand, ein Ding, das durch seine Eigenschaften menschliche Bedürfnisse irgendeiner Art befriedigt. Die Natur dieser Bedürfnisse, ob sie z.B. dem Magen oder der Phantasie entspringen, ändert nichts an der Sache.”

[xix] Em “Arte e Revolução” (segunda versão alterada do artigo de 29 de março de 1952, in: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 de abril de 1957), Mário Pedrosa adverte, referindo-se aos teóricos do Realismo Socialista stalinista: “Segundo os mesmos teóricos, a arte não é para as elites, mas para as massas. Eles decidem, não se sabe a qual título, o alimento cultural mais conveniente àquelas. Entretanto, a realidade cotidiana e banal é diferente: as massas não se interessam pela arte. Aliás, as chamadas elites também não. […] O que o povo procura é divertimento, e isto em todos os países, ‘capitalistas’ ou ‘socialistas’. Ele é indiferente tanto à pintura figurativa como abstrata. As elites, do mesmo modo. E é natural. A civilização burguesa, nas suas expressões mais felizes, é uma civilização de extrovertidos. A exteriorização é a sua característica mais geral. O ritmo acelerado da vida de hoje não deixa tempo para a contemplação. E pintura, como escultura, exige contemplação no apreciar, silenciosa meditação” (Pedrosa 1995, 96). Nem a tendência “natural” ao lazer, nem uma sua defensável justificativa impedem, no entanto, que este lazer seja manipulado pela ideologia dominante, como reconhece o próprio Eco, quando afirma: “[…] O modo de divertir-se [das massas], de pensar, de imaginar, não nasce de baixo: através das comunicações de massa, ele lhes é proposto sob forma de mensagens formuladas segundo o código da classe hegemônica. Estamos, assim, ante a singular situação de uma cultura de massa, em cujo âmbito um proletariado consome modelos culturais burgueses, mantendo-os dentro de uma expressão autônoma própria”. (Eco 2011, 24)

[xx] É por tal viés que um músico das fileiras da vanguarda musical (tal como se verifica com Luciano Berio, genial compositor e companheiro de viagem de Umberto Eco, em sua declarada admiração por certas canções da música popular urbana, notadamente pelos Beatles) pode reconhecer e mesmo se emocionar com a beleza de uma canção popular, restrita à esfera bem (de)limitada da música de mercado.

[xxi] O texto aparece primeiramente em inglês, “The defense of the U.S.S.R. in the present war”, e com o pseudônimo de Lebrun, in: International Bulletin (issued by the SWP – Socialist Workers Party), New York, v. 2, n. 10, de fevereiro de 1940, pp. 1A-17A, mas fora redigido em 9 de novembro de 1939.

[xxii] Para todos os detalhes acerca da trajetória política de Mário Pedrosa, consulte-se o extraordinário livro do historiador marxista Dainis Karepovs: Karepovs 2017.

[xxiii] Na realidade, o debate em torno da tese de Trotsky da defesa incondicional da URSS foi já travado durante o Congresso fundador da IV Internacional, em Périgny, nos arredores de Paris, a 3 de setembro de 1938, e a oposição a uma sua aceitação dogmática fora defendida, aí, unicamente pelo delegado da minoria do POI francês (Parti Ouvrier Internationaliste), Yvan Craipeau (cf. Karepovs: “Mario Pedrosa e a IV Internacional (1938-1940)”, in: Castilho Marques Neto 2001, 108), mas foi Mário Pedrosa quem, em seu profundo texto “The defense of the U.S.S.R. in the present war”, em fevereiro de 1940, trouxe a discussão de forma consistentemente teórica, o que teve por consequência um duro estranhamento entre Pedrosa e o próprio Trotsky, a cisão na direção IV Internacional e a subsequente saída de Pedrosa da organização (cf. a dura correspondência entre Mário Pedrosa e Trotsky in: Karepovs, idem, pp. 119-126).

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