Por JOSÉ GERALDO COUTO*
Comentário sobre o filme dirigido por Hong Sang-soo, em exibição nos cinemas
Está discretamente em cartaz, em poucos cinemas – e por certo com poucos espectadores –, uma pequena joia do diretor sul-coreano Hong Sang-soo, As aventuras de uma francesa na Coreia, que ganhou o grande prêmio do júri em Berlim no ano passado. Eu ia dizer “o novo filme de Hong Sang-soo”, mas constatei que depois desse ele fez mais dois longas-metragens. Produz em série filmes fora de série.
O título em português até que tenta criar algum frisson, mas o cinema do diretor é o oposto do espetacular e do bombástico, alimentando-se da observação daquilo que é miúdo, transitório, quase imperceptível.
A francesa em questão é Iris (Isabelle Huppert), uma mulher de meia-idade, sem eira nem beira, que caminha com sua deselegância discreta por ruas e parques de Seul, entre um encontro e outro com suas alunas de francês e com o rapaz com quem divide um pequeno apartamento.
A poesia do transitório
Com seu estilo despojado e contemplativo, feito de longos planos com poucos movimentos de câmera e um ou outro zoom inesperado, o cineasta compõe uma poesia do deslocamento, do acaso e da impermanência. A começar pelo fato de que a maior parte dos diálogos se dá em inglês – idioma que não é de nenhum dos falantes em cena –, tudo conflui para a sensação de descompasso, de desfoque, de “fora do lugar”.
O olhar de Hong Sang-soo parece sempre colher seus personagens em momentos de descuido, com a ação (ou a conversa) já em curso, com as hesitações e imprevistos das situações não planejadas ou encenadas. Consta que ele fornece aos atores apenas as linhas gerais dos diálogos e deixa que se virem como puderem diante da câmera. Daí a sensação quase palpável de timidez e constrangimento de tantas conversas.
Mas não se trata de um mero registro preguiçoso da banalidade do cotidiano, e sim de uma tentativa de captar o inefável das pequenas cenas, dos pequenos gestos. Diante desse acúmulo de não-acontecimentos, o embate dramático, quando surge, ganha uma dimensão fulgurante, iluminadora.
É o que acontece, por exemplo, quando a mãe do jovem Inhuk (Ha Seong-guk) descobre que ele está vivendo com uma mulher mais velha que ele mal conhece (a francesa Iris) e lhe despeja todo um sermão sobre a “realidade da vida”. O rapaz, um sonhador aspirante a poeta e músico, vê Iris como um ser de luz, que “pratica o budismo na vida cotidiana”, e sua mãe, previdente e pragmática, diz que ele abriu sua casa para uma desconhecida possivelmente oportunista e mal-intencionada. É a eterna desavença entre cronópios e famas, de acordo com a célebre classificação de Cortázar.
Dúvida e desconcerto
A personagem da francesa, em sua trajetória errática e um tanto trôpega, serve para isso mesmo: trazer o desconcerto e a dúvida. Enquanto busca decifrar o território estranho à sua volta, ela própria é a estranha a ser decifrada pelos habitantes do território. Sua passagem, como a de um reagente químico, provoca vibrações, grandes ou pequenas, no entorno. Captar essas vibrações me parece ser a meta do cinema de Hong Sang-soo.
E para quem diz que os filmes do diretor são sempre iguais, pois sempre mostram gente conversando e bebendo soju em torno de uma mesa, desta vez há uma diferença: as conversas são regadas a makgeolli, uma bebida leitosa feita de arroz fermentado. O efeito, aparentemente, é o mesmo.
*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).
Publicado originalmente no Blog do cinema do Instituto Moreira Salles.
Referência
As aventuras de uma francesa na Coreia (Yeohaengjaui Pilyo)
Coreia do Sul, 2024, 90 minutos
Direção: Hong Sang-soo.
Elenco: Isabelle Huppert, Kwon Hae Hyo, Hye-Young Lee, Kim Seung-Hyeon.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA