A Nova República está ameaçada, mas ainda não ruiu. Estamos em uma situação reacionária, porém não contrarrevolucinária. Tampouco estamos em uma situação pré-revolucionária em que se abre a oportunidade de derrubar o governo
Por Valerio Arcary*
Recordemos
a metáfora da curvatura da vara utilizada por Lênin: quando a vara está muito
inclinada numa direção, se queremos encontrar o ponto de equilíbrio, é preciso
incliná-la, primeiro, até ao extremo oposto. Lênin herdou este método de Marx.
Um debate entre posições opostas, não se resolve produtivamente pela via das
mútuas concessões.
Em
um primeiro momento, para esclarecer as diferenças e reduzir as margens de
erro, o melhor caminho é desenvolver cada uma das posições até ao extremo, para
conferir quanto e quais das hipóteses iniciais se sustentam. As forças que
explicam os fluxos e refluxos das lutas sociais, as inflexões inesperadas, as
longas estagnações, as bruscas acelerações e, de novo, a terrível lentidão das
mudanças que não vêm, até que se precipitam transformações vertiginosas, quase
como uma surpresa, não se revelam com facilidade.
A
história conhece os movimentos de superfície, e as transformações nas camadas tectônicas
mais profundas. O regime politico construído desde o fim da ditadura, a chamada
Nova República, está ameaçado pelas investidas bonapartistas, mas ainda não
ruiu. Estamos em uma situação reacionária, porém, não contrarrevolucinária. Tampouco
estamos em uma situação pré-revolucionária em que se abre a oportunidade de
derrubar o governo, convocando o Fora Bolsonaro.
Este
governo de extrema-direita não foi um acidente historico. Só foi possível porque
aconteceu uma derrota séria. Acidentes históricos são compreendidos, em uma
tradição teórica hegeliana, como fenômenos imprevistos, acasos, uma “ironia” da
história, portanto, sem consistência duradoura. Bolsonaro e a corrente
neofascista que lidera são uma extravagância perigosa, mas, desde 2016 era uma candidatura
favorita para chegar ao segundo turno de 2018. Nunca foi o melhor inimigo a ser
derrotado. Mas sua eleição não foi, tampouco, uma derrota histórica.
Uma
derrota histórica define um quadro estável duradouro da relação social e
política de forças por um longo periodo. Ainda há reservas sociais e políticas
na esquerda brasileira para deter Bolsonaro, e tudo que seu governo significa.
Existem debates históricos encerrados, e outros que estão em aberto. As
interpretações sobre a derrota do Quilombo de Palmares, dos paulistas na Guerra
dos Emboabas, da Inconfidência Mineira, da Confederação do Equador, de Canudos,
ou do governo Jango Goulart em 1964 são debates instigantes sobre derrotas
devastadoras, mas discussões encerradas. A discussão das derrotas acumuladas
nos últimos cinco anos têm, também, uma dimensão histórica, mas permancece em
aberto. Trata-se de um debate de importância estratégica. Isso quer dizer que
dele depende o futuro.
As
três grandes batalhas políticas da última década foram as Jornadas de Junho de
2013, o impeachment de Dilma Rousseff de 2016, e as eleições de 2018. Perdemos
todas, mas a relação entre os três processos é a chave da situação atual. Existem, grosso modo, três interpretações na
esquerda brasileira sobre o significado do governo Bolsonaro. Elas são incompatíveis. O
debate entre as três pode e deve ser, intelectualmente, honesto. Entre as três
há, também, posições intermediárias que fazem, como sempre acontece, mediações.
Mas são três as grandes narrativas, em perspectiva histórica.
A
primeira posição defende que junho de 2013 inaugurou uma onda conservadora, e abriu
o caminho para uma ofensiva burguesa em 2015/16 que derrubou o governo Dilma
Rousseff, criminalizou e prendeu Lula. O governo Bolsonaro resultou,
essencialmente, de uma reação às reformas progressivas dos governos de coalizão
liderados pelo PT, ou seja, de seus acertos.
A
segunda considera que junho de 2013 foi uma mobilização democrática progressiva;
as mobilizações contra a corrupção em 2015 estavam em disputa; e o governo
Bolsonaro resultou, fundamentalmente, dos limites e dos erros dos governos do
PT.
A
terceira sustenta que as jornadas de junho de 2013 estavam, socialmente, em
disputa, mas que as mobilizações da classe média em 2015/16 eram,
politicamente, reacionárias. Defende que o giro do governo Dilma Rousseff para
o ajuste fiscal que produziu uma recessão econômica catastrófica, provocou
desmoralização social entre os trabalhadores; concluindo assim que o governo
Bolsonaro só foi possível em função de derrotas acumuladas pelos erros da
direção do PT, mas seu significado histórico repousa numa reação burguesa, em
escala continental, impulsionada pelo imperialismo.
A
maioria do campo petista-lulista explica este processo como reação às reformas
progressivas que foram feitas durante treze anos. Ou seja, foram derrotados
pelos seus acertos, e não pelos seus erros. A ideia impressiona porque tem um
grão de verdade. Nenhum governo, porém, é derrotado quando acerta.
Este
campo identifica o início da ofensiva reacionária nas jornadas de junho de 2013,
contextualiza o giro da burguesia para o impeachment na pressão de Washington, sublinha
o papel das agências de inteligência e serviços secretos (a fórmula das guerras
híbridas), adverte que o deslocamento da classe média seria produto de um
incontível ressentimento social, e explica a debilidade da mobilização popular
contra o golpe pela reestruturação produtiva. Vê uma continuidade ininterrupta
da dinâmica da luta social entre as Jornadas de Junho de 2013, as mobilizações
pelo impeachment de 2015/16, as lutas contra Temer e a prisão de Lula,
culminando com a eleição de Bolsonaro.
A
análise se restringe a uma avaliação da evolução desfavorável da relação social
de forças, desconsiderando as variações que a relação política de forças
conheceu nesses cinco anos. Quando aceita atribuir sentido à luta política, capitula
a versões de teorias de conspiração. No aniversário dos seus quarenta anos a
direção do PT abraça um discurso ideológico fatalista circular de
autojustificação. Perdemos porque nossos inimigos eram mais fortes.
A
segunda análise tem expressão em correntes da esquerda radical que vê, também,
uma continuidade ininterrupta da dinâmica da luta social ao longo destes cinco
anos, mas de signo oposto. Por isso defende o Fora Bolsonaro como campanha
política prioritária. A miopia tem o efeito inverso. Despreza o peso acumulado
das derrotas na consciência da classe trabalhadora, e sobrevaloriza as tensões
do governo Bolsonaro com frações da classe dominante. Desconsidera que
prevaleceu a insegurança política na hora de lutar contra a reforma de
previdência. Destaca, entretanto, os conflitos entre o governo de extrema-direita
e o Congresso, o STF, e a mídia empresarial.
Explica
o governo Bolsonaro como um acidente histórico. A eleição de Bolsonaro pode ser
descrita como um acidente histórico, porque não era o candidato preferencial da
burguesia. Mas a ofensiva de golpes institucionais em Honduras, Paraguai,
Brasil e Bolívia, não. Ela obedece a um projeto estratégico do imperialismo na
America Latina. O governo Bolsonaro só foi possível em função de um processo de
acumulação de derrotas dos trabalhadores na luta de classes, anterior às
eleições de 2018. Nesse contexto, o governo Bolsonaro se beneficia de uma grande
unidade burguesa, e do apoio da maioria da classe média.
A
terceira análise é aquela que identica melhor, dialecticamente, as contradições
sociais e políticas do processo. A evolução política entre 2013 e 2018 não foi
linear. As mobilizações de junho de 2013 foram um campo de batalha em que tudo
estava em disputa, e o desenlace muito longe de estar pré-determinado. Tanto
que Dilma Rousseff venceu as eleições em 2014.
Já
as mobilizações de 2015/16 foram, desde o início, uma explosão de fúria
reacionária da classe média. Um deslocamento tão reacionário que abriu o
caminho para que a extrema direita, até então muito marginal, pudesse se
transformar em um movimento com influência de massas. Não é necessário um
exercício de contrafactuais, recorrendo a hipóteses do que poderia ter
acontecido se o governo do PT não tivesse apostado em Joaquim Levy como
neutralização in extremis das pressões burguesas em 2015, para concluir que o
governo Bolsonaro não era inevitável. Mas tampouco é correto concluir que foi
um acidente histórico. Não fosse Bolsonaro, seria outra liderança. A eleição de
Bolsonaro é incompreensível sem a Lava Jato, a prisão de Lula, a facada em Juiz
de Fora, e tem portanto, muito de aleatório, fortuito, contingente. A ruptura
da burguesia brasileira com o governo Dilma Rousseff, não. Mas esta ruptura não
se explica pelo Bolsa-Família, nem pelo Minha casa, minha Vida, nem pela
expansão da rede federal de ensino, nem pelo Luz para todos. Ela obedeceu a um
projeto estratégico de reposicionamento do capitalismo brasileiro no mercado
mundial.
Uma
análise marxista deve considerar diferentes níveis de abstração. O estudo da
relação social de forças busca identificar na estrutura da sociedade as
posições respectivas das classes em luta. A investigação da relação política de
forças procura compreender a esfera da superestrutura onde a luta social se
expressa por meio de representações: as instituições do Estado, as distintas
organizações, os partidos, a mídia, o mundo da cultura, etc. Não há sempre
coincidência perfeita entre a relação social e a relação política de forças,
embora haja tendência à confluência. Neste momento, a relação social de forças
está um pouco pior que a relação política de forças.
Ao
longo do primeiro ano do governo Bolsonaro surgiram tensões com o Congresso, o
STF, alguns dos principais grupos de midia comercial em torno de diferentes
temas. Foram variados os choques, as desavenças, até algum tumulto diante de
inciativas esdrúxulas do núcleo neofascista. O secretário de cultura foi
demitido.
Estas
crises na superestrutura não iludem que estamos em uma situação reacionária.
Prevalece uma unidade burguesa no apoio ao governo, ainda com sustentação
majoritária na classe média. Pesquisas de opinião são um indicador
significativo da variação dos humores na sociedade, mas somente uma variável,
entre outras, para aferir as relações de forças. A situação é reacionária, mas
não sofremos uma derrota histórica. A resistência em 2020 pode se elevar a um
patamar superior ao de 2019.
*Valerio Arcary é professor titular aposentado do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia).
