As cidades desertas – V

Imagem: Stela Grespan
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Por GILBERTO LOPES*

Estão roubando todos nós

Mais de um milhão de mortos por Covid-19 em todo mundo na semana passada: 210 mil nos Estados Unidos, 142 mil no Brasil, 95 mil na Índia. É na Índia onde se expande mais rapidamente a doença. Já superam os 6 milhões de casos. O número de mortos poderia duplicar-se antes da disponibilização de alguma vacina, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Em todo o mundo surgem novos focos da doença. Na França, Holanda, Inglaterra, Espanha e Austrália os novos casos diários superam os números anteriores, recomendam-se novos fechamentos, adverte-se a população dos renovados riscos, enquanto se aproxima o inverno no hemisfério norte.

Na França, o primeiro-ministro Jean Castex fala na televisão, pede à população que respeite as medidas de proteção para evitar o retorno aos piores dias da pandemia. Na Espanha, a administração conservadora da capital recusa as medidas de controle que o governo socialista solicita. Na Holanda, o primeiro-ministro Mark Rutte faz soar o alarme depois de um segundo dia com recorde de casos. O mesmo na Inglaterra, onde, com 40 mortes diárias, as autoridades advertem a população, que, entretanto, saiu às ruas no sábado para protestar contra as medidas de confinamento.

A Europa tem muito o que fazer para estabilizar a situação e controlar a transmissão; estamos vendo um preocupante aumento da doença, disse Mike Ryan, especialista em emergências da OMS. Maria Van Kerkhove, especialista em Covid-19, também da OMS, lembrou que o período de gripe ainda não começou na Europa, o que indica que as coisas poderiam não estar indo na direção correta.

Falta dinheiro, sobra dinheiro

As economias, paralisadas pelas medidas de proteção contra a pandemia, afundam-se. Pela primeira vez, todas as regiões do mundo estão em recessão, dizia, em junho, o FMI: cai 9,4% na América Latina e Caribe; 8% nos Estados Unidos; 10,2% na zona do euro.Os dados da OCDE para o segundo trimestre do ano mostram um extraordinário decréscimo da economia da Índia, de 25,2%; 11,4% na União Europeia; 9,1% nos Estados Unidos, frente a um surpreendente crescimento de 11,5% na China, o único país com uma taxa positiva.

Em meio às turbulências causadas pela pandemia, o Grupo de Alto Nível sobre Responsabilidade, Transparência e Integridade Financeiras Internacionais (FACTI), criado pela ONU em março último, relatou: a lavagem de capitais de procedência ilícita no mundo subiu para 1,37 trilhões de euros, equivalente a 2,7% da riqueza mundial.10% do PIB mundial encontra-se depositado em ativos financeiros transfronteiriços. As fortunas privadas escondidas em paraísos fiscais chegam a seis trilhões de euros. Longe de atenuar-se, com a irrupção do coronavírus, a evasão fiscal parece ter aumentado, disse Dalia Grybauskaité, copresidente do FACTI, na apresentação do informe. “Muitos bancos colaboram ativamente no roubo aos mais pobres”, acrescentou. As perdas para os governos, causadas pela evasão fiscal, chegam a 430 bilhões de euros anualmente. Fica evidente que não é o coronavírus a causa da crise.

Uma direção perigosa

Setembro é o mês da Assembleia Geral da ONU, que este ano se realizou de 22 a 29. O habitual é que milhares de altos funcionários e alguns dos mais importantes líderes políticos mundiais reúnam-se em Nova York. Este ano não foi assim, pois a 75ª Assembleia ocorreu virtualmente.“Estamos avançando numa direção muito perigosa”, disse o secretário geral da ONU, Antonio Guterres, ao inaugurá-la na última quarta-feira. Frente à pandemia de coronavírus, o mundo deve “fazer todo o possível para evitar uma nova Guerra Fria”, acrescentou, ao referir-se à crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Depois vieram os discursos por país. O primeiro, como é tradição, corresponde ao Brasil, em reconhecimento ao papel de seu chanceler, Osvaldo Aranha, primeiro a falar na sessão especial da Assembleia Geral de 1947, e depois presidente da II Assembleia Geral e do Conselho de Segurança.

Bolsonaro abriu a sessão em meio a uma expectativa sobre a política ambiental do Brasil e com os olhares voltados para os incêndios que consomem vastas regiões em dois de seus principais biomas: a amazônia e o pantanal de Mato Grosso. Em sua opinião, o Brasil é vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação, que atribuem os incêndios aos grandes interesses do agronegócio. Para Bolsonaro, o agronegócio continua sendo um setor florescente, que respeita “a melhor legislação ambiental do planeta”. Segundo o mandatário, a maioria dos incêndios não têm origem criminal, mas são resultado das atividades de indígenas e pequenos agricultores. Uma afirmação que, segundo diversas fontes, incluindo uma nota da prestigiosa Associação Brasileira de Imprensa (ABI), contradiz a verdade e provocou escândalo.

Bolsonaro, que iniciou seu discurso reivindicando a verdade como requisito para que o mundo possa enfrentar seus desafios, culpou setores da imprensa de terem provocado o pânico na população em relação à Covid-19, instando-a a permanecer em casa, o que “quase provocou um caos social no país”. Reivindicou as medidas adotadas por seu governo para enfrentar a crise, entre elas uma ajuda emergencial de quase mil dólares (cerca de 5.600 reais), quando, na verdade, essa ajuda foi de apenas três parcelas de 600 reais. E assegurou que não faltaram meios para atender os pacientes de Covid-19 nos hospitais, algo que também parece contradizer os resultados da pandemia no país. Alinhado com a política norte-americana contra a Venezuela e no Oriente Médio, Bolsonaro concluiu garantindo que o Brasil “é um país cristão e conservador e tem na família sua base”.

Clima de guerra fria

Depois falou Trump e seu discurso não pareceu estar encaminhado na direção sugerida pelo secretário geral. Como Bolsonaro, defendeu sua política para enfrentar a Covid-19, apesar de seu país ser o mais afetado pela pandemia, com mais de 200 mil mortos, quase 7,5 milhões de casos e uma previsão de que seu PIB se reduzirá 9,1% este ano. Desde o início, Trump estabeleceu um tom de confrontação com a China, qualificando de “vírus chinês” o Sars-coV-2, tocando num ponto particularmente sensível, que pode afetar os esforços mundiais de unidade para enfrentar a pandemia. Enquanto perseguimos nosso brilhante futuro, seguiu Trump, “devemos responsabilizar a nação que espalhou esta praga pelo mundo: China”, acusando a OMS – da qual se retirou – de estar “virtualmente controlada pela China”.

Trump, que se retirou igualmente do Acordo de Paris sobre mudança climática, atacou também as práticas ambientais chinesas e pediu à ONU “enfocar-se nos problemas reais do mundo”, caso queira continuar sendo uma organização efetiva. Ele, que se retirou ainda do Tratado de Armas Nucleares de Alcance Intermediário (Tratado INF) – assinado em dezembro de 1987 pelo então presidente Ronald Reagan e por Mikhail Gorbachev –, defendeu uma nova corrida armamentista, na qual os Estados Unidos gastaram 2,5 trilhões de dólares nos últimos quatro anos, garantindopossuir hoje armas num nível mais avançado do que nunca, e concluiu sua intervenção com uma referência à América Latina, justificando suas intervenções políticas contra os governos de Cuba, Nicarágua e Venezuela.

Mudanças profundas

O presidente chinês, Xi Jinping, falou em outro tom. “Não temos intenção de lutar uma guerra nem fria nem quente com nenhum país”. A China, como o maior país em desenvolvimento do mundo, está comprometida com um desenvolvimento pacífico, aberto, não buscamos nem hegemonia nem expansão, afirmou.O dirigente chinês afirmou também que o mundo segue enfrentando a pandemia da Covid-19 enquanto atravessa as mudanças mais profundas já vividas num século; deve-se enfrentá-las com a visão de um futuro compartilhado. Recusou ainda as tentativas de construir blocos para manter outros de fora; devemos respeitar o modelo de desenvolvimento que cada país escolha, afirmou.Xi recusou também as tentativas de reverter o processo de globalização econômica, garantindo que não se poderá isolar os países, nem cortar os laços dessa globalização. Em tom mais beligerante, o embaixador chinês na ONU, Zhang Jun, acusou Trump de disseminar um “vírus político” na Assembleia Geral, assegurando que, se alguém deve ser considerado responsável pela pandemia, são os Estados Unidos, “por ter perdido tantas vidas com sua atitude irresponsável”.

Em 11 de setembro, alguns dias antes da abertura da Assembleia Geral, a China e a Rússia emitiram, em Moscou, uma declaração conjunta de seus ministros de relações exteriores na qual reiteram “seu firme compromisso com os princípios do multilateralismo” e recusam veementemente as ações unilaterais e o protecionismo, as políticas de intimidação contra outros estados, as sanções não amparadas na legislação internacional ou a aplicação extraterritorial de legislações nacionais, em clara alusão às políticas da administração Trump.

A declaração, de 12 pontos, foi considerada como “inédita e tremenda” pelo ex-chanceler brasileiro Celso Amorim, em declarações publicadas pela revista Tutaméia no último dia 24 de setembro. É uma aliança sólida, que vai ter muita força no cenário internacional, afirmou, com uma enorme população, um grande território, com grandes riquezas naturais e um grande poder militar. Uma aliança baseada em interesses nacionais, não em similitudes ideológicas. A China enfrenta desafios em Hong Kong, Taiwan e no Mar do Sul da China, lembrou Amorim, ao mesmo tempo que destacou que a Rússia vê a OTAN expandir-se para o leste, até sua próprias fronteiras, enfrentando conflitos na Ucrânia, Geórgia ocidental e, agora, na Bielorrúsia (cujo governo o ex-chanceler brasileiro não necessariamente defende. Não é bom que o presidente governe há 20 anos, afirmou).

Velhas histórias

O presidente russo, Vladimir Putin, em seu discurso na Assembleia Geral, expressou sua preocupação com a retirada dos Estados Unidos dos acordos sobre o desarmamento. Além da pandemia, disse Putin, deve resolver-se com rapidez a renovação do Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START III), que expira em fevereiro de 2021, um tema que está negociando com os norte-americanos.Pediu também um acordo vinculante entre as principais potências para proibir o emprego de armas no espaço e destacou que seu país não recebeu resposta por parte dos Estados Unidos e seus aliados à proposta de limitar o emprego de mísseis de curto e médio alcance na Europa e em outras partes do mundo.

O ministro das relações exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, concedeu na semana passada uma longa entrevista à agência russa Sputnik. Lavrov afirmou que a Rússia vai trabalhar “com qualquer governo que seja eleito em qualquer país, incluindo os Estados Unidos”. Mas vamos discutir os temas que interessem aos estadunidenses apenas na base da igualdade. É inútil falar conosco numa linguagem de ultimatos. “Se alguém não entendeu, são uns políticos inúteis”, acrescentou. Existem muitas tendências alarmantes, disse Lavrov, como a retirada dos Estados Unidos do Tratado INF e a intenção de empregar mísseis não apenas na Ásia, mas também em toda a Europa, sistemas que já foram implementados na Romênia e que estão sendoinstalados na Polônia. É triste – acrescentou – que, para ganhar pontos na corrida presidencial, se introduzam “sanções ilegais contra os que digam qualquer coisa que contradiga a linha geral dos representantes dos Estados Unidos”.

Trata-se de um instinto de sanções que se formulou em grande medida na administração atual, mas não é uma história nova, Obama também recorria ativamente a estas sanções.Lavrov lembrou que, a partir da afirmação de que a Rússia tinha interferido nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016, Obama “introduziu sanções sem precedentes, incluídas a apropriação de imóvel da Rússia nos Estados Unidos, a expulsão de dezenas de nossos diplomatas e suas famílias e muitas outras coisas”. “Lamentavelmente, isto está contaminando inclusive o continente europeu. A União Europeia recorre ao garrote das sanções cada vez mais frequentemente”.

Preocupa especialmente a Rússia uma tendência de revisão da história da Segunda Guerra Mundial, proposta por organizações e partidos conservadores na Europa, equiparando o papel da então União Soviética com o dos nazistas como causadores da II Guerra Mundial. Detrás dessas iniciativas, estão os países bálticos e outras nações, como a Polônia. Trata-se de uma resolução Sobre a importância de preservar a memória histórica para o futuro da Europa aprovada pelo Parlamento Europeu em 19 de setembro de 2019 na qual se acusa explicitamente a URSS – junto com a Alemanha nazista – de desencadear a Segunda Guerra Mundial.

Sobre o tema, disse Lavrov em sua entrevista, “observa-se, francamente, uma agressão histórica encaminhada para a revisão das bases modernas do direito internacional que se estabeleceram depois da Segunda Guerra Mundial na forma das Nações Unidas e os princípios de sua Carta”. Ofendem-nos – acrescentou – “quando dizem diretamente que a União Soviética é mais culpável de ter desencadeado a Segunda Guerra Mundial que a Alemanha nazista. Ao mesmo tempo, tratam de fazer-nos esquecer como começou tudo em 1938, quando os países ocidentais, sobretudo, França e Reino Unido, “levavam a cabo uma política de apaziguamento com Hitler”.

Putin publicou um longo artigo sobre esta situação em junho passado, quando se comemoravam os 75 anos do fim da II Guerra mundial e a fundação da ONU. É nossa responsabilidade fazer todo o possível para evitar que se repitam estas terríveis tragédias, disse, citando uma cuidadosa pesquisa em arquivos soviéticos até agora classificados, incluindo referências ao Acordo de Munique entre a Alemanha nazista, Inglaterra e França, ao pacto Molotov-Ribbentrop de não agressão, assinado entre a URSS e a Alemanha e aos acordos secretos adicionados a este pacto por Stálin. Além da ameaça aos princípios fundamentais da ordem mundial, também há um lado moral nessa matéria, disse Putin. O escárnio da memória constitui uma baixeza “quando todos os participantes da coalização anti-Hitler, exceto a URSS, figuram nas declarações do 75º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial”, assegurou.

Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

 

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