As coisas mudam

Carmela Gross, HIENA, série BANDO, 2016
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Por BRANKO MILANOVIĆ*

As ideologias em que vivemos são como o ar que respiramos. Nós as temos como dadas. Não somos conscientes delas

No verão de 1975, trabalhei como guia turístico em Dubrovnik (comecei a trabalhar muito jovem). Dubrovnik é, como muitos sabem, uma bela cidade no Adriático, na costa croata, que ao longo da Idade Média era um porto muito ativo, com muitos contatos com o mundo. Veneza era sua concorrente e finalmente acabaria vencendo Dubrovnik. Ao final, as repúblicas de Veneza e Dubrovnik (Ragusa) foram abolidas por Napoleão, em 1797-1806.

A existência de Dubrovnik como uma república independente, cercada por todos os lados pelo poderoso Império Otomano, era uma espécie de milagre. Os otomanos talvez a consideravam uma útil Hong Kong da época e nunca pensaram em conquistá-la. Dubrovnik sempre teve orgulho de sua liberdade. Em sua bandeira vermelha está estampada, com letras douradas, a palavra “Libertas”.

Algumas vezes, durante aquele verão, nas noites quentes e com cheiro de lavanda, fui às peças teatrais representadas em lugares impressionantes do castelo que há sobre o porto. As peças faziam parte do festival de Dubrovnik, que durou o verão inteiro. A abertura do festival sempre era acompanhada pelo hasteamento da bandeira “Libertas”.

Não pensei muito nisso, naquele momento, mas a cerimônia da bandeira, com sua música apropriadamente emocionante, pareceu-me lembrar a firme resistência de Dubrovnik frente aos invasores estrangeiros. Como a Iugoslávia em 1975 era um país livre, não governado por estrangeiros e, como foi dito na época, sem compromissos com os “imperialistas” (Estados Unidos) ou com os “hegemonistas” (União Soviética), parecia-me normal que se hasteasse e aplaudisse a bandeira “libertas”.

Cerca de dez anos depois, em uma conversa com um amigo que estava no mesmo festival, e quando o comunismo já estava desmoronando, disse-me que estava muito animado ao ver a bandeira da liberdade balançar todos os anos, para ele, pressagiava o fim do comunismo e o começo da democracia. Nunca pensei sobre isso na época e, sem dizer a ele, pensava que havia elaborado aquele sentimento ex post (1985 era muito diferente de 1975) ou simplesmente o atribuído a outros, mesmo que fossem os pensamentos de uma pequena minoria.

Há alguns anos, quando visitei Zagreb pela primeira vez, após as guerras civis, jantei com uma amiga croata que não via há vinte anos e com quem trabalhei em 1975. Em um ponto da conversa, mencionou que a bandeira da “Libertas” sempre a fez pensar na independência e liberdade da Croácia, e pensava que esse sentimento era compartilhado por todos que estavam presentes e presenciavam o hasteamento da bandeira.

Percebi que esse pensamento nunca me ocorreu. Mas essa terceira interpretação do mesmo evento me fez pensar, como em um filme de Kurosawa, que todos vivemos em nossos mundos ideológicos e imaginamos que todo mundo habita nesses mesmos mundos.

Até que as coisas mudam.

Algo semelhante está acontecendo agora nos Estados Unidos com o impacto ideológico do movimento Black Lives Matter. Muitas pessoas acreditavam que a desigualdade racial nos Estados Unidos era realmente importante. Mas isso era visto como uma questão secundária, que precisava de uma solução, mas que não acabava com a ideia dos Estados Unidos como terra de oportunidades e progresso para todos. Como consequência desse movimento, há pessoas que nunca tinham pensado em injustiça racial e em outros tipos de injustiça e que, de repente, veem esses problemas como algo sistêmico.

Não podem ser consertados “colocando rostos negros em lugares importantes”, como dizia desdenhoso e apropriadamente Cornel West.

Para resolver esse problema, é necessário repensar os aspectos essenciais das sociedades capitalistas. Além disso, o movimento BLM, ao resgatar toda a história do colonialismo e da opressão negra, dirigiu nossa atenção para as coisas que pensávamos que estavam esquecidas e “resolvidas” há muito tempo: o reinado do rei Leopoldo no Congo, a cumplicidade britânica no comércio de escravos, a escravidão americana e brasileira que se estendeu até a segunda metade do século XIX. É muito provável que essas questões ressurjam em outros países: França, Holanda, Portugal, Espanha, Rússia. Como acabamos de ver, estão caindo as estátuas de Cristóvão Colombo.

Estamos diante de uma enorme mudança ideológica. Até algumas semanas atrás, estávamos testemunhando os mesmos acontecimentos – discriminação racial e a brutalidade policial não são exatamente novas -, mas com lentes ideológicas completamente diferentes. Como no exemplo da bandeira da Libertas, o acontecimento, o fato, era o mesmo: sua interpretação era diferente.

As ideologias em que vivemos são como o ar que respiramos. Nós as temos como dadas. Não somos conscientes delas. Eu não era consciente de minha própria ideologia, em 1975. Meus amigos não conheciam a ideologia que permeava o Banco Mundial e o FMI, nas últimas duas décadas do século XX. O neoliberalismo (esse nome não era usado na época) era tão óbvio, suas lições e recomendações eram tão claras e pareciam tão comuns que os requisitos eram cumpridos para a melhor ideologia possível: aquela que uma pessoa defende e aplica sem nem mesmo se dar conta disso. Mas isso também está se desmoronando.

Quando as pessoas me perguntam como foi trabalhar no Banco Mundial, durante o auge do neoliberalismo, geralmente pensam que estávamos, de alguma maneira, obrigados a acreditar no neoliberalismo como uma panaceia. Nada mais longe. A ideologia era algo leve e invisível para muitos, nunca sentiram o seu peso. Até mesmo hoje, estou certo de que muitos amigos que a aplicaram não estavam conscientes disso.

No início dos anos 1990, uma pessoa influente, que nunca se consideraria “neoliberal”, se opôs fortemente a qualquer estudo sobre a desigualdade. O importante não era a desigualdade, ao contrário, era preciso criar mais desigualdade para que aumentasse o crescimento. Outra pessoa influente (neste caso, Larry Summers) ficou famosa por escrever em uma nota interna que substâncias poluidoras tinham que ser enviadas para a África, porque o valor da vida humana lá é muito mais baixo do que nos países ricos. Ainda que Summers, mais tarde, se defenderia dizendo que era uma piada, é um bom exemplo do espírito da época.

Outra pessoa que inclusive agora defende vigorosamente sua condição neoliberal criou uma nova maneira de resolver um problema criando um novo mercado. Nunca ter ouvido nada sobre a comercialização de tudo é uma característica básica do neoliberalismo. Em seu mundo não existiam nem Polanyi, nem as mercadorias fictícias.

Como crentes religiosos, o neoliberalismo era para muitos economistas a quintessência do senso comum e da razão. Ao descrever o Consenso de Washington, John Williamson escreveu que “é o núcleo comum da sabedoria que todos os economistas sérios adotam”. Agora que o neoliberalismo, sob os choques de 2007 e 2020, está praticamente morto, é fácil ver como estavam errados. Mas enquanto durou, as pessoas viviam em seus mundos ideológicos. A ideologia era adotada por “todos os economistas sérios” e parecia que todos concordavam. E também parecia que duraria para sempre. Como me pareceu, em 1975.

*Branko Milanović é professor visitante no Graduate Center da City University of New York. Autor, entre outros livros, de Capitalismo sem rivais (Todavia).

Publicado originalmente no portal Letras Libres.

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