As formas do mar – poesia chinesa contemporânea

Renê Burri, Antigo Palácio de Verão. Flores de lótus mortas no lago Kunming. Pequim, 1964.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FRANCISCO FOOT HARDMAN*

Apresentação da antologia bilíngue recém-lançada

Raridade e estranheza que somente a boa poesia nos traz, as leitoras e leitores brasileiros têm agora a oportunidade de conhecer uma amostra preciosa da produção poética contemporânea na China.

Esta edição bilíngue em português e chinês só se tornou viável graças ao trabalho de uma equipe para lá de afinada. Na tradução, o cuidado e competência de Inez Zhou e Dora Ribeiro. E na organização, o trabalho produtivo de Hu Xudong, que teve sua suspensão repentina com o trágico falecimento de nosso grande amigo e poeta Hu, em 2021. Ironia das mais tristes, esta: das 2 poetas mulheres e dos 8 poetas homens aqui selecionados, nascidos entre 1968 e 1991, somente Hu já não está entre nós. Justamente ele, um dos maiores animadores da cena poética chinesa contemporânea…

Além disso, essa antologia se vê enriquecida pela nota introdutória das tradutoras Inez Zhou e Dora Ribeiro, cuja parceria, vocês logo lerão, deu supercerto.

São 10 poetas e 52 poemas os mais diversos, com notas biobibliográficas que nos introduzem muito bem na leitura necessária dessa produção. Cuja marca maior parece não conter marcas, isto é: vários espaços-tempos perpassam na voz dessa jovem poesia, bem de acordo com aquele delineamento sugerido pelo erudito professor Zhang Longxi, em sua síntese monumental A History of Chinese Literature (2023). Isso, quando ele sugere, a propósito, essa abertura temática e quebra de paradigmas na produção literária chinesa contemporânea, ou seja, aquela feita a partir dos anos 1980, em seus mais diferentes gêneros.

Assim sendo, as vozes que aqui se alternam nos lembram de romances clássicos como o magistral Margem da Água (século XIV), ou então, a era esplendorosa da antiga poesia Tang (séculos VII a X), intercruzadas em cenas cotidianas, prosaicas, que beiram algumas vezes o fantástico e o surreal, outras vezes a contemplação melancólica de paisagens belas e distantes de uma acelerada hiperurbanização, com seus efeitos notáveis e, ao mesmo tempo, muito complexos na vida comum das pessoas.

Apenas como amostra dessa experiência poética feita de imagens ao mesmo tempo próximas e estranhas, transcrevo um trecho do poema em prosa de Jiang Hao[i], “A forma do mar”, escrito na província insular mais ao Sul da China, Hainan, em outubro de 2003, e que certamente inspirou o título do livro que a Jabuticaba ora nos oferece:

A forma do mar

Toda vez que você me perguntar sobre a forma do mar,
Vou buscar dois sacos de água do mar.
Esta é a forma do mar, como um par de olhos;
Ou a forma do mar vista pelos olhos.
Se você tocar neles, parece que está limpando
Duas lágrimas escaldantes.
[…]

Quantas rotas será possível seguir neste país tão maravilhoso e imprevisível? As leitoras e leitores podem, agora, ensaiar suas próprias viagens, por poemas que convidam, ao mesmo tempo, ao exílio e à meditação. Porque impressiona muito, aqui, nesta antologia, a sucessão de lugares diversos, seja nos textos das/os 10 poetas, seja em seus próprios destinos pessoais.

E nesse entardecer de primavera, aqui em Pequim, onde escrevo essas linhas de apresentação, me vem viva a memória de Hu Xudong, e sua alegria contagiante. Numa tarde de agosto de 2018, ele retornava a São Paulo de uma viagem que o emocionara tanto. Visitara Alagoinhas, e daí Canudos, a convite do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia, e ficara feliz de ter pisado num espinho do cacto de mandacaru, ao caminhar pela caatinga dos sertões baianos.

Depois, em Campinas, no IEL da Unicamp, declamava alguns de seus poemas como um aguerrido militante. Nas traduções primorosas e simultâneas de Ma Lin, então nossa pós-graduanda, tínhamos uma jornada de Poesia, Modernidade e Revolução das mais animadas e comoventes por lá. Foi ali, também, que Hu e Marcelo se conheceram pessoalmente.

O volume que aqui se publica resulta, também, portanto, dessa viagem. Quem o puder ler, agora, que faça a melhor escolha de seus próprios caminhos.

*Francisco Foot Hardman é professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia paulista e os eternos modernistas (Unesp). [https://amzn.to/45Qwcvu].

Referência


Hu Xudong (org.). As formas do mar: poesia chinesa contemporânea. Antologia bilíngue. Tradução: Inez Zhou e Dora Ribeiro. São Paulo, Edições Jabuticaba, 2024, 176 págs. [https://shre.ink/gcrK]

Nota


[i][i] Jiang Hao nasceu em 1971, em Chongqing, no sudoeste da China, uma das maiores metrópoles do mundo (cerca de 32 milhões de habitantes), próxima do rio Yangtzé e da hidrelétrica gigante das Três Gargantas. Ele é poeta, crítico e editor. Tem sua obra traduzida, entre outros idiomas, em inglês, alemão e francês. Vive há um bom tempo na província-ilha de Hainan, extremo sul da China.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O complexo de Arcádia da literatura brasileira
Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES: Introdução do autor ao livro recém-publicado
Umberto Eco – a biblioteca do mundo
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Considerações sobre o filme dirigido por Davide Ferrario.
O consenso neoliberal
Por GILBERTO MARINGONI: Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia
Gilmar Mendes e a “pejotização”
Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: O STF vai, efetivamente, determinar o fim do Direito do Trabalho e, por consequência, da Justiça do Trabalho?
O forró na construção do Brasil
Por FERNANDA CANAVÊZ: A despeito de todo preconceito, o forró foi reconhecido como manifestação nacional cultural do Brasil, em lei sancionada pelo presidente Lula no ano de 2010
O editorial do Estadão
Por CARLOS EDUARDO MARTINS: A grande razão do atoleiro ideológico em que vivemos não é a presença de uma direita brasileira reativa a mudanças nem a ascensão do fascismo, mas a decisão da socialdemocracia petista de se acomodar às estruturas de poder
Incel – corpo e capitalismo virtual
Por FÁTIMA VICENTE e TALES AB´SÁBER: Palestra de Fátima Vicente comentada por Tales Ab´Sáber
Brasil – último bastião da velha ordem?
Por CICERO ARAUJO: O neoliberalismo vai caducando, mas ainda parasita (e paralisa) o campo democrático
A capacidade de governar e a economia solidária
Por RENATO DAGNINO: Que o poder de compra do Estado seja alocado para expandir as redes solidárias
Mudança de regime no Ocidente?
Por PERRY ANDERSON: Qual é a posição do neoliberalismo no meio do atual turbilhão? Em condições de emergência, foi forçado a tomar medidas – intervencionistas, estatistas e protecionistas – que são anátemas para sua doutrina
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES