As novas encruzilhadas da América Latina

Gabriela Pinilla, Entrega de armas, Óleo sobre cobre, 28 X 50 centímetros, 2015, Bogotá, Colombia
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Por CLAUDIO KATZ*

A esquerda precisa de diagnósticos e programas, mas nenhum documento escrito resolverá os enigmas da experiência militante

A situação regional é marcada pelo cenário traumático gerado pela pandemia. A América Latina tem sido um dos epicentros internacionais da infeção, com dois países com o maior número de mortes por milhão de habitantes. O perigo de enfrentar uma segunda vaga de Covid-19 com poucas vacinas começa agora a surgir.

O coronavírus espalhou-se num terreno fértil para a explosão dos contágios, entre setores empobrecidos e alojados em habitações sem água corrente. A sobrelotação tornou impossível satisfazer os requisitos mínimos do distanciamento social e verificaram-se cenários dantescos de venda de oxigénio, hospitais sobrelotados e falta de camas.

Este impacto foi mais devastador nos países afetados pelo desmantelamento dos sistemas públicos de saúde. No Peru, os testes foram totalmente ineficazes devido à ausência de cuidados primários para as pessoas infetadas. O país mais elogiado pelo neoliberalismo lidera a percentagem de vítimas fatais.

O negacionismo criminoso de Bolsonaro multiplicou o número de mortes no Brasil. O alucinado presidente andou pelas praias a fazer discursos contra o distanciamento social, enquanto os mortos por asfixia se acumulavam nas unidades de cuidados intensivos. Bolsonaro dificultou todas as medidas de ajuda e permitiu que a doença se disseminasse descontroladamente entre os estratos de rendimento mais baixos.

Este extremismo impiedoso coexistiu na região com a improvisação, em todos os países que subestimaram a doença e introduziram quarentenas tardias ou ineficazes. Na Argentina, as políticas de proteção impediram a saturação dos hospitais, as mortes nas ruas e os enterros em valas comuns. Mas o número de mortos aumentou quando as salvaguardas se esgotaram. A campanha de erosão que a direita conduziu minou todos os cuidados que o governo não soube como manter.

Cuba mostrou como evitar estas hesitações. Com uma estratégia solidária de organização territorial, garantiu a prevenção e conseguiu uma baixa taxa de mortalidade estável.

O grande desafio agora é acelerar a vacinação para assegurar uma diminuição da infeção. Mas a América Latina não tem tido acesso às tão desejadas vacinas. No início da operação internacional contra a Covid-19, três quartos das vacinas foram administrados em 10 países avançados. Em 130 países com 2,5 mil milhões de pessoas, ainda não foram administradas quaisquer doses, e a América do Sul recebeu apenas 5% das vacinas distribuídas em todo o mundo.

Degradação em todas as áreas

O impacto económico e social da pandemia tem sido tão grave quanto o seu efeito sobre a saúde. Aprofundou a desigualdade e afetou gravemente os 50% da força de trabalho que sobrevive no setor informal, que se viram forçados a aumentar as suas dívidas familiares para contrariar a queda brutal dos rendimentos.

A desigualdade digital também aumentou, com consequências terríveis para os excluídos dos serviços básicos de comunicação. Apenas 4 em cada 10 lares da região possuem banda larga fixa. Esta lacuna impediu o ensino à distância de funcionar e levou a um ano escolar perdido para metade das crianças e 19% dos adolescentes. [1]

A pandemia também precipitou um colapso económico brutal. A contração estimada do PIB no ano passado variou entre 7,7% e 9,1%. A América Latina sofreu a maior contração global em termos de horas de trabalho. Esta queda foi o dobro da média internacional, acompanhada por uma diminuição dos rendimentos da mesma dimensão [2].

Dado a região ter vindo a passar por um período de estagnação de cinco anos, o coronavírus acentuou um enorme declínio económico. As previsões de há poucos meses apontavam para o desaparecimento de 2,7 milhões de empresas, a perda de 34 milhões de empregos e a incorporação de 45,4 milhões de novas pessoas pobres no universo dos desprotegidos. [3]

Para piorar a situação, os sinais de recuperação são fracos. A previsão de crescimento na região para 2021 (3,6%) é muito mais baixa do que a média mundial (5,2%). Se esta estimativa se confirmar, o PIB da América Latina não voltará ao seu nível pré-pandémico antes de 2024. Estes números decepcionantes dependerão, por sua vez, do fornecimento de vacinas e da continuidade de uma recuperação económica sem influência de novas estirpes de coronavírus.

Uma recuperação mais rápida terá de enfrentar o esgotamento das reservas fiscais e monetárias após um ano de grandes ajudas governamentais. É também pouco credível o reinício de um ciclo de endividamento massivo. O Fundo Monetário Internacional (FMI) continua a fazer discursos hipócritas de ajuda, mas na realidade limitou-se a implementar um alívio irrisório da dívida de alguns países ultra-empobrecidos. Repete a atitude que assumiu na crise de 2008-10, elogiando a regulação durante a tempestade e afinando as suas exigências tradicionais de ajustamento.

O coronavírus também não sensibilizou as empresas transnacionais que se dispensaram de qualquer dissimulação humanitária, continuaram a exigir pagamentos e a distribuir lucros. Os governos latino-americanos que assinaram tratados internacionais de “proteção do investimento” enfrentaram novas exigências de enormes somas durante a tragédia sanitária [4].

Assim, a Covid-19 agravou todos os desequilíbrios provocados por décadas de neoliberalismo, aposta no setor primário e endividamento, bem como acentuou a asfixia financeira, o desequilíbrio comercial, a diminuição da produção e a contração do poder de compra. Estas restrições só começarão a ser resolvidas com outro modelo e outra política.

Crise nas lideranças conservadoras

A pandemia tem sido utilizada pelos governos de direita para militarizar as suas administrações. Na Colômbia, Peru, Chile e Equador, foram instaurados estados de exceção com um protagonismo crescente das forças armadas. A repressão incluiu formas virulentas de violência estatal. O assassinato de uma jovem malabarista por carabineros no Chile e o massacre de jovens raparigas no Paraguai são exemplos recentes desta barbárie. Todas as semanas se ouve o nome de algum militante social colombiano morto pelas forças paramilitares.

Os governos da restauração conservadora estão determinados em estabelecer regimes autoritários. Não promovem as tiranias militares explícitas dos anos 70, mas sim formas disfarçadas de ditadura civil. Esta nova espécie do golpismo institucional tem um elevado nível de coordenação regional.

Na direita, a divisão entre correntes extremistas e moderadas persiste, mas ambos os grupos unem forças nos momentos decisivos e promovem uma estratégia comum de proscrição dos principais líderes do progressismo.

A direita utiliza os dispositivos do lawfare para desqualificar os adversários e capturar os governos. Obstruiu as candidaturas de Rafael Correa no Equador e Evo Morales na Bolívia alargando a outros países o modo de atuação utilizado para o afastamento de Lula no Brasil, e coordenou golpes parlamentares, judiciais e mediáticos para afastar os adversários, em operações que tentaram invalidar o mandato de AMLO no México ou de Cristina Kirchner na Argentina [5].

A fraude funciona como um complemento a esta proscrição. Está a ser utilizada na América Central, falhou na Bolívia e foi imaginada no Chile para manipular a Constituição. Com mecanismos equivalentes, numerosas mudanças foram consumadas no Peru face a cada colapso do sistema político.

Estas operações de constrangimento do progressismo têm o apoio explícito das forças armadas. Na Bolívia o golpe militar voltou a acontecer e no Brasil ficou a conhecer-se os detalhes da insurreição que a liderança militar estava a preparar, caso Lula participasse na corrida presidencial.

No Brasil verificou-se também a participação da classe judicial e dos meios de comunicação hegemónicos no golpe. O comportamento do juiz Sérgio Moro foi tão descarado como as mentiras espalhadas pela rede Globo. Os principais meios de comunicação assumiram uma importância sem precedentes na definição da agenda das classes dominantes em toda a região.

A embaixada dos Estados Unidos também mantém a sua tradicional importância na arquitetura das conspirações. Os EUA apoiaram diretamente o golpe na Bolívia e estão atualmente a intervir no Equador para colocar o seu candidato na presidência.

Para além disto a direita também ressuscitou os discursos primitivos e campanhas delirantes contra o comunismo, por exemplo alertando contra conspirações fantasiosas chinesas e denunciando ocultos objetivos socialistas em figuras bem conhecidas do establishment.

A ideologia conservadora conta com o importante apoio das igrejas evangélicas que se expandiram lutando contra as variantes contestatárias do cristianismo (por exemplo, a teologia da libertação). Entrincheiraram-se em campanhas contra o aborto, incorporando todos os mitos do neoliberalismo. Patrocinam presidentes, ministros e deputados e conquistaram uma enorme influência ao substituírem o Estado na ajuda aos mais desprotegidos [6].

Mas o projeto conservador de regresso ao poder que sucedeu ao ciclo progressista encontra-se afetado pela erosão de que sofrem as suas principais figuras. Sebastián Piñera governa quase sozinho, Jeanine Añez tenta escapar aos tribunais, Álvaro Uribe passou várias semanas em prisão domiciliária e Lenin Moreno está a fazer as malas. Infortúnio semelhante é vivido por Juan Guaidó – que ficou sem cúmplices – ou Mauricio Macri que fantasia em solidão sobre um regresso improvável.

As derrotas sofridas pela direita na última ronda de eleições (Argentina, México, Brasil, Chile, Bolívia) confirmam o seu momento difícil. No Equador, Guillermo Lasso perdeu recentemente metade dos votos recolhidos na eleição anterior.

Mas esta crise da direita não é sinónimo de declínio do neoliberalismo, modelo que persiste com experiências mais devastadoras. Os seus gestores estão a promover a “doutrina do choque” para implementar, no período pós-pandémico, novas políticas de privatização, liberalização do comércio e desregulamentação laboral. A experiência de 2009 confirma que o neoliberalismo não desaparecerá pela mera presença da crise ou pela crescente regulação do Estado. O seu afastamento exige uma mobilização popular.

A curto prazo, a continuidade da onda conservadora de regresso ao poder está sujeita ao destino das suas duas figuras principais. Na Colômbia, Iván Duque encontra-se num conflito com Álvaro Uribe que tem minado a homogeneidade do bloco de direita, tudo isto num contexto de ressurgimento da luta social e de consolidação da figura alternativa de Gustavo Petro.

No Brasil, o destino de Bolsonaro suscita previsões muito diferentes. Alguns analistas sublinham que continua a comandar o sistema político, salientando que mantém o controlo do Congresso e utiliza novas medidas assistencialistas nas políticas sociais para seduzir, com maior despesa pública, os eleitores desfavorecidos. Em sentido contrário, uma outra corrente de analistas realça a derrota esmagadora dos candidatos de ultradireita nas recentes eleições estaduais, salientando a indignação predominante quanto à gestão da pandemia e afirmando que o establishment está já a preparar uma substituição de centro-direita. Em qualquer caso, o nível de intervenção popular será determinante para o que acontecer no futuro.

Continuidades e eventuais mudanças com Biden

A derrota de Trump introduz um grau de dificuldade acrescida à direita da região, tendo as figuras retrógradas (Mike Pompeo, Elliott Abrams) que geriram as últimas conspirações na América Latina abandonado o Departamento de Estado norte-americano.

Bolsonaro ficou sem referência, Álvaro Duque tenta construir novas redes de apoio e o Grupo de Lima encontra-se à deriva. Já não será fácil repetir o desprezo imperial pela região, com provocações contra imigrantes ou desrespeito pelos compromissos na gestão de organizações multilaterais (BID).

Por outro lado, o assalto ao Capitólio, instigado por Trump, também afeta a direita latino-americana, pois pulverizou os argumentos utilizados por Washington para intervir na região e minou a autoridade do Departamento de Estado dos EUA para manter o lawfare. Além disso, o escandaloso processo eleitoral nos Estados Unidos também dificulta a contestação de eleições em países hostilizados. A crítica da OEA às eleições na Venezuela contrasta agora com o silêncio face à ocupação fascista do Congresso dos EUA.

Biden tentará ultrapassar estes obstáculos através de uma política de dominação com bons modos. Procurará enterrar a má educação e o desrespeito do seu antecessor, a fim de reatar alianças com o establishment latino-americano. Os seus antecedentes não deixam quaisquer dúvidas sobre a sua política externa: apoiou Margaret Thatcher na Guerra das Malvinas, apoiou os crimes do Plano Colômbia e ocultou as operações da DEA na América Central.

Durante a campanha eleitoral, Biden utilizou os mesmos slogans que Trump para seduzir os reacionários de Miami, tendo já afirmado que reconhecerá a presidência fantasma de Juan Guaidó na Venezuela e não se pronunciando sobre quando revogará a classificação de Cuba como um Estado terrorista.

Biden irá procurar artifícios para reduzir a presença da China na América Latina. Procurará encontrar parceiros regionais para as multinacionais norte-americanas que estão a deslocar fábricas da Ásia para locais próximos do mercado norte-americano. Tentará também formas de coordenação hemisférica para os novos negócios e empresas que a digitalização do trabalho faz prever.

O mito de que os Estados Unidos não estão interessados na América Latina foi desmentido pela própria administração de Trump, que promoveu 180 cimeiras empresariais e 160 acordos e trocas comerciais com grandes grupos capitalistas da região. Tanto os Republicanos como os Democratas aspiram a retomar o domínio de Washington sobre o continente, como um prelúdio para a desejada reconquista da primazia mundial. Esse objetivo exige, antes de mais, que se contenha a presença esmagadora da China na região.

Mas Biden está condicionado pelo fracasso do seu antecessor nesse objetivo. O gigante asiático consolidou os seus investimentos e exportações em todos os países, sem que os Estados Unidos conseguissem impedir essa avalanche. Até mesmo Bolsonaro – que inicialmente insinuou pretender um arrefecimento das relações com a nova potência – teve de recuar, sob pressão dos exportadores brasileiros.

Nem mesmo a assinatura do novo acordo de comércio livre com o México (T-MEC) enfraqueceu a presença chinesa. As empresas asiáticas continuam a fazer negócios na América Central e o lítio é a nova atividade em disputa na Bolívia, Chile e Argentina, constituindo um teste para ver se Biden consegue inverter as dificuldades atuais das empresas americanas. Mas a verdade é que todos os acordos que Washington prevê fazer dependerão do contexto político predominante.

Desafios da rua

A principal ameaça que o ressurgimento conservador enfrenta é a renovada onda de mobilizações populares. A vitória esmagadora do MAS na Bolívia foi um resultado direto dessa mobilização, pois os enormes protestos que aí ocorreram tiveram correspondência nos resultados eleitorais.

O exército não se atreveu a reprimir os enormes bloqueios de estradas que impuseram a realização de eleições e impediram a consumação de um novo golpe. A ditadura foi engolida pela sua própria gestão desastrosa da pandemia e pelo festival de corrupção que enfureceu a classe média.

O MAS mostrou uma vez mais uma grande capacidade de articular a ação direta com a intervenção eleitoral e, no clima de euforia que rodeou o regresso de Evo Morales ao país, uma nova geração de líderes acede agora à ação governativa.

Também no Chile a vitória alcançada no referendo sobre a Constituição foi o resultado de mobilizações contínuas. A pandemia não dissuadiu a presença de uma nova geração de militantes nas ruas, colocando o corpo em frente de polícias que dispararam em direção aos olhos e atiraram manifestantes para o rio, com dezenas de mortos e centenas de mutilados como resultado.

O Chile prepara-se agora para enterrar o legado do pinochetismo e pode coroar a longa luta iniciada pelos pinguins (2006), continuada pelos estudantes (2011) e consolidada por diferentes sectores da população (2019-2020). Está agora aberto o caminho para avançar em direção a uma Assembleia Constituinte soberana e democrática, que enterre o nefasto regime de desigualdade, educação privada e endividamento familiar.

No Peru, a recente explosão da luta nas ruas foi mais surpreendente e espontânea. Canalizou o descontentamento popular acumulado contra o regime que desde 1992 tem assegurado a continuidade do neoliberalismo através da rotatividade de presidentes destituídos pelo Congresso.

Os jovens, convocados através das redes sociais, protagonizaram uma revolta contra os fujimoristas, liberais e apristas que disputaram entre si o bolo da corrupção. Essa ganância desenvergonhada levou cinco presidentes à prisão e um ao suicídio.

Durante vários dias o Peru viveu um cenário semelhante ao de 2001 na Argentina. A queda de um presidente mentiroso foi precipitada pelo assassinato de dois estudantes e abriram-se vias para lutar por uma Assembleia Constituinte.

No Equador confirmou-se o protagonismo de diversos sujeitos populares nas revoltas. O movimento indígena teve uma intervenção notável na revolta que pôs Lenin Moreno de joelhos (em outubro de 2019), tendo primeiro liderado a resistência local contra o aumento do combustível e depois comandado a marcha sobre a capital que impôs a anulação da subida dos preços.

Essa vitória fez lembrar o antecedente de três presidentes derrubados pela intervenção do movimento indígena (1997, 2000 e 2005). Na última insurreição, o movimento indígena impôs a revogação de um decreto redigido pelo FMI, depois de ocupar as suas instalações. Os sucessos alcançados nas barricadas foram encarnados num evento político que sintetizou as principais exigências das organizações populares.

A mesma tendência para os protestos de rua tem também sido observada na Guatemala, nos grandes protestos contra os cortes nas prestações sociais no orçamento do Estado. Estas exigências tornaram-se centrais num país dilacerado pelo terrorismo de Estado.

No Haiti, outra batalha incansável tem vindo a desenrolar-se desde 2018. Mobilizações massivas reuniram um quinto da população exigindo a demissão imediata do governo. O Presidente Moisé estabeleceu um regime de facto ao prorrogar a vigência do seu mandato. Suspendeu o Parlamento, ignorou o poder judicial e é apoiado pelos militares estrangeiros que ocupam o país.

Para além disto, encorajou um banditismo criminoso a aterrorizar os adversários e a esmagar a luta de rua. Os Estados Unidos, a França e o Canadá têm atuado com arrogância colonial para manter o seu fantoche numa crise que não é eterna, nem insolúvel, mas sim a consequência de repetidas intervenções imperialistas num país devastado pela classe dominante.

Assim, em diferentes cantos do hemisfério verifica-se a mesma tendência para o reinício das revoltas que convulsionaram a América Latina no início do milénio. A direita não encontra instrumentos para enfrentar este desafio.

Progressismo moderado

A última vaga de eleições presidenciais não resolveu a questão do predomínio da restauração conservadora ou dos governos de centro-esquerda. Houve vitórias de direita no Uruguai e em El Salvador e vitórias de sinal contrário no México e na Argentina. Na Bolívia venceu a esquerda e está próximo um desenlace no Equador.

Durante o corrente ano os governos do Peru, Chile, Nicarágua e Honduras estarão em jogo e serão realizadas eleições legislativas em El Salvador, México e Argentina. Os resultados esclarecerão quais são as possibilidades de um reinício do ciclo progressista. O establishment vai expressando sérias preocupações sobre esta possibilidade e a consequente reabilitação do eixo geopolítico forjado na última década em torno da UNASUR [7].

Mas a moderação é a característica predominante das novas figuras do progressismo. Essa impressão é muito notória em Alberto Fernández, López Obrador, Luis Alberto Arce e Andrés Arauz e é verificada nos dois governos representativos da nova tendência: Argentina e México.

O presidente do primeiro país esperava inverter o desolador legado de Mauricio Macri com ligeiras melhorias compatíveis com os privilégios dos poderosos. No entanto, enfrentou o infortúnio do coronavírus num contexto de agressão furiosa da direita e optou pela hesitação e indefinição.

A oposição conservadora travou o projeto de Alberto Fernández de nacionalização de uma grande empresa em falência e forçou-o a fazer cedências ao setor financeiro através de pressão das taxas de câmbio. Para além disso, Fernández também violou a sua promessa eleitoral com uma fórmula de ajustamento das pensões que reduz o impacto da inflação. Mas, em sentido contrário, o presidente resistiu a pedidos de desvalorização monetária e introduziu um imposto sobre grandes fortunas que lança as bases para uma reforma fiscal progressiva.

O governo argentino não está a implementar o ajustamento exigido pelos mais ricos, nem a redistribuição exigida pelos sectores populares. Está a tentar seguir um caminho intermédio, no qual, por um lado, efetuou despejos de famílias sem abrigo e, por outro lado, facilitou a aprovação do aborto. Na política externa, condena e apoia (dependendo da ocasião) o governo venezuelano e distancia-se da OEA, ao mesmo tempo que reforça os laços com Israel.

Alberto Fernández situa-se no quadrante moderado do progressismo, sem definir que tipo de peronismo irá prevalecer na sua administração. Ao longo de 70 anos, o justicialismo argentino incluiu múltiplas e contraditórias variantes de nacionalismo, caracterizadas por exemplo por reformas sociais, virulência de direita, alterações neoliberais ou rumos reformistas.

O perfil atual será marcado pela reação do governo a uma oposição que procurou instalar o caos a fim de judicializar (e paralisar) o sistema político. O nível de mobilizações populares também influenciará o rumo do governo.

O México é o segundo exemplo deste tipo de progressismo tardio. AMLO apareceu após um duro confronto entre as elites do PRI e do PAN, que durante várias décadas foram apoiadas pelos principais grupos económicos. AMLO aproveitou a divisão dessas elites – e a impossibilidade de repetir os tradicionais mecanismos de fraude – para chegar à presidência.

López Obrador apresenta como realizações positivas algumas iniciativas democratizantes na investigação do massacre de Ayotzinapa (os 43 estudantes assassinados por narco-criminosos), a suspensão da construção de aeroportos polémicos e o cancelamento de uma reforma que promovia a privatização do ensino público. A sua estratégia de grandes obras de infraestruturas, para recuperar a soberania energética minada pela importação de gasolina dos Estados Unidos, é igualmente um elemento de realçar.

Mas, de facto, prevaleceram as decisões regressivas para reforçar o acordo comercial assinado com Trump (T-MEC), manter o contestado projeto do Comboio Maia e aceitar a intervenção ativa do exército para parar o fluxo de migrantes para o Norte. Esse envolvimento militar incluiu a criação de uma nova Guarda Nacional para lidar com o flagelo da violência. Embora tenha conseguido diminuir a taxa de homicídios, o México continua a ser dominado por uma violência criminosa que ceifou as vidas de 260.000 pessoas [8].

López Obrador partilha a ambivalência da política externa argentina. Distanciou-se do Grupo de Lima, reconheceu a soberania da Venezuela e recebeu médicos cubanos que lutam contra a Covid-19. Mas ao mesmo tempo fez uma visita entusiástica a Trump para ratificar o acordo de comércio livre.

A administração de AMLO representa bem a tibieza que marca a segunda vaga do progressismo. A sua timidez para implementar transformações com alguma importância supera a do seu colega na Argentina. Embora seja apropriado colocá-lo no universo do progressismo, AMLO está bastante longe do cardenismo e num contexto marcado pelo enfraquecimento da classe trabalhadora e pelo distanciamento do legado anti-imperialista.

Progressismo radical

Há dois governos na região que vêm de tendências radicais distintas do progressismo convencional. Evo Morales e Hugo Chávez construíram modelos convergentes, mas ao mesmo tempo distantes de Kirchner ou Lula. Em que medida é que os seus sucessores Luis Alberto Arce e Nicolás Maduro mantêm essa dinâmica?

Na Bolívia a questão começará a ser respondida quando as novas lideranças dentro do MAS se tornarem mais claras. Na estreia de Luís Alberto Arce, as iniciativas anti-Lawfare têm sido marcantes. Já começaram os julgamentos contra os responsáveis pelos massacres perpetrados pelos golpistas, mas ainda não se sabe se haverá uma purga efetiva no exército.

A principal dúvida situa-se na política económica: será o governo capaz de retomar as conquistas da administração anterior? Durante a presidência de Evo Morales foi implementado um modelo de expansão produtiva com redistribuição de rendimentos, o que colocou o país com um crescimento recorde e com melhorias sociais. O segredo destes resultados foi a nacionalização dos recursos naturais, num quadro de estabilidade macroeconómica e de coexistência com os sectores privado e informal.

A gestão direta pelo Estado de empresas estratégicas foi decisiva para a captura dos rendimentos gerados pelos sectores altamente rentáveis. O Estado absorveu e reciclou 80% deste excedente e tornou obrigatório que os bancos direcionassem 60% dos seus investimentos para atividades produtivas.

Com esta regulamentação conseguiu-se a “desdolarização”, o aumento do consumo e uma multiplicação do investimento. A pobreza extrema diminuiu de 38,2% (2005) para 15,2% (2018) e o PIB per capita aumentou de 1037 dólares para 3390 dólares. Os rendimentos das classes médias aumentaram juntamente com a expansão do poder de compra, devido a um programa baseado na nacionalização do petróleo [9].

Resta saber se este modelo recuperará vitalidade no novo contexto internacional e se o grande fardo do subdesenvolvimento que caracteriza a Bolívia facilitará esta expansão. As primeiras medidas do governo incluíram um imposto anual sobre grandes fortunas, bem como projetos para tornar efetiva a industrialização local do lítio através de acordos com empresas estrangeiras. Os golpistas tinham interrompido esse plano a fim de consumar o simples saque dos recursos naturais. Mas o rumo global que Luís Alberto Arce irá tomar ainda não parece estar definido.

Luzes e Sombras

Tal como na Bolívia, a direita sofreu uma derrota importante na Venezuela. Os golpistas, que durante um ano mantiveram o governo da Bolívia, não conseguiram quebrar o chavismo em momento algum. O processo bolivariano derrotou todas as conspirações geradas por Washington.

As diferenças entre estas duas experiências são numerosas. Na Venezuela, a classe dominante rejeitou todas as tentativas de conciliação ou de coordenação mínima com o governo, tendo sabotado todas as suas iniciativas, seguindo o guião de hostilidade concebido pela embaixada dos EUA.

Este clima de agressão permanente impediu o surgimento de um modelo económico semelhante ao que foi construído na Bolívia. Os EUA toleraram a autonomia daquele pequeno país, mas não aceitaram a perda da principal reserva de petróleo do hemisfério. É por isso que não cessam de se lançar contra a Venezuela.

Este carácter estratégico do confronto imperial com o chavismo reforça a derrota sofrida pelos esquálidos. O apoio de Washington a Juan Guaidó está a afundar-se e a última tentativa de golpe ensaiada com a fuga de Leopoldo López desvaneceu-se no esquecimento. As operações de provocação militar continuam com novos reagrupamentos de paramilitares na fronteira com a Colômbia, mas os complots perderam eficácia. O fracasso vergonhoso do desembarque de mercenários ianques foi um duro golpe para os conspiradores.

Para além disto, a direita também não conseguiu impedir as eleições de dezembro passado. A farsa das eleições paralelas foi inconsequente e uma parte da oposição concorreu às eleições oficiais. Com a maioria do partido no poder na nova Assembleia Nacional, o chavismo recuperou a instituição sequestrada durante vários anos pelos golpistas.

O fantoche Juan Guaidó mantém o reconhecimento dos EUA, mas encontra-se na defensiva e está manchado por inúmeros escândalos de corrupção. Perdeu capacidade de mobilização e enfrenta as críticas do seu próprio grupo.

Mas o chavismo também se confronta com sérios problemas. Ganhou as últimas eleições com uma elevada percentagem de abstenção. A afluência às urnas de 32% não foi a mais baixa da época bolivariana, nem chegou aos níveis mínimos habituais em muitos países. Mas esta baixa afluência às urnas ilustra o cansaço que impera na população. A perda de um milhão de votos pelo partido no poder verificou-se num cenário de dificuldades dramáticas.

A crise económica é enorme. O produto interno bruto desceu 70% desde 2013 sob o chocante flagelo da estagflação. O assédio orquestrado pelo imperialismo e os seus parceiros locais provocou um colapso brutal.

O país suportou a escassez programada e seletiva de bens essenciais, juntamente com uma sabotagem sistemática do financiamento da companhia petrolífera estatal (PDVSA), impedida de refinanciar dívidas ou adquirir peças sobressalentes para a continuidade da produção. A extração de petróleo bruto caiu para um nível sem precedentes e as reservas internacionais diminuíram de 20 mil milhões de dólares (2013) para 6 mil milhões de dólares (2020). A depreciação da moeda perdeu qualquer parâmetro possível face a taxas de hiperinflação alucinantes [10].

O óbvio determinante externo deste caos económico não explica tudo o que aconteceu. O governo também tem sido responsável pela improvisação, impotência ou cumplicidade. Tolerou passivamente um colapso produtivo que contrastou com o enriquecimento da boliborguesia. Permitiu a descapitalização gerada pela fuga de capitais, o que implicou um salto brutal na saída de fundos de 49.000 (2003) para 500.000 milhões de dólares (2016).

Os apoiantes do regime ignoraram todas as propostas do chavismo crítico para introduzir controlos sobre os bancos, modificar a afetação de moeda estrangeira ao sector privado, encorajar a produção local de alimentos e envolver a população no controlo dos preços. Também não se penalizaram seriamente os corruptos que sobrefaturam as importações, transferem divisas para o estrangeiro e lucram com a especulação monetária. A auditoria da dívida – para esclarecer os pagamentos de juros a credores do império – foi ignorada [11].

Recentemente o alívio introduzido pelo uso de dólares para recuperar o consumo foi interrompido pela pandemia. A decisão posterior de implementar uma lei antibloqueio (de modo a contornar a asfixia externa com incentivos para o capital privado) tem sido fortemente criticada por economistas de esquerda, pois dificulta o controlo cambial e fomenta as privatizações. As razões políticas – que impediram o chavismo de forjar um modelo económico semelhante ao da Bolívia – continuam a influenciar o país.

Ultimamente têm existido cada vez mais críticas de setores radicais do chavismo quanto à intolerância do presidente Nicolás Maduro em relação aos críticos de esquerda. Alguns consideram que se está a enfraquecer as estruturas de base para facilitar os negócios de grupos ricos. Propõem uma mudança de rumo imediata e um projeto de reconstrução da economia baseado nas comunas e na participação popular [12].

Um sucesso exemplar

Cuba continua o principal aliado do chavismo e mantém o seu papel de referência do bloco radical. Ao contrário da Bolívia e Venezuela, conseguiu consumar um projeto revolucionário, que tem sido mantido ao longo de várias décadas de adversidade, isolamento e complots. A continuidade do processo socialista na ilha é uma enorme proeza que tem contribuído para a continuidade da esquerda latino-americana. Mas o último projeto de criação de um quadro regional radical em torno do ALBA foi severamente afetado pela crise na Venezuela e pelas reviravoltas na Bolívia.

Apesar das dificuldades geradas pelo bloqueio e pelas agressões económicas de Trump, Cuba conseguiu sustentar uma economia assolada pelo colapso do turismo e pela escassez de moeda estrangeira.

A gestão das divergências políticas sem prejudicar a continuidade do regime contribuiu para a coesão da população. Recentemente, o aparecimento de expressões de dissidência entre setores das artes (Movimento San Isidro) foi amplamente divulgado internacionalmente. Este facto confirma que Cuba não vive isolada do mundo exterior e que as diferentes correntes do neoliberalismo, da social-democracia e da esquerda fazem ouvir as suas vozes através de diferentes canais. Este nível de reflexão e debate excede provavelmente a média latino-americana em termos de intensidade e participação.

Neste cenário difícil, a gestão da pandemia e os avanços da vacina Soberana II têm sido particularmente importantes. Uma vez concluídos os ensaios clínicos, existem já previsões para o seu fabrico e vacinação da população (e dos visitantes da ilha). Seria o primeiro país da América Latina a produzir a vacina contra a Covid-19, confirmando a capacidade de imunização desenvolvida contra o meningococo. Estes sucessos coroam uma longa experiência de trabalho num país que tem o maior número de médicos por habitante na América Latina.

Mas o papel das missões de equipas de saúde cubanas em diferentes lugares do mundo também tem sido muito importante. Para além dos 30.000 trabalhadores de saúde que já prestavam serviço em 61 países antes da pandemia, foram acrescentadas 46 brigadas internacionais para combater a infeção. Este “exército de casacos brancos” foi nomeado por muitas personalidades para o próximo Prémio Nobel da Paz[13].

A esquerda perante o PT e o peronismo

Como fazer avançar projetos de emancipação e igualdade num cenário político dominado pela oposição entre o progressismo e a direita? Esta questão está no centro dos debates entre as correntes reformista, autonomista e ortodoxa da esquerda latino-americana.

A corrente reformista promove estratégias semelhantes à socialdemocracia tradicional. Partilha a reivindicação de objetivos humanistas, não referindo a inviabilidade dessas metas no atual regime social. Na mesma linha, divulga propostas para modelos de capitalismo regulado, inclusivo e pós-liberal. Apela a iniciativas de desenvolvimento concertadas com os grandes bancos e empresas transnacionais, sem avaliar os fracassos anteriores dessas tentativas.

As tendências reformistas adequam a sua intervenção ao quadro institucional vigente, desvalorizando a oposição das castas militar, judicial e mediática a qualquer transformação popular significativa. Tendem a desvalorizar a influência do golpismo e, em vez de enfrentarem a direita, exploram formas de cooperação que encorajam o inimigo e desmoralizam os seus aliados.

O PT do Brasil é o principal expoente desta visão errada que afetou gravemente a sua passagem pelo governo. Os progressos feitos durante o governo do PT não foram suficientes para conter a desilusão popular e a ascensão de Bolsonaro. O desencanto começou com Lula e generalizou-se com Dilma, após vários anos de manutenção dos benefícios da elite capitalista. O PT preservou a velha estrutura de privilégios da partidocracia e aceitou o primado constante dos meios de comunicação hegemónicos.

Devido a esta manutenção do status quo, o PT começou por perder o apoio da classe média e depois o apoio dos trabalhadores. Esta erosão foi manifesta durante os protestos de 2013, quando a direita começou a impor o seu controlo da rua. A direita triunfou nessa esfera antes de vencer nas urnas, confirmando que as relações de força se definem no terreno e se projetam, posteriormente, no plano eleitoral.

As correntes reformistas tendem a omitir esta avaliação e apresentam o PT como uma simples vítima dos artifícios de direita. Não reconhecem que tenha abandonado o empoderamento popular e apostado num apoio passivo à população baseado na melhoria do consumo. Quando a retoma económica se esgotou, a direita tinha o caminho aberto para apoderar-se do governo.

Mas esta trajetória não define o futuro. O PT poderá recuperar a centralidade na batalha contra Bolsonaro, ou diluir-se numa frente hegemonizada pelos seus rivais ou ser ultrapassado por uma frente de esquerda. Estas três possibilidades dependerão da intensidade da resistência social e do papel que Lula venha a assumir (ou consiga impor). As derrotas populares acumuladas durante 2016-2018 influenciam um partido que já não é visto como o ponto de referência inevitável para a militância[14].

As opiniões otimistas realçam o aparecimento de duas novas figuras com grandes raízes entre a juventude e os movimentos sociais (Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila). Ganharam um protagonismo sem precedentes, baseado na aliança que dois partidos da esquerda (o PSOL e o PCdoB) fizeram com o PT. As opiniões pessimistas desvalorizam esta evolução e salientam o recuo face à direita, num contexto de fracas mobilizações de rua.

Em qualquer caso, o avanço da esquerda exige um equilíbrio entre as críticas e a convergência com o PT. Por um lado, é essencial discutir os erros cometidos por aquele partido, para lembrar que Bolsonaro não foi o resultado de desgraças históricas inevitáveis ancoradas no paternalismo e na escravatura. Por outro lado, é necessário reconhecer a influência do PT e a possibilidade comprovada de construir um projeto de esquerda mantendo as pontes com o PT [15].

Os desafios para a esquerda no outro país que alberga uma variante importante de reformismo são mais complexos. Na Argentina, o kirchnerismo encontra-se de novo no governo e, ao contrário do que acontece no Brasil, a oposição de direita está marcada pela herança de Mauricio Macri e não conseguiu consolidar a base social que acompanha Bolsonaro. Além do mais, Cristina Kirchner deixou um passado de conquistas e não uma herança de desilusão e o kirchnerismo recompôs as suas bases com outros tipos de alianças e modalidades de gestão.

O peronismo, uma vez mais, reciclou-se a si próprio face ao enorme fracasso dos seus adversários liberais e acrescentou uma parte dos movimentos sociais à sua hegemonia tradicional no sindicalismo. As previsões da extinção do justicialismo não se confirmaram, nem as expectativas de o transformar numa força radicalizada. O peronismo mantém na sua estrutura as franjas conservadoras que periodicamente recuperam a liderança dessa força.

A natureza variável deste movimento e as suas facetas de progressismo e reação reapareceram, sob um governo que oscila entre atropelos e melhorias. Compreender esta plasticidade da principal força na Argentina é um requisito indispensável para o crescimento da esquerda. Se esta dualidade for ignorada, seja por uma simples aprovação ou por um sectarismo míope, será impossível construir um projeto radicalizado.

É tão errado aceitar o discurso oficial – justificar o despejo de Guernica ou o corte nas pensões – como desvalorizar a concretização do imposto sobre grandes fortunas. O avanço da esquerda passa por levantar a voz contra os erros do governo e reconhecer as melhorias que este introduz.

Dilemas do autonomismo

O autonomismo emergiu com grande entusiasmo na última década defendendo a luta dos movimentos sociais. Sublinhou o alcance anti-sistémico dos protestos populares e opôs-se aos projetos baseados em qualquer estratégia de conquista do poder do Estado. Deste ponto de vista, equiparou governos progressistas aos seus homólogos de direita e considerou-os como duas variantes da mesma dominação pelos poderosos.

Também promoveu uma crítica feroz ao chavismo, usando argumentos semelhantes aos da socialdemocracia. Questionou a violação das regras de funcionamento democrático na Venezuela, ignorando a perseguição dos EUA, e colocou o regime daquele país no mesmo nível dos governos servis do imperialismo. Esta atitude induziu-o a adotar posições confusas face ao golpe na Bolívia, que equiparavam Evo Morales aos golpistas e evitavam a solidariedade ativa com as vítimas do golpe.

A experiência de todo este período demonstrou a ineficácia de qualquer estratégia de transformação social que renuncie à gestão do Estado. Este instrumento é indispensável para alcançar melhorias sociais, expandir o raio de exercício da democracia e permitir o protagonismo popular num longo processo de erradicação do capitalismo. A intervenção em eleições constitui um momento relevante nesta batalha.

A tradicional posição autonomista de contestar as eleições foi substituída nos últimos anos por opiniões que aceitam a participação nelas. Mas a forma como esta participação é promovida é tão controversa como a promoção do anterior abstencionismo. Os dilemas em curso no Equador exemplificam estes problemas.

A grande novidade destas eleições no Equador foi o surpreendente resultado obtido pelo indigenismo, que conseguiu colocar o seu candidato Pachakutik – Yaku Pérez – a um passo de uma segunda volta com o candidato pró-Correa Andrés Arauz. Mas se se confirmar que a segunda volta será realizada com Guillermo Lasso, de direita, o movimento mais combativo do país enfrenta um grave dilema: terá de decidir qual a sua posição na segunda volta. Essa definição só pode ser adiada enquanto a impugnação de um conjunto de boletins de voto é resolvida.

Yaku Pérez por diversas vezes adotou posições favoráveis a Guillermo Lasso. Apoiou-o explicitamente nas eleições de 2017, afirmando que era “preferível um banqueiro a um ditador”. Convidou-o também a formar uma frente na primeira recontagem de votos realizada sob a égide da OEA.

Esta posição é uma consequência do enorme conflito que manteve com o governo de Rafael Correa, que estava determinado a expandir a extração mineira. Esse confronto incluiu 400 processos judiciais contra líderes do movimento indígena e gerou uma ferida tão profunda que Pérez caracteriza a “revolução cidadã” nos mesmos termos (“uma década de pilhagem”) que o milionário neoliberal.

Essa animosidade estende-se também aos aliados regionais de Rafael Correa. Yaku Pérez repudia Chávez, Maduro e Evo Morales com a mesma linguagem que a direita usa e até deu a entender há dois anos a sua aprovação ao golpe de Estado na Bolívia [16].

Alguns analistas salientam que Yaku Pérez representa a vertente étnica do indigenismo, que promove reivindicações corporativas em estreita ligação com as ONG. Esta corrente revela sintonia com a ideologia neoliberal, nos seus elogios aos empresários e à diminuição de impostos.

Pelo contrário, a corrente classista exige projetos de esquerda e promove ligações com o sindicalismo. Esta corrente defende que a urbanização teve impacto nas antigas comunidades agrárias, aumentando a incorporação dos povos indígenas no segmento mais empobrecido das cidades.

Esta segunda corrente – contrária a qualquer convergência com a direita – poderia construir pontes com os progressistas do correísmo, que se opõem ao confronto brutal do governo anterior com o indigenismo. Esta união de forças populares é indispensável para derrotar Guillermo Lasso nas urnas e para dissipar qualquer possibilidade de repetição na América Latina do derramamento de sangue étnico-comunitário que aconteceu nos Balcãs, no Médio Oriente ou em África [17].

Neste contexto, várias das figuras principais do autonomismo saúdam o aparecimento de Yaku Perez como uma terceira opção que permitirá superar a política regressiva do correísmo. Desvalorizam as suas convergências com Guillermo Lasso, dizendo que serão corrigidas no futuro[18] e concordam com aqueles que, no Equador, veem o líder do Pachakutik como o arquiteto de um novo rumo, que deixará para trás a falsa antinomia entre dois pares (Andrés Arauz e Guillermo Lasso) [19].

Mas estas posições permitem prever (no melhor dos casos) uma atitude de abstenção que conduziria à vitória conservadora, caso consiga frustrar a eleição de Andrés Arauz. O confronto cego com o correísmo impede de ver esse simples facto. É evidente a equivalência total de Guillermo Lasso com Bolsonaro, Mauricio Macri, Sebastian Piñera ou Iván Duque e, por isso, o apoio objetivo ao projeto reacionário representado por eles se se recusar o voto em Andrés Arauz nas próximas eleições. Não é necessária uma elaboração teórica muito sofisticada para reparar neste corolário.

A luta contra o extrativismo é destacada pelos autonomistas como mais uma razão forte para colocar o correísmo e a direita no mesmo plano. Os autonomistas reivindicam insistentemente a defesa dos recursos hídricos e do ambiente, mas sem mencionar que esta proteção só será eficaz se abrir caminhos para o crescimento, a industrialização e a erradicação do subdesenvolvimento. Caso contrário, recriará a estagnação, a pobreza e a desigualdade.

Se, por exemplo, se defende manter os depósitos mineiros e petrolíferos intocáveis (a fim de preservar o ecossistema), é necessário explicar de onde virão os recursos para tornar viável um processo de expansão produtiva com redistribuição de rendimentos[20].

A Bolívia fornece a principal experiência para avaliar este dilema. É um país muito próximo e semelhante ao Equador, os líderes do MAS introduziram o Estado Plurinacional, o respeito pelas línguas e costumes das comunidades e a orgulhosa reivindicação da tradição indígena. Mas ao mesmo tempo limitaram as propostas etnicistas, articularam um projeto nacional com outros sectores populares e puseram em prática um modelo de crescimento baseado na gestão estatal do negócio do gás e petróleo. Os avanços económico-sociais alcançados pelo governo boliviano teriam sido inviáveis com um projeto puramente anti-extrativo.

Problemas do dogmatismo

Se no Equador se confirmar uma segunda volta das eleições entre Andrés Arauz e Guillermo Lasso, todas as correntes de esquerda enfrentarão um dilema bem conhecido: apoiar o candidato progressista ou optar pela abstenção, declarando que os dois candidatos são iguais. O sistema eleitoral em duas voltas já impôs esta definição noutros países (por exemplo, no Brasil, com Fernando Haddad versus Bolsonaro) ou obrigou a considerar esta possibilidade (Alberto Fernández versus Mauricio Macri na Argentina, Evo Morales versus Carlos Mesa na Bolívia).

Várias correntes provenientes da tradição mais ortodoxa do trotskismo costumam opor-se ao apoio a figuras de centro-esquerda contra os conservadores. Denunciam as afinidades entre dois setores pertencentes ao mesmo segmento burguês e criticam a resignação perante o mal menor. Salientam ainda os prejuízos que o apoio ao reformismo gera para a construção de um projeto revolucionário.

Mas, nas últimas décadas, os factos não confirmaram estas previsões. Em nenhum país a decisão de criticar da mesma forma os dois principais concorrentes resultou na criação de forças importantes na esquerda. A experiência tem demonstrado que o progressismo é inconsequente na sua batalha contra a direita mas não é igual ao principal inimigo dos povos latino-americanos. Além disso, a opção pelo mal menor não é invariavelmente negativa. Na militância quotidiana procuram-se sempre resultados (sindicais, sociais ou políticas) que estão longe do ideal socialista.

O voto no progressismo contra a direita contribui simplesmente para travar o regresso conservador ao poder, permitindo limitar os abusos económicos e conter a violência contra os oprimidos. Desta forma são criados cenários mais favoráveis para o avanço da esquerda e são construídas relações de forças mais consentâneas com este objetivo. Esta estratégia é compreensível para a maioria da população que nunca compreende os complicados raciocínios apresentados para justificar a abstenção.

O dilema eleitoral revela os mesmos problemas de intervenção política que surgem quando se trata de definir posições perante governos ambíguos (AMLO, Alberto Fernández) ou alianças da esquerda com o progressismo (o PSOL com o PT). Mas a Venezuela é o país onde estes dilemas deram origem às controvérsias mais acesas.

Aí não é uma simples escolha eleitoral entre partidos pró-governamentais e da oposição que está em jogo, mas a ameaça permanente de um golpe de Estado para estabelecer um regime de terror e rendição. Esse perigo – assinalado por todos os analistas – é de modo geral imperceptível para aqueles que criticam a tendência do chavismo para cooperar com a direita. Destacam estas semelhanças de posições sem explicar por que razão o imperialismo e os seus vassalos continuam a fomentar inúmeros complots. Esta posição apresenta numerosas variantes [21].

As correntes mais extremas apresentam Nicolás Maduro como o principal inimigo e exigem a sua demissão em evidente sintonia com a direita. Repetem o suicídio cometido pela esquerda quando se juntou com o gorilismo (alianças com o anti-peronismo na Argentina nos anos 50).

Outras correntes, mais moderadas, evitam este alinhamento, mas optam por criticar o chavismo e a oposição sem tomar partido no conflito. Apelam à abstenção nas eleições e divulgam slogans abstratos. Noutros casos, esta fuga ao conflito real leva-os a promover mediações entre os esquálidos e o chavismo, assumindo uma neutralidade implícita em relação aos agressores e às vítimas da agressão imperialista. Estes comportamentos dificultam a influência em processos políticos reais e aumentam a situação de marginalidade.

Estratégias de radicalização

Os debates à esquerda não fornecem apenas diagnósticos do cenário latino-americano. Procuram elaborar análises destinadas a facilitar a intervenção política, a fim de avançar para o objetivo transformador. Procuram sustentar a construção de uma nova sociedade construindo caminhos para resistir à subjugação imperial, erradicar o capitalismo e lançar as bases do socialismo.

Os militantes da esquerda perseguem esse objetivo, rejeitando as fantasias do capitalismo produtivo, inclusivo e humanista propagadas pelos líderes do progressismo. Criticam igualmente o mito de uma gestão harmonizadora do Estado numa sociedade dilacerada pela desigualdade e exploração. A realização do bem comum requer a superação do capitalismo.

Uma tal reafirmação de princípios é decisiva para forjar o objetivo socialista. Mas também são necessárias táticas, estratégias e projetos adequados ao tempo presente. Durante a maior parte do século XX esse conjunto de ações esteve centrado na revolução, enquanto momento culminante das revoltas populares.

Este ponto culminante poderia resultar de conquistas ascendentes, processos de insurreição ou guerras populares prolongadas. As revoluções triunfantes consumadas em cenários de grande confrontação bélica ou de agressão imperial eram os exemplos. Com base nestes pressupostos, definiam-se orientações inspiradas pelas experiências bem-sucedidas da China, Vietname ou Cuba.

Estes projetos foram abandonados na maior parte do mundo após o colapso da União Soviética. Mas na América Latina essa deserção foi limitada pela permanência da revolução cubana, pela irrupção do ciclo progressista e pelo impacto dos processos radicais na Venezuela e na Bolívia. Este cenário permitiu grandes mudanças sem ruturas revolucionárias, sob sistemas políticos mais complexos do que as ditaduras clássicas dos anos 60 e 70.

Este contexto propiciou o amadurecimento de novas estratégias de radicalização que valorizam as realizações dos governos progressistas, sem aceitar os limites que impõem à ação popular. Estas políticas anticapitalistas não definem antecipadamente o rumo que a batalha por uma nova sociedade irá tomar. Evitam esta predeterminação de temporalidades ou sequências de uma transformação imprevisível. Permitem que a experiência revele quais as conquistas que precederão a realização do objetivo socialista.

Estes avanços surgirão de ações parlamentares e de batalhas de rua, mas não é possível prever que tipo de combinação irá ligar ambos os processos. A melhor forma de integrar ambas as dimensões é através da construção de hegemonias políticas gramscianas e da preparação de ações revolucionárias leninistas.

Este tipo de política tem numerosos protagonistas nas correntes, partidos e movimentos da América Latina. Todos eles salientam a prioridade da resistência anti-imperialista contra as agressões dos EUA, destacando que, para recuperar a soberania e conceber projetos alternativos, é necessário construir um bloco de países de contenção do imperialismo. Essa estrutura permitiria também negociações económicas conjuntas com potências extra-regionais como a China, a fim de melhorar o comércio e inverter a primazia do setor primário na economia.

Na América Latina, a esquerda é construída nas lutas diárias que rejeitam a austeridade e promovem a redistribuição do rendimento. Na conjuntura atual, esta ação implica rever o peso sufocante da dívida externa. Há muitas propostas de perdões e reestruturações, mas a auditoria e a suspensão de pagamentos continuam a ser as opções mais adequadas para implementar esta revisão. Outra questão com igual importância é a de um imposto sobre as grandes fortunas para contrariar o colapso das receitas fiscais com critérios de equidade.

A esquerda precisa de diagnósticos e programas, mas nenhum documento escrito resolverá os enigmas da experiência militante. A vontade de lutar é o principal ingrediente dessa intervenção, em oposição aberta ao ceticismo e à resignação. Os inúmeros exemplos desta característica entre os jovens de hoje auguram tempos promissores para toda a região

*Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).

Tradução: Paulo Antunes Ferreira para o Esquerda.net.

Publicado originalmente na revista Viento Sur.

Notas


[1]-Furlong, Sebastián. Pandemia y desigualdades en América Latina, 8-6-2020 https://www.nodal.am (link is external)

[2]-Ferrari, Sergio. América Latina contra las cuerdas de la pandemia, 14-10-2020, https://www.cadtm.org (link is external)

[3]- OIT. La pandemia se ensañó con América Latina, 2-10-2020, https://www.pagina12.com.ar/296143 (link is external).

[4]- Ferrari, Sergio, Presión de inversores extranjeros, 2-9-2020, https://www.agenciapacourondo.com.ar (link is external)

[5]-Guerra Cabrera Ángel Democracia neoliberal, 12-9-2020, https://www.jornada.com.mx (link is external)

[6]-Goldstein , Ariel. Cómo los grupos religiosos están copando la política en América, 25-1-2021 https://www.pagina12.com.ar/319383 (link is external)

[7]-Oppenheimer, Andrés ¿América Latina gira a la izquierda? https://www.lanacion.com.ar (link is external)

[8]-Hernández Ayala, José Luis. División en la élite y ruido de sables, 2-6-2020, https://vientosur.info (link is external)

[9]-Oglietti, Guillermo; Serrano Mancilla, Alfredo. ¿Por qué funciona la economía boliviana?, 24-9-2019

[10] Curcio, Pasqualina, El laberinto de la economía venezolana, 28-1-2021 https://www.desdeabajo.info/mundo/item/41577 (link is external)

[11]- Zúñiga, Simón Andrés Moratoria de la deuda y plan de apoyo solidario: primero el pueblo. 20/02/2019 https://rebelion.org (link is external). Las medidas económicas y lo que nos dejó Chávez, 19/01/2014, aporrea.org

[12] Gilbert, Chris Cómo llegó la izquierda venezolana hasta donde está, 27-1-2021 https://rebelion.org/autor (link is external)

[13] -Szalkowicz, Gerardo, Made in Cuba: la vacuna contra el coronavirus, 5-9-2020, https:// www pagina12.

[14]-Arcary, Valerio. ¿A dónde va el PT?, 10-12-2020, https://www.resumenlatinoamericano.org (link is external)

[15]-Arcary, Valerio. Boulos abrió una brecha, 1-12-2020 https://jacobinlat.com (link is external).

[16]-Cárdenas Félix. Ecuador. ¿Yaku? ¿Indígena?, 10-2-2021 https://www.resumenlatinoamericano.org (link is external)

[17]-Figueroa José Antonio. Ecuador: Etnicismo neoliberal. Un panorama de urgencia tras la primera vuelta de las elecciones ecuatorianas, 13-2-2021 https://www.sinpermiso.info/textos/ (link is external).

[18]-Svampa Maristella. Yaku Pérez y otra izquierda posible, 8-2-2021, https://www.eldiarioar.com/opinion (link is external)

[19]-Saltos, Napoleón; Cuvi, Juan, Acosta, Alberto. Desde el Ecuador para los pueblos -Aquí el pronunciamiento, 10-2-2021 https://clajadep.lahaine.org/index.php (link is external)

[20]-Itzamná, Ollantay Ante una falsa disyuntiva de progresismo o agenda indígena, 11-2-2021, https://www.resumenlatinoamericano.org/ (link is external)

[21]-Katz, Claudio. La izquierda frente a Venezuela, 12/6/2017, www.lahaine.org/katz (link is external)

 

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De outro lado, ainda no campo da esquerda, sustenta-se que a oposição ao PL é mero jogo de cena, fruto de um oportunismo, qual seja, o de se colocar contra uma proposta que, no fundo, atende aos interesses dos que se posicionam contrários, pois, com esta estratégia, buscam, de fato, evitar que, no debate congressual, a proposta ganhe rumos diversos daqueles que foram inicialmente pronunciados e até mesmo para que se possa ir além, no sentido da ampliação da regulação para proposta outras categorias de trabalhadores e trabalhadoras. Ao me deparar com todas essas avaliações, não tenho como deixar de reiterar as preocupações há muito (e de forma reiterada) manifestadas, no aspecto do quanto o raciocínio moldado pela lógica dos resultados, sobretudo quando induzido por cálculo eleitoral ou pela preocupação da manutenção da dita “governabilidade”, tem nos impedido de promover análises objetivas e debates efetivamente envolvidos e comprometidos com a construção de uma realidade social, econômica e política mais condizente com a condição humana, tomadas pelos pressupostos da liberdade e da igualdade reais. 2. O poder de reflexão é algo que exige ser exercitado. Na atrofia mental, ele se perde. No estado abstinência intelectiva todo tipo de raciocínio, mesmo desprovido de lógica ou empiria, incluindo os de cunho negacionista ou baseados em discursos de ódio, apresenta-se como válido e da mesma ordem de grandeza de qualquer outro. Este, aliás, é o grande problema de se colocar, em primeiro plano, a defesa abstrata da liberdade de expressão, fazendo com que a preocupação com o conteúdo fique completamente fora das discussões. A questão é que a censura, em si, não é promotora do conhecimento. E o maior problema é que quando a preocupação com o conhecimento é desprezada ou afastada pela circunstância emergencial de se priorizar a criação de um obstáculo ao advento de algo considerado ainda pior (lógica do mal menor), o compromisso com o real e a busca do saber se esvaem, sobretudo, quando, para cumprir esses objetivos, apresentam-se, como razoáveis e inexoráveis, argumentos retóricos e, assumidamente, falseados, desprovidos de lógica e coerência. Este é o processo pelo qual o irracional tem apontado o que seria ainda mais irracional, para se fazer racional. Tomando por base a política nacional há muito vigente, o Partido dos Trabalhadores, dentro da sua preocupação de se apresentar como um partido de esquerda, mas que, concretamente, apoiado na estratégia de conciliação de classes, reproduz e reforça a lógica neoliberal que é de interesse da classe dominante, precisa da criação de uma ameaça conservadora, para se apresentar como o avanço possível. Mas como esta é a própria lógica da sua existência, o PT necessita da nomeação de um inimigo concreto e que represente efetiva ameaça. Foi assim que antes se alimentava do fantasma do PSDB, e, agora, é dependente do bolsonarismo. O problema é que, neste contexto, a retórica ganha vida e a própria ameaça criada toma forma concreta e se retroalimenta toda vez que as argumentações falseadas para combatê-la transparecem. Quando o irracional dominante atrai novas irracionalidades, com as quais se rivaliza, o que se estabelece é um círculo vicioso em direção á barbárie. As guerras estão aí para demonstrar isso… Os antagonismos, quando fogem de qualquer preocupação com o real e a produção do conhecimento, desenvolvendo-se no plano da conveniência e da dissimulação, estimulam a naturalização do absurdo. Nesta roda que se move para trás, até mesmo os negacionismos, terraplanismos e discursos de ódio ganham força. Quando se diz, por exemplo, que o autoritarismo é necessário para defender a democracia ou que qualquer ato e argumentos são válidos para combater o fascismo, o que se consegue é apenas atrair o autoritarismo e o fascismo para uma rivalidade no mesmo plano. Este, ademais, é o grande risco de conferir o título de herói a quem comete arbitrariedades em nome da defesa da democracia, deixando-se de lado, inclusive, a essencial discussão de que democracia, afinal, se está falando. Que democracia está sendo defendida, para quais sujeitos e com quais objetivos? 3. 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Vale perceber que nas manifestações sobre a contrariedade conservadora e liberal ao PL, acima expostas, não há nenhuma tentativa de compreender as razões efetivas pelas quais a contrariedade se explicitou, da qual geraram, inclusive, mobilizações de rua de muitos motoristas. As reações às contrariedades rejeitam qualquer grau racionalidade aos opositores e transferem para estes a sua própria racionalidade. Na lógica dos defensores do PL, se o PL avança em direitos e alguém é contra é porque ou não entendeu bem o PL ou o é porque quer sua intenção é impedir que os avanços sejam consagrados ou que o governo obtenha proveito político com a aprovação do PL. Esta avaliação representa uma total abstinência analítica. A primeira grande constatação que se precisa realizar e que explícita essa abstinência diz respeito ao movimento de colocar como um mesmo objeto, PL e governo, fazendo com o que coloque em debate é a governabilidade e não a pertinência do conteúdo do PL. O que importa, concretamente, é a discussão acerca do conteúdo do PL e seus possíveis efeitos na realidade concreta das relações de trabalho. Mas, o que estas avaliações vislumbram é impedir desgastes à governabilidade. Então, nesta perspectiva passa a ser preciso dizer que as objeções ao PL são da mesma ordem, ou seja, que não dizem respeito ao conteúdo, ou que falseiam o conteúdo e se destinam, unicamente, a desestabilizar o governo. A adoção desse método para desviar o foco do debate sobre o conteúdo pode ser constatada pelo fato de que as manifestações oficiais de defesa do PL tomam como alvo apenas os argumentos de conservadores e liberais, de modo a fazer transparecer que, de fato, a contrariedade é meramente um ato político partidário. Veja-se que a Nota das Centrais Sindicais, expedida em 05 de abril deste ano, “dialoga” apenas com as objeções vindas de conservadores e liberais, muito embora, inúmeros argumentos muito distintos contra o PL já tenham sido explicitados por acadêmicos(as), pesquisadores(as), juristas, sociólogos(as) e entidades e movimentos do mundo do trabalho, além de diversos trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo, da categoria de entregadores (os quais não aceitaram a proposta de regulação do governo, cabe lembrar), todo(as) ligados(as) ao pensamento de esquerda. Primeiro, a Nota das Centrais aprofunda o descompromisso com a realidade, quando diz, por exemplo, que “o trabalho autônomo, assim devidamente caracterizado, “passa a ser considerado como uma relação de trabalho” entre a empresa que opera o aplicativo e a pessoa que trabalha de forma autônoma”, como se a exclusão da relação de emprego, como todos os direitos daí consequente, fosse uma vantagem, ou que o PL garante “uma remuneração base de R$ 5.650,00”, quando, de fato, 3/4 desse valor, segundo os termos do próprio PL, destinam-se à reposição dos custos do trabalho, resultando em uma efetiva remuneração, pelo número de horas de trabalho indicado na referida Nota, no importe de R$1.412,00. Mas o mais grave mesmo, como dito desde o início deste texto, é a postura assumida de não tentar compreender as motivações, ligadas ao conteúdo, que levam conservadores e liberais a serem contrários a um Projeto de Lei que, como se sabe, atende aos interesses destes segmentos ideológicos. Por certo, os defensores do PL não vão reconhecer isto e aí já se tem um vício primário incontornável, que é motivador de todos os demais desvios de avaliação. Ora, o PL ao negar o reconhecimento da relação de emprego e de, consequentemente, afastar a aplicação das garantias fixadas na CLT e em todas as demais normas trabalhistas, sobretudo, constitucionais, vai na direção do que liberais e conservadores vêm preconizando a décadas e que não conseguiram levar a efeito, nem mesmo na “reforma” trabalhista de 2017, apoiada pelo governo golpista de Michel Temer, e no Projeto da Carteira Verde e Amarelo, do governo ultraliberal e fascista de Jair Bolsonaro. Ocorre que os conservadores e liberais têm efetivas razões para se posicionarem contra o conteúdo do PL e a negação proposital dessa percepção é denunciadora de uma limitação que, gravemente, há muitos anos afeta uma certa parcela da esquerda brasileira. Afinal, por que liberais e conservadores são contra o PL? Eis a questão, que precisa de uma análise mais detida, pois algumas lições e apreensões podem ser dela extraída, como veremos. 4. Primeiro, o fato de se colocarem contra um projeto de lei que atende o seu ideário está relacionado a um ideário que há muito foi abandonado por um setor da esquerda e que acabou, de certo modo, sendo apropriado pela direita: a utopia. Os governos conservadores e liberais têm sido radicais nas defesas de suas pretensões, chegando mesmo, muitas vezes, a falar em “revolução”. Fato é que estes segmentos, desde o enfraquecimento da utopia socialista, abandonaram a postura defensiva e passaram ao ataque declarado. Querem e buscam sempre mais: mais lucros; mais privilégios; mais irresponsabilidade social; mais opressão; mais exploração… Ou seja, o PL, ao não reconhecer o vínculo de emprego e afastar os direitos trabalhistas, é muito bom para os seus interesses, mas eles querem mais. Vale, inclusive, perceber que esta parte do PL não é objetada. O que se contraria são as proposições do PL em que se tentam, mesmo de forma bastante tímida, acoplar a algumas fórmulas de cunho social. No entanto, tragicamente, a rejeição a essas vinculações é mais coerente que a sua defesa. Digo tragicamente porque esta situação acaba conferindo à direita, na balança dos argumentos, uma vantagem em termos de razoabilidade. O PL e os argumentos de sua defesa são ruins também por isso. Senão, vejamos. O PL pronuncia que os motoristas são autônomos e ao se estabelecer este pressuposto o que se acolhe são os valores liberais clássicos da liberdade, do individualismo e do empreendedorismo. No entanto, de forma dissimulada, os trata como trabalhadores integrados a uma categoria que se deve mover por espírito de solidariedade e coletivamente, com o gravame de que a organização coletiva preconizada não é aquela que representa o efeito de um movimento espontâneo da categoria e sim uma vinculação imposta de cima para baixo, a partir de estruturas pré-concebidas e que estão atreladas à lógica diversa das relações de emprego. Essa previsão bipolar faz com que a rejeição à vinculação sindical aludida no PL tenha coerência e, isto, aí sim de forma estratégica, mas por culpa do próprio conteúdo do PL, alimenta e reforça a argumentação de direita contra os sindicatos, a sindicalização e a mobilização coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras, já que o artificialismo e uma captura autoritária constituem a base da vinculação desenhada. Além disso, se o PL reafirma aos motoristas que eles são geridos pela autonomia, expressão máxima da livre manifestação da vontade, estes, então, terão boas razões para acreditar que não lhes pode ser imposta contribuição social, valores pré-fixados do custo do trabalho ou mesmo limites de horas de trabalho. A incoerência do PL, ao tratar dessa figura imaginária do “autônomo com direitos”, mas direitos que, na verdade, não representam inclusão social e melhora das condições de vida e de trabalho, no plano do que se tem constitucionalmente assegurado aos trabalhadores e trabalhadoras em geral, sendo, em verdade, limitações à livre manifestação da vontade, acaba conferindo motivos suficientes para que liberais e conservadores invoquem coerência e razoabilidade para extraírem do PL tudo (ainda que seja muito pouco ou quase nada) o que transborda da condição de autonomia. Afinal, ao contrário das políticas institucionais desta esquerda burocratizada, guiadas há muito pela lógica do mal menor ou do circunstancialmente possível, a direita não se contenta com pouco. E cumpre perceber essa trágica diferença de horizontes: esta parcela da esquerda diz que o PL é o máximo a que se pode chegar (e, concretamente, já são vários passos para trás); enquanto a direita, já tendo a seu favor) os passos dados pela esquerda, vislumbra passos a mais, até onde a ganância possa alcançar, mesmo que, para tanto, se destruam vidas e o próprio planeta. Isso, aliás, nos obriga a explicitar o quanto são inviáveis os objetivos da direita. Por outro lado, não nos conduz a acreditar que apenas ser resistência à destruição possa ser o nosso horizonte para um projeto de vida e de socialização. No contexto das linhas de delimitação de horizontes previamente traçadas, da esquerda, já no máximo, e da direita, com campo a ser ampliado, o único resultado a que se pode chegar no processo legislativo, sobretudo se considerada a dita “correlação de forças no Congresso”, é do piora do PL, notadamente no aspecto da ampliação da mesma lógica de autonomia plena para outras categoriais de trabalhadores e trabalhadoras. E o pior de tudo é que tendo em mente a governabilidade, baseada na conciliação de classes, o horizonte do mal menor, o desprezo à realização de análises críticas e o abandono das utopias, o que se anuncia é que poderão vir, pelas mãos do governo e com apoio de partidos de esquerda e de entidades sindicais de trabalhadores e trabalhadoras, outras iniciativas regulatórias com a mesma lógica do combate à CLT. Talvez dessa maneira, quem sabe, o presidente Lula cumpra a sua promessa, feita na campanha, em mais um momento de descuido retórico, de revogar a “reforma” trabalhista, pois, com a aprovação do PL e a reverberação de sua racionalidade neoliberal pela voz das representações sindicais, em concreto, toda legislação trabalhista deixará de existir. Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores). [https://amzn.to/3LLdUnz] A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por ANTONIO RIBEIRO ALMEIDA JR.* Prefácio do livro recém-lançado de Felipe Scalisa de Oliveira sobre as violações de direitos humanos na Faculdade de Medicina da USP O trote universitário ocorre, literalmente, diante dos olhos dos principais pesquisadores do país e tem grande importância para a formação dos universitários. Ele é parte de um “currículo oculto”. Dadas essas condições, ele deveria ser muito estudado, mas o fato é que continua sendo um tema negligenciado. Personalidades acadêmicas de relevo falam dele como se tivessem profundo conhecimento e legítima autoridade sobre o assunto. Formulam apressadamente hipóteses sem se preocupar em testá-las por meio de estudos empíricos. A dura realidade é que poucas pesquisas buscaram descrever o contexto social e cultural desse fenômeno que resulta, com impressionante regularidade, em humilhações, exclusões, feridos e mortos. O trote produz espetáculos de preconceito e barbárie no interior dos campi, como se fosse simples celebração. Mesmo assim, a pesquisa permanece escassa. Os motivos dessa negligência acadêmica, certamente nada casuais ou louváveis, merecem uma atenção especial, pois podem revelar aspectos da cultura universitária que ainda estão na obscuridade. Durante muito tempo, o trote pareceu ser “brincadeira”, “comemoração”. As violências apareciam como casos excepcionais, obras de alguns poucos desajustados e criminosos, e não como resultados, perfeitamente previsíveis e evitáveis, de práticas persistentes e de abusos sistemáticos. Felizmente, esse tempo está chegando ao fim. Nos últimos anos, houve algum avanço nos estudos e nas publicações sobre esses temas. Grande parte do que veio a público ainda tenta encontrar alguma forma de conciliação com o universo do trote e, por isso, carece de maior significado científico. Muitos trabalhos ainda propõem os trotes culturais, ecológicos, solidários, como solução para os problemas, permanecendo imersos na cultura trotista. Mas, ao mesmo tempo, foram realizadas algumas investigações relevantes que ampliaram o entendimento desse assunto e que apontam para a necessidade de abolir essas atividades. Entre esses trabalhos, destacamos os de Antônio Zuin, Silmara Conchão, Marco Akerman e Rosiane Silva. Mais antigas, as obras de Glauco Mattoso e de Paulo Denisar Vasconcelos Fraga também foram decisivas para o esclarecimento daquilo que se passa durante os trotes. Em minha avaliação, este conjunto de autores é responsável pelo que há de melhor na literatura nacional a respeito do tema. Penso poder associar a esses trabalhos os livros e artigos que escrevi individualmente ou em parceria com o Professor Oriowaldo Queda. Pelo fácil acesso, devemos considerar cuidadosamente as importantes investigações que têm sido realizadas em Portugal por autores como Elísio Estanque, Aníbal Farias, João Teixeira Lopes, José Pedro Silva e João Sebastião. Na literatura em inglês, encontramos um conjunto um pouco mais numeroso de obras do que em português. Como ocorre com as produções em nossa língua, são expressivas as deficiências desse material em inglês e temos ainda que considerar, entre outras coisas, as diferenças dos sistemas universitários, das práticas e do significado do trote para cada sociedade. Hank Nuwer, Donna Winslow, Lionel Tiger, Stephen Sweet, Elizabeth Allan, Susan Iverson, são alguns dos autores norte-americanos de maior envergadura. Há uma vastidão de temas a explorar. Os pesquisadores brasileiros poderiam, por exemplo, conhecer melhor as leis implantadas em outros países para combater o trote. Poderíamos aprender muito com as legislações estrangeiras sobre o tema. Existem leis bastante antigas como a francesa, que data de 1903, e várias propostas recentes como tem ocorrido nos EUA. No final de 2015, enquanto esse modesto aprofundamento nas pesquisas estava em curso, foi instaurada a CPI da ALESP para investigar “violações dos Direitos Humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo”. Presidida pelo Deputado Adriano Diogo, durante quatro meses, ela coletou um conjunto abrangente de testemunhos de estudantes, professores e dirigentes de muitas faculdades e universidades paulistas. Ela revelou para o grande público um quadro assustador de abusos, comportamentos aberrantes, torturas e conivência institucional. Apesar de seu reduzido número, as pesquisas foram suficientes para que a CPI pudesse encontrar seu caminho e a hegemonia do discurso trotista foi finalmente colocada em xeque. Se considerarmos seriamente aquilo que a CPI reuniu e os resultados das melhores investigações científicas disponíveis, o trote deveria ser pura e simplesmente erradicado. Não há nada que justifique sua continuidade. Depois das conclusões apresentadas por essa CPI, a luta contra o trote ganhou força. A universidade não tem mais como tergiversar, tornou-se robusta a exigência de uma ruptura pública, inequívoca e definitiva em relação ao trote e aos grupos que o praticam. Por isso, a CPI foi um momento de transfiguração, seus resultados e questionamentos serão lembrados a cada novo incidente, a cada novo escândalo, e a universidade será levada a reconhecer que precisa mudar, tornando-se mais democrática e humana. O livro Trote & Totalitarismo: um novo relato sobre a Banalidade do Mal, de Felipe Scalisa Oliveira inova na investigação do comportamento dos grupos trotistas. Utilizando com habilidade singular as teorias de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, ele conseguiu revelar com exatidão muitas dinâmicas e motivações desses grupos, que compunham uma das mais importantes lacunas no conhecimento sobre o assunto. É próximo o parentesco entre o trote e as práticas dos nazi-fascistas. Por isso, as ideias de Arendt puderam ser aplicadas com tanto sucesso nesta pesquisa. O livro mostra, por exemplo, que as Atléticas têm um papel central nos movimentos trotistas, às custas de suas atividades propriamente esportivas. Antes de tudo, os treinos intensos são para demonstrar adesão ao grupo e não para aprimorar as habilidades corporais e mentais dos estudantes. Características desses movimentos, as competições esportivas são momentos de construção e de expressão máxima de identidades fundadas no ódio e na degradação das escolas adversárias. Homogêneas identidades coletivas construídas contra os outros e não com os outros. As competições são uma exaltação do grupo e da escola por meio de bebedeiras, hostilidades e agressões, barbarismos colocados em prática por universitários que deveriam representar o futuro da razão, do conhecimento e da capacidade para pensar. O motivo de tudo é o movimento, o trote e não o esporte. O grupo funda-se em crenças e atitudes irracionais, mas bastante eficientes para promover sua problemática coesão. Felipe Scalisa Oliveira aponta com perspicácia que o movimento é capaz de gerar um ambiente que impossibilita o livre-pensar. A sociabilidade que faria florescer o pensamento é sufocada. Essa condição é exatamente o contrário daquilo que deveria ser estimulado pela universidade. A investigação resgatou a história da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina da USP, que serviu de inspiração para muitas outras. Felipe Scalisa Oliveira descreve as origens eugenistas dessa organização, suas relações com um sentimento supremacista que se instala desde o início de suas atividades. Uma pretensa superioridade que supostamente daria direitos para agir fora e além da ordem jurídica, da racionalidade e da civilidade. Outra inovação importante é a construção do relato a partir da perspectiva das vítimas que não se submeteram ao movimento trotista, que não se tornaram cúmplices. São as vítimas que sentiram integralmente o horror que a exposição ao trote efetivamente causa. Seus testemunhos, sua organização, sua resistência, aparecem com viva dramaticidade no texto. Por este prisma, tornou-se possível mostrar ainda o mundo paralelo em que vivem os membros do movimento, que constantemente precisam inverter os fatos para poder permanecer na ficção em que se encontram aprisionados e que desesperadamente cultivam. A participação marcante de Felipe Scalisa Oliveira na CPI e sua análise dos testemunhos nela contidos abriram caminho para esta fecunda escolha metodológica.  Acompanhando e fazendo avançar as investigações de Hannah Arendt, o autor traz, para nosso debate atual a respeito do trote, um diálogo entre Santo Agostinho e Nietzsche. Essa intersecção permite vislumbrar a relação do ódio com os movimentos totalitários e com a suspensão da vontade dos indivíduos. A primazia do ódio está na origem da perda da liberdade e é instrumentalizada pelos movimentos totalitários. Banalizado, o mal emerge como resultado de uma alienação, uma ruptura, entre o ato e aquele que age. Percebemos então, com toda a força dos procedimentos filosóficos, que o trote está longe de ser mera brincadeira, apresentando-se como um inimigo ardiloso para quem o desafia ou com ele pensa brincar. Um adversário perigoso para as gestões universitárias que acreditam controlar os movimentos trotistas e, frequentemente, subestimam seus riscos. O movimento trotista pode parecer um aliado político valioso para dirigentes conservadores, mas se constitui sempre como um poder paralelo que pode, eventualmente, capturar a própria instituição. É uma grande satisfação ver um pesquisador fazer uma contribuição tão valiosa para o entendimento desse difícil tema, evitado pelos principais cientistas sociais do país, com tal desenvoltura e lucidez. Isso dentro de rigorosos padrões metodológicos e mostrando uma erudição surpreendente para alguém tão jovem. Esta obra, certamente, estimulará debates, novas pesquisas, auxiliando quem deseja conhecer cientificamente o trote universitário. Para os governantes, políticos, dirigentes da universidade, professores, funcionários e estudantes que desejarem lutar contra o trote, há muito o que refletir e aprender com este excelente trabalho. Penso que o trote causou sofrimentos e importantes perdas para Felipe Scalisa Oliveira que, em diversos momentos, foi hostilizado por membros do movimento trotista da Faculdade de Medicina da USP. Mas, em lugar de meramente sucumbir, revestido de coragem, perseverança e distinta capacidade intelectual, o autor deste livro ousou transformar estas experiências em uma brilhante análise desses movimentos que afligem e desonram a universidade brasileira. *Antonio Ribeiro de Almeida Jr. é professor titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da ESALQ/USP, autor, entre outros livros, de Anatomia do trote universitário (Hucitec). [https://amzn.to/3vxQXz2] Referência Felipe Scalisa de Oliveira. Trote e totalitarismo: um novo relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Editora Alameda, 2024, 432 págs. [https://amzn.to/4cRZiOW] A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por WILLYAN ALVAREZ VIEGAS* Apesar da fragilização da imagem de Gustavo Petro e da difícil governabilidade com o fim da conciliação e a aposta na manutenção do caráter popular e progressista do governo, no mandato de Gustavo Petro se mantém a iniciativa da agenda 1. Um ano e meio após a eleição de Gustavo Petro à presidência da Colômbia, se confirmam tanto a execução do projeto de governo popular apresentado durante a campanha, como os obstáculos prometidos pela oposição às reformas pretendidas pelo governo. Em junho de 2022 Gustavo Petro era eleito pela pequena maioria de 50,44% dos eleitores colombianos. Historicamente na América Latina, as elites liberais e conservadoras frequentemente não reconhecem vitórias eleitorais progressistas por margens pequenas como essa e recorrem à sabotagem e aos golpes brandos ou de força contra governos legitimamente eleitos, como ocorreu recentemente em países vizinhos da região. Desta feita não poderia ser diferente. O primeiro ano de Gustavo Petro no governo foi marcado pelos ataques incessantes das elites tradicionais colombianas através do poder midiático e institucional que têm por objetivo desconstruir a figura de Gustavo Petro, líder popular que permitiu a esquerda governar o país pela primeira vez na história. A política colombiana é caracterizada por um histórico domínio liberal e conservador que impediu a ascensão de líderes progressistas no Estado, em muitos casos através do uso da força. O caso mais emblemático foi o de Eliécer Gaitán, candidato com forte apelo popular que propôs reformas sociais estruturais, assassinado em 1948 para impedir sua eleição ao governo naquele ano. A partir de então as disputas políticas colombianas ficam marcadas pela forte violência e pela partilha do poder entre o partido liberal e o partido conservador, restando à grande parte da esquerda recorrer à luta armada nas décadas seguintes. Gustavo Petro foi um desses militantes. Durante os anos oitenta integrou o M-19, movimento revolucionário que buscava subverter o poder oligárquico colombiano sustentado com forte apoio dos Estados Unidos. A imagem de guerrilheiro foi extremamente explorada pelos opositores do governo e pelas grandes empresas de mídia colombianas. Em contraste, vendia-se durante as eleições a imagem de engenheiro responsável e empreendedor para o candidato direitista Rodolfo Hernández que teve pouco mais de 47% dos votos. A eleição de Gustavo Petro ocorreu ainda como um desdobramento das revoltas populares do ano anterior contra o ex-presidente Iván Duque que ficaram conhecidas como estallido social. O grande movimento que se opôs ao governo autoritário de Iván Duque conseguiu institucionalizar boa parte das suas pautas através da candidatura de Gustavo Petro. Contudo, tal candidatura foi costurada em uma ampla aliança entre os setores da esquerda com componentes de centro e direita formando a coalizão “Pacto Histórico”. A chapa foi composta também pela candidata à vice-presidência Francia Márquez, primeira mulher negra a ocupar o cargo, militante popular e advogada defensora das comunidades pobres e do meio ambiente contra os abusos das empresas mineradoras. A candidatura de Francia Márquez marcou o caráter profundamente popular a que o novo governo se propunha. Apesar de eficaz eleitoralmente em 2022, a frente ampla conformada para a eleição trouxe consigo as contradições que levariam à debilidade do governo no presente. A estratégia de conciliação da campanha de Gustavo Petro que incluiu setores da direita tradicional colombiana no Pacto Histórico mostrou rapidamente suas limitações durante o primeiro ano de mandato. Gustavo Petro optou sem hesitações por preservar o projeto popular de governo que atende aos anseios de suas bases sociais em detrimento de uma governabilidade mais estável através da manutenção das concessões aos aliados momentâneos que compuseram o Pacto Histórico. Dessa forma, Gustavo Petro levou adiante um projeto reformista de vulto que tem por objetivo avançar em amplas conquistas de direitos sociais para as camadas mais pobres do povo colombiano. 2. O primeiro ano do “governo da mudança”, slogan adotado pelo mandato, se concentrou nas propostas de reforma sanitária, trabalhista e previdenciária, principalmente, e nas políticas de pacificação e transição energética. Tais pontos são extremamente sensíveis às elites colombianas temerosas de qualquer democratização de áreas nas quais são historicamente privilegiadas. O que deu origem a uma grande oposição midiática e parlamentar desde os primeiros meses de governo. Gustavo Petro deu o tom inicial de seu governo com a apresentação da reforma tributária que teve rápida aprovação no congresso. Essa estabeleceu já para o ano seguinte a taxação da renda dos mais ricos em até 1,5% e dos bancos e instituições financeiras em 5% dos lucros. Além disso, a reforma determinou a sobretaxação de produtos nocivos à saúde, o que ficou conhecido como impostos saudáveis, e da exploração de carvão e petróleo, objetivando desincentivar o consumo e aumentar a arrecadação. Através da reforma, o governo espera aumentar a arrecadação em 20 bilhões de pesos em 2023 e destinar a maior parte desse orçamento para a política de Paz Total. A sobretaxação da exploração de carvão e petróleo também está inserida na política de transição energética proposta pelo governo. Essa prevê o fim da dependência de combustíveis fósseis em quinze anos com a redução gradual da produção desses dois combustíveis. A política se estrutura em cinco eixos principais: maiores investimentos em energias limpas e descarbonização; a substituição progressiva da demanda de combustíveis fósseis; maior eficiência energética; a revisão e eventual flexibilização da regulação para acelerar a geração de energias limpas; e a reindustrialização da economia colombiana. Para tal foi determinada a proibição da exploração de reservas não-convencionais (fracking) e a não concessão de novas licenças de exploração de reservas convencionais. A empresa Ecopetrol deverá dirigir o processo de transição energética se convertendo em uma empresa de energias limpas e renováveis. Com isso, o governo almeja a substituição da energia de origem fóssil principalmente pela solar e eólica. Essa transição se torna difícil pela grande dependência das exportações de petróleo e de carvão, que tem 95% da sua produção destinada ao mercado externo. A Colômbia possui uma reserva de 2,5 bilhões de barris de petróleo e é o 18º exportador do mundo, tendo 4% de seu PIB em royalties dessa produção, sendo 2,4% destinado aos departamentos e 1,5% para o governo nacional, o que possivelmente vai gerar atritos com as lideranças locais. Gustavo Petro teve também como uma de suas primeiras medidas a demissão de cinquenta e dois oficiais generais das forças armadas e da Polícia Nacional, boa parte ligada a violações de direitos humanos, prática extremamente recorrente nas forças de segurança colombianas. O assassinato de lideranças de movimentos sociais é um fenômeno generalizado no país. Além da repressão ilegal perpetrada pelo Estado contra os movimentos sociais e seus líderes, o cenário das lutas sociais é marcado pela presença de diversos grupos paramilitares ligados ao narcotráfico e à direita colombiana com forte presença no Estado e nos governos locais e nacionais. Essa composição de forças políticas na Colômbia explica em grande parte a relutância dos grupos guerrilheiros em depor as armas e aderir aos acordos de paz com o Estado. Frequentemente os governos nacionais abandonam os acordos, defendendo a retomada da política de enfrentamento bélico que possui forte apelo social nos setores da direita. O governo de Gustavo Petro tem como uma de suas principais propostas a política de Paz Total, através da qual foram retomadas as negociações de paz com as guerrilhas realizadas no governo de Juan Manuel Santos em 2016, cujos acordos foram violados por Iván Duque nos anos seguintes. Como primeiro resultado foi alcançado um cessar-fogo com o Exército de Libertação Nacional (ELN) de seis meses a partir de agosto deste ano e a promessa de retomada de negociações que envolvem o compromisso do governo com diversas questões sociais que compõem as reivindicações do grupo. Esse acordo foi firmado a partir das rodadas de negociação que ocorreram em Havana durante o primeiro semestre de 2023. Para a implantação da política de Paz Total foi criado o Comitê Nacional da Participação com representantes de diversos segmentos como populações dos territórios de conflito, movimentos sociais, sindicatos, empresários e movimentos de vítimas para contribuírem com propostas a serem incorporadas nas negociações dos acordos e na construção da política de Paz Total como um todo. Essa é uma importante ferramenta de diálogo social que potencializa a política de pacificação promovida pelo governo e aumenta as chances de que seja bem-sucedida. 3. Associada à política de Paz Total aparece a nova política em relação às drogas adotada pelo governo. A reversão da política de guerra às drogas, promovida pelos governos desde a década de setenta, foi proposta por Gustavo Petro após cinco décadas de fracassos no combate ao narcotráfico. A guerra às drogas foi um dos principais instrumentos de intervenção dos Estados Unidos na região a partir do governo Richard Nixon em 1971. Os tratados com a Colômbia deram amplos poderes às agências americanas para operarem no território do país sul-americano desde a década de oitenta, possibilitando a intervenção direta e tornando a Colômbia o principal aliado militar dos Estados Unidos na América Latina com a abertura de diversas bases americanas em seu território. Gustavo Petro já no seu discurso de posse apontou para a desconstrução da política de guerra às drogas sinalizando a desarticulação do combate baseado na repressão militar à produção e ao comércio de maconha e cocaína. Em contraposição, o governo passou a encarar o problema principalmente como uma questão de saúde pública e de desenvolvimento no campo. Internacionalmente se posicionou contra a política defendida pelos governos dos Estados Unidos na cúpula do G-20 e nas duas últimas Assembleias Gerais da ONU. Contudo, o projeto de descriminalização e regulamentação do uso e comercialização da cannabis apresentado ao congresso colombiano foi arquivado após chegar à oitava e última rodada de debates no Senado. As mudanças na política de drogas ficam restritas, por enquanto, às iniciativas do governo que não dependem de mudanças legislativas, como a diminuição de operações policiais para o combate ao narcotráfico e a busca pela substituição voluntária dos cultivos. Outro problema associado ao cultivo de ilícitos na Colômbia que está sendo enfrentado pelo governo de Gustavo Petro é a questão agrária. O país possui uma altíssima concentração de terras. 75% das terras produtivas correspondem a pouco mais de 2% dos propriedades e apenas 5% da população detém 87% das terras agricultáveis, segundo o último censo agropecuário do país. Dessa forma, muitos pequenos produtores em áreas isoladas acabam entrando para a cadeia de produção de drogas ilícitas através do cultivo da coca, planta tradicional da região andina, e da maconha. O combate à desigualdade no acesso à terra se torna, portanto, essencial para que os pequenos agricultores não fiquem submetidos ao narcotráfico que controla seus territórios. 4. Objetivando a ampliação do acesso à terra pelos camponeses do interior do país, o governo iniciou um processo de distribuição de títulos fundiários a famílias somando inicialmente 681 mil hectares. O governo vem adquirindo terras improdutivas através da compra em negociação com latifundiários para disponibilização dessas terras para a reforma agrária. Passo importante, porém, ainda muito aquém do necessário para a mudança na estrutura fundiária do país essencial para o combate à fome e à profunda desigualdade que atinge as populações rurais no país. A desigualdade entre as populações rurais e urbanas é um problema que aparece nas diversas propostas de reforma apresentadas pelo governo desde sua posse, como a reforma trabalhista. Essa prevê a formalização do trabalho rural, ainda não incluído na legislação laboral. Além da questão do trabalho rural, a proposta de reforma levada ao Congresso pelo Ministério do Trabalho, reúne noventa e dois artigos que buscam ampliar os diretos trabalhistas do povo colombiano. Estes se concentram na formalização e estabilidade do emprego, no estabelecimento das jornadas diurnas e noturnas, em pagamentos adicionais por domingos e feriados, na diminuição da terceirização e dos contratos temporários, na formalização dos trabalhadores de plataformas digitais, no aumento da licença paternidade e na igualdade salarial de gênero. A reforma sofre forte oposição dos setores liberais e conservadores no Congresso apoiado por entidades patronais e grupos representantes do agronegócio. Essa é a segunda tentativa de reforma trabalhista apresentada pelo governo, já que a primeira foi derrotada no período legislativo anterior no primeiro semestre. A reforma que possuiu maior avanço até o momento foi a sanitária. Apesar de ainda se encontrar em tramite, 82 dos 143 artigos da reforma já foram aprovados e esta segue avançando no Congresso. A reforma sanitária se concentra na ampliação do acesso aos serviços de saúde para uma enorme parcela da população que se encontra aquém da atenção básica. Para tal, prevê o fortalecimento do Sistema Geral de Saúde da Previdência Social para torná-lo universal com foco na prevenção, através de uma rede de Centros de Atenção Primária de Saúde (CAPS) em todo o território com atendimento ambulatorial, emergência, hospitalização, reabilitação, exames laboratoriais e programas de saúde pública. A reforma inclui a diminuição da desigualdade do acesso aos serviços de saúde com o estabelecimento de um CAPS para cada 25 mil habitantes; a criação de um sistema de prevenção de enfermidades, a extinção das Entidades Promotoras de Saúde (empresas que intermediam a prestação de serviços aos cidadãos); a qualificação e acompanhamento de órgãos internacionais, como a OMS e OPAS; a padronização dos valores dos serviços privados; e melhoras nas condições laborais para os profissionais de saúde como qualificação, aumento salarial e autonomia médica. Outro pilar da seguridade social, a previdência também é objeto de reforma pelo governo Petro. A reforma pensional objetiva principalmente a ampliação da cobertura do sistema que hoje mantém uma enorme parcela dos idosos sem acesso à aposentadoria. Através da reforma, todos os contribuintes passariam para o sistema público Colpensiones que seria mantido pelo orçamento público e pela contribuição empresarial e dos próprios trabalhadores. A reforma se estrutura em três pilares: o contributivo, descrito acima, o semicontributivo, para aqueles que chegaram aos 65 anos sem cumprir os requisitos da aposentadoria e o pilar da poupança voluntária que permite ao trabalhador a poupança nos sistemas público ou privado. A reforma segue em tramite no Congresso caminhando para a sua segunda rodada de debates. O conjunto de reformas levadas ao Congresso obviamente trouxe um grande desgaste para o governo durante esse um ano e meio de mandato. As oligarquias rurais, as elites industriais e do setor de serviços, o capital financeiro, comandantes das forças armadas e polícias, lideranças religiosas conservadoras e os principais conglomerados midiáticos desencadearam uma forte oposição às reformas e ao governo de Petro. Iniciaram uma campanha constante de desconstrução de sua imagem tentando repetidamente ligá-lo a escândalos de corrupção. Tática extremamente recorrente contra as lideranças populares na América Latina. 5. Dois episódios em especial trouxeram enorme desgaste ao governo. O caso envolvendo possíveis gravações do embaixador colombiano na Venezuela e o outro sobre o filho de Gustavo Petro, Nicolás, que supostamente teria recebido financiamento ilegal de campanha para o pai. Esses dois episódios, fortemente explorados pelas empresas de mídia de oposição, causaram uma significativa redução do apoio popular ao governo. Esse abalo na imagem do governo e a forte oposição das lideranças locais se refletiu na derrota dos candidatos governistas nas eleições regionais de outubro de 2023. Dos 32 departamentos colombianos, apenas nove foram ganhos por candidatos que se mantêm no Pacto Histórico. E nas 1.100 prefeituras, apenas 21 candidatos apoiados pelo governo foram eleitos. Esse resultado reflete a enorme dificuldade do governo após o racha da coalizão que o levou à eleição no ano passado. O fim da coalizão se deu com a reforma ministerial promovida pelo governo em abril, após a resistência à aprovação da reforma sanitária, que incluiu a substituição da própria ministra da saúde e de outros seis ministros. Essa reforma foi o ponto final na adesão de figuras liberais e conservadoras ao governo. Após esse episódio, Gustavo Petro convocou grandes manifestações de massa em primeiro de maio para aprovação das reformas colocando o apoio popular como fiel da balança, estratégia eficaz até o revés envolvendo seu filho nos últimos meses. Apesar da fragilização da imagem de Gustavo Petro e da difícil governabilidade com o fim da conciliação e a aposta na manutenção do caráter popular e progressista do governo, no mandato de Gustavo Petro se mantém a iniciativa da agenda. O crescimento do PIB em torno de 1% em variação anual e uma queda na inflação que ainda se mantém em um patamar alto de 10,48% ao ano reforçam os desafios do combate à desigualdade extrema da sociedade colombiana através da aprovação das reformas promovidas pelo governo, da transição energética planejada, da política de pacificação conjugada ao combate à fome e a promoção do acesso à terra e a neutralização dos ataques incessantes das elites econômicas, midiáticas e políticas. Willyan Alvarez Viegas é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicado originalmente em Recortes da conjuntura, vol. I, no. 1. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por GERSON ALMEIDA* Quem de nós homologaria um acordo deste jeito? A pergunta do corregedor ecoou no plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em meio à leitura feita pelo juiz Luiz Felipe Salomão do resultado de seis meses de trabalho da corregedoria junto à 13ª Vara Federal de Curitiba, comandada por Daniela Hartz, a juíza que substituiu Sérgio Moro, quando esse renunciou ao cargo de juiz para assumir o Ministério da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. O acordo investigado “foi construído de forma sigilosa e ilegal”, sendo que o ex-juiz, Sérgio Moro, a juíza Daniela Hartz e o ex-procurador da república, Deltan Dallagnol, então coordenador da Lava-Jato, teriam “atuado de forma proativa e assumiram de forma indevida o papel de representantes do Estado brasileiro junto à Petrobras e aos norte-americanos”, conforme relatório da Polícia Federal divulgado pelo site Poder360, um dos documentos que embasa a decisão do corregedor do CNJ. A decisão do corregedor está sustentada em mais de mil páginas de documentos e provas obtidos ao longo da sua inspeção, o que lhe permitiu afirmar categoricamente “que tudo era feito com sigilo absoluto, de grau 3, sem nenhuma transparência”; sendo que a análise das datas de reuniões e visitas de procuradores americanos ao Brasil confirma um minucioso preparo para “a realização deste desvio multibilionário”. Recursos que foram manipulados de forma consciente “à margem da legalidade, de forma sigilosa e sem moralidade administrativa” para burlar os verdadeiros representantes legais do país e instituir um órgão de “primeira instância como sendo o Brasil”. Depois de esmiuçar as manobras realizadas até chegar à homologação do acordo pela juíza Daniela Hartz, novamente o corregedor pausa a leitura da sua decisão e lança outra pergunta aos seus pares: “e o dinheiro que foi pago aos EUA, também foi para alguma instituição privada, ou foi para os cofres do Estado americano? Uma pergunta que, ao mesmo tempo, é uma resposta que demonstra de forma irrefutável o conluio que estava em execução, que só não foi consumado inteiramente em razão da reação do STF. O que impediu que os cerca de cinco bilhões fossem desviados do Estado e fossem destinados para a fundação privada que os investigados estavam determinados a criar. Com a fundação, eles queriam assegurar um férreo controle privado sobre esses volumosos recursos do Estado brasileiro, o que só seria possível por meio da corrupção da legalidade e da moralidade, obrigação de todos os agentes públicos. O voto do corregedor é tão rico em detalhes e tão farto em provas, que tornou o argumento da defesa de que o conluio não passou de “uma infeliz iniciativa”, numa pífia tentativa de infantilizar a juíza Gabriela e seus asseclas. Ao contrário, o corregedor demonstrou que houve uma ação consciente com vistas à apropriação de recursos públicos para uma instituição privada, pois “se combinava com o americano para se aplicar a multa lá fora para (o dinheiro) voltar e ser destinado à fundação” e a forma de viabilizar esse desvio foi o acordo homologado pela juíza Gabriela Hartz. Depois deste mergulho na “gestão absolutamente caótica” da 13ª Vara Federal de Curitiba, baseado em farta documentação comprobatória – inclusive depoimento da própria Gabriele Hartz que declarou saber não ser de sua competência – o corregedor estava plenamente preparado para afirmar que “não tenho a menor dúvida da participação da juíza no desvio do dinheiro público para a fundação desejada”. O voto foi tão vigoroso que o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ, teve que alterar o procedimento usual e votou imediatamente depois para tentar persuadir os pares e abriu dissidência ao voto do corregedor e manifestou posição contrária a todos os afastamentos, sem entrar no mérito das acusações e ressaltando o seu não conhecimento do conjunto do relatório feito pela correição do CNJ. Os argumentos de Luís Roberto Barroso em relação a Gabriela Hartz foram a falta de urgência e o fato dela não estar mais na 13ª Vara, além de ser contrário à decisões monocráticas para esse tipo de caso. Não faltou outra pitada de infantilização da atuação da juíza ao afirmar que “essa moça não tinha nenhuma mácula na carreira pra ser afastada sumariamente”, como se fosse a vida pregressa e não um caso concreto que envolve bilhões em dinheiro e uma relação com país estrangeiro à margem de lei que estivesse em análise. Mesmo que a manifestação de Luís Roberto Barroso tenha sido enfática ao ponto de caracterizar o afastamento dos magistrados de “medida foi ilegítima e arbitrária” e tenha defendido a revogação de todas, a votação no plenário lhe deu uma vantagem mínima de 8 x 7 contra a manutenção do afastamento de Gabriela Hardt e Danilo Pereira Júnior; sendo que o afastamento dos desembargadores Thompson Flores e Loraci Flores (TRF-4) foi mantido com elástica maioria de 9 x 5, em favor da posição do corregedor. Quanto a abertura de Processo Administrativo contra todos, apesar de Barroso ter pedido vistas, alguns votos favoráveis foram antecipados e a maioria construída pelo afastamento dos desembargadores do TRF-4 sugere que dificilmente deixarão de ser submetidos ao processo administrativo, durante o qual o trabalho da corregedoria deverá se impor. Em resumo, a decisão do CNJ é histórica e representa que, aos poucos, algumas das mais importantes instituições do sistema de justiça brasileiro estão retomando um funcionamento marcado pelo devido processo legal e decididas a conter os arroubos autoritários que tomaram conta da Lava-Jato e de importantes setores do judiciário brasileiro, que ainda disputam e são fortes, mas não detém mais o domínio sobre a agenda e a opinião pública que tinham outrora. *Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre, foi secretário nacional de articulação social no governo Lula 2. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por CARLA TEIXEIRA* A decisão do de tornar ilícito o porte de qualquer quantidade de droga é negacionismo científico, racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com os problemas reais da sociedade O Senado Federal aprovou em dois turnos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), submetida pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que torna crime a posse de qualquer quantidade de substância ilícita. Na prática é uma resposta direta à decisão do Supremo Tribunal Federal que julga, desde 2015, a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas, buscando critérios para diferenciar usuários de traficantes. A proibição das drogas, especificamente da cannabis – vinculada por vários estudos históricos e antropológicos aos pretos escravizados do período colonial e imperial, e utilizada nos hospitais de alienados no início da República até que fosse proibida – é mais um expediente do racismo institucional brasileiro. Proibir e criminalizar o porte de substâncias ilícitas amplamente consumidas abre caminho para que sejam utilizadas como moeda em todo tipo de crime, da organização de milícias à invasão de terras demarcadas. Nessa direção, o Estado se converte num agente ativo para prender, matar e construir organizações criminosas essencialmente compostas por jovens negros e periféricos. Estes, sem acesso à educação e oportunidades de emprego digno, tornam-se presas fáceis das organizações criminosas que a cada dia se entranham com mais eficiência nas instituições do Estado, a exemplo do que se passa atualmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. De acordo com pesquisa de 2023 realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 68% dos réus por tráfico são negros; 72% têm menos de 30 anos e 67% não concluíram o ensino básico. Em apenas 13% dos casos há envolvimento anterior com organizações criminosas. Ou seja, é na prisão superlotada que esses quadros vulneráveis são mobilizados pelos grupos criminosos. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, contando quase um milhão de pessoas. Além do custo humano, há as expensas econômicas. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) revelou que em 2017 o Rio de Janeiro gastou quase R$ 1 bilhão na guerra às drogas, enquanto São Paulo desperdiçou R$ 4,2 bilhões. A aprovação da PEC de Rodrigo Pacheco, aliada à aprovação do projeto que extingue a possibilidade de saídas temporárias dos presídios – parcialmente vetado pelo presidente Lula por ferir os princípios da dignidade humana – aponta para um futuro temeroso de superencarceramento e prováveis rebeliões, com o crescimento das organizações criminosas e das milícias. Tais aspectos contribuem para o fortalecimento dos grupos da extrema direita que, sedutores com suas soluções fáceis para problemas difíceis, apenas têm a ganhar com uma revolta carcerária a nível nacional, uma vez explícita – mas não enfrentadas – as ligações das milícias e das organizações criminosas com quadros parlamentares e da alta burocracia do funcionalismo público. Como apontou Muniz Sodré em seu livro O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional, o racismo no Brasil é institucional e intersubjetivo. A PEC de Rodrigo Pacheco é apenas mais uma manifestação disso: negacionismo científico, racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com os problemas reais da sociedade. Essas e outras medidas evidenciam que na democracia do Brasil atual o parlamento é apenas uma Casa para lamentar. *Carla Teixeira é doutoranda em história na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por KATIA SANTOS* Homenagem ao lógico e professor da USP, recém-falecido As realizações de Newton da Costa nas áreas da Filosofia, da Matemática e da Lógica tornam supérflua qualquer apresentação minha dos seus méritos. Ele já está de fato consagrado dentro e fora do Brasil, e há inúmeros trabalhos dele e de comentadores à disposição de todos os que quiserem conhecer sua obra e pensamento. Existe, inclusive, um documentário, Espírito de contradição, dirigido por Fernando Severo, onde se pode ver e ouvir o professor falar por si mesmo. No entanto, pela ocasião de sua morte recente, considero importante ressaltar, em poucas palavras, alguns aspectos de sua pessoa que somente aqueles que o conheceram mais de perto saberão. Faço isso, porque a grandeza de seu espírito também se manifesta no modo como se relacionou com inúmeros pesquisadores, alunos e professores. Dentre os muitos e muitos com os quais ele travou contato teórico, estive também eu. Embora não seja afeita a narrativas autobiográficas, vejo como útil falar de alguns aspectos do meu contato com ele. Conheci o professor Newton da Costa no ano de 2015, quando realizava minha pesquisa de doutorado na FFLCH-USP, sobre uma antinomia presente nos fundamentos do pensamento de Arthur Schopenhauer. Ao refletir sobre essa questão, formei a hipótese de que ela poderia ser abordada de uma forma diferente do modo como até então tinha sido, se a lógica paraconsistente, da qual Newton da Costa foi o principal fundador, pudesse ser colocada como sua lógica de base. Sem muita certeza sobre essa possibilidade, entrei em contato com ele, para saber o que achava. Para minha grata surpresa, o professor foi receptivo à minha ideia e me convidou para conversar pessoalmente com ele sobre o assunto. Fiz isso, fui até à sua casa em Florianópolis, e conversamos sobre a questão da filosofia schopenhaueriana que eu estudava e sobre a lógica paraconsistente. Na verdade, eu não sabia à época, mas essas sempre foram características marcantes do professor Newton da Costa, a saber, a abertura de espírito, a curiosidade e o interesse genuíno em problemas filosóficos variados. A questão que eu estudava era desconhecida para ele, porque faz parte de uma temática à qual ele nunca havia se dedicado e que, a princípio, parecia estar completamente fora das suas preocupações lógicas e matemáticas. No entanto, Newton da Costa logo compreendeu as relações que eu fazia entre metafísica, teoria do conhecimento e lógica e, inclusive, apontou a lógica paraclássica como sendo, dentro do campo das lógicas paraconsistentes, talvez a que mais se adequasse à antinomia que eu estudava. Muitos schopenhauerianos e também muitos lógicos não mostraram receptividade ou mesmo compreensão semelhantes: os primeiros, por acharem que o pensamento de Arthur Schopenhauer não tratava de lógica, os segundos, por julgarem que a lógica não se liga a outras partes da filosofia. Houve reações antipáticas e até mesmo furiosas à minha pesquisa. Mas nunca houve hostilidade da parte de Newton da Costa, embora o ambiente filosófico no Brasil seja repleto de descortesia, rivalidade e agressividade entre egos muito inflados. Ele sempre soube lidar com alunos, professores, colegas e colaboradores com interesses muito diversos sem impor suas convicções, sem invalidar as pesquisas dos outros, colaborando em tudo o que estava ao seu alcance. Foi assim que ele sempre lidou comigo, desde que conversei com ele pela primeira vez. Fui em mais uma oportunidade a Florianópolis, quando finalizei meu trabalho de doutorado, para entregar uma cópia a ele, na UFSC, e desde então mantivemos contato frequente por mensagem. Embora já com idade avançada, Newton da Costa nunca deixou de pesquisar, de escrever, de se interessar por filosofia, ainda que se tratasse de algo diferente para ele. Foi assim que dialogamos bastante sobre o filósofo francês Charles Renouvier, sobre o qual ambos passamos a refletir e, inclusive, a produzir juntos. Essa era outra característica de Newton da Costa que vale a pena ressaltar, a saber, sua disposição para adentrar searas novas, para pensar e se aprofundar em temas fora da sua especialidade. Considero essa característica algo notável, porque o mais frequente é que os pesquisadores esqueçam tudo o mais no mundo e olhem única e exclusivamente para a pesquisa iniciada no mestrado ou doutorado, ficando cegos para outras temáticas. Quando isso ocorre é ruim, porque estreita a visão de mundo do indivíduo e o faz acreditar que tudo gira em torno das suas escolhas. A visão de mundo de Newton da Costa, porém, jamais foi estreita. Dentre suas principais preocupações teóricas, dizia ele, estava o problema do conhecimento em geral, e do conhecimento científico em especial. A lógica e a matemática são de fato as bases fundamentais da ciência e de todo conhecimento, e foi justamente nessas áreas que o professor atuou deixando verdadeiras obras-primas, como Sistemas formais inconsistentes e Ensaio sobre os fundamentos da lógica. Qualquer pessoa que se dedique a entender o pensamento de Newton da Costa verá a grandiosidade do que ele realizou, sobretudo quando se reflete sobre o que foi e tem sido a grande problemática da contradição na história da filosofia: o interlocutor aqui é nada menos que Aristóteles. Apesar disso, de tão grandes realizações, não se notava arrogância no seu trato com ninguém, nem ganas de superioridade. Pelo contrário, ele era acolhedor com as pessoas e perseverante na pesquisa, ciente de que a busca do conhecimento é infindável e não se faz sem colaboração. Fará muita falta. *Katia Santos, professora e pesquisadora, é doutora em filosofia pela USP. Nota Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8gKKabtLA_U. 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