Autob/i/ografia

Vooria Ária, Perecível, 2016
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Por HUGO ALMEIDA*

Considerações sobre o livro de Waldemar José Solha

1.

Ernest Hemingway (1899-1961) escreveu há 90 anos numa resenha do primeiro romance de John O’Hara (1905-1970): “Se você quer ler um livro de um homem que sabe exatamente sobre o que está escrevendo e o escreveu maravilhosamente bem, leia Encontro em Samarra”. Quase um século depois, pode-se dizer isso também sobre a autobiografia de Waldemar José Solha (Sorocaba, 1941; vive em João Pessoa).

Sob vários aspectos, W. J. Solha, como assina sua obra, é um fenômeno. Com a publicação da Autob/i/ografia, o leitor brasileiro agora pode saber o quão ricas e fascinantes são a vida e a obra desse artista de múltiplos talentos e prêmios. Poeta, romancista, contista, dramaturgo, letrista, artista plástico, pintor e ator. Ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante do Festival de Cinema de Porto Alegre, em 2013, pela atuação em O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho.

Como escritor, conquistou diversos prêmios, entre eles o Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores, em 1974, com sua estreia, o romance Israel Rêmora ou o sacrifício das fêmeas (infelizmente ainda não reeditado); o João Cabral de Melo Neto, da UBE-Rio, em 2005, com Trigal com corvos, seu primeiro poema longo, fruto de dez anos de trabalho; o Instituto Nacional do Livro (INL), em 1988, com o romance A batalha de Oliveiros, e a Bolsa de Incentivo à Criação Literária da Funarte, em 2007, para escrever Relato de Prócula, depois laureado com o Prêmio Graciliano Ramos. O monumental História Universal da Angústia, contos, foi finalista do Jabuti em 2006. Solha é um fenômeno que precisa ser mais divulgado e conhecido.

Como tudo que ele faz, sua autobiografia foge ao tradicional. Para começar, não segue a ordem cronológica. Nada de nascimento, infância, juventude, maturidade e velhice nessa ordem. Nada de filtros. Cada relato como que se constitui um pequeno conto, mas de fatos, sem invenção, floreio nem autopiedade. Artista incansável, culto que só (na boa expressão popular do Nordeste), dotado de uma rede neural privilegiada, Solha tem uma memória extraordinária.

Ele transita com segurança por episódios da meninice no interior paulista, acontecimentos marcantes da mudança para Pombal, na Paraíba, aos 21 anos, aprovado em concurso do Banco do Brasil, o início da carreira de escritor e de pintor, o desenvolvimento de suas habilidades artísticas, narra episódios alegres e divertidos, sim, mas também dolorosos, como a perda do filho, de câncer, aos 50 anos. Uma dor viva, aguda, de lanhar o corpo e a alma. Solidário, generoso, sempre leu e incentivou novos escritores, da década de 1970 à de 1990 por carta, depois por e-mail; e é rápido nas respostas. Sua vasta obra inclui um volume que expressa solidariedade já no título: Sobre 50 livros (brasileiros/contemporâneos) que eu gostaria de ter assinado (Ideia, 2012).

2.

De tão numerosas que são, fica difícil, ou mesmo impossível, destacar passagens capitais da autobiografia. Todas são. Qualquer seleção será parcial, ainda mais na limitação de uma resenha. Há meses convivo com o desafio que agora enfrento. Portanto, o que vou citar aqui é apenas uma pequena fração do que o escritor narra, desde cenas familiares, professionais, políticas (várias durante a ditadura militar), artísticas, como improvisos em filmes, bastidores do mundo editorial e do cinematográfico, a edição de livros, a pintura de quadros, especialmente o painel em homenagem a Shakespeare. Em tudo está a marca de sua coerência e integridade humana e intelectual.

Leitor voraz, leu quatro vezes o volumoso Ulisses de Joyce e o também imenso Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Perdeu a conta de quantas vezes releu Hamlet, o Novo Testamento, o Êxodo e o Gênesis, os Salmos e o Eclesiastes, a obra de Augusto dos Anjos e do poeta e amigo Sérgio de Castro Pinto. Passou incontáveis horas em cinemas vendo e revendo filmes como Deus e o diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha, …E o vento levou, de Victor Fleming, e “todos aqueles filmes de Bergman e Woody Allen, Resnais, Godard e Truffaut, Fellini, Rossellini, Visconti, Bertolucci e Antonioni”.

No trecho de abertura da autobiografia, W. J. Solha conta que acabou se tornando escritor graças à insistência de um colega do banco. Sua estreia na literatura, um conto, foi publicada em João Pessoa por um professor do Liceu “numa antologia mimeografada, entre textos de Bandeira e Drummond”. Solha escreve: “Nunca mais tive sossego”. Décadas depois, o mesmo amigo e também escritor, José Bezerra Filho, que considerou aquele primeiro conto “arretado” e o enviou ao professor, sofreu um aneurisma e seria operado, com 10% de chances de sobrevivência. Solha pensou em fazer o “retrato para a posteridade” do amigo que, de cabeça raspada, sorria na cama do hospital. A cirurgia foi um sucesso tão grande que Bezerra se tornou ainda mais talentoso, passou a cantar ópera e a jogar futebol.

W. J. Solha trabalhava num banco privado em Sorocaba quando passou no concurso do Banco do Brasil. O pai tentou demovê-lo da ideia de assumir o novo emprego no Nordeste, já que o banco em sua cidade oferecia salário igual. O filho argumentou que no banco estatal teria vantagens, como progressão na carreira, reajuste semestral, financiamento da casa própria. Então, o pai apresentou um forte argumento: “Sua mãe anda chorando muito”. Solha foi comunicar à mãe sua decisão: “Desisti do Banco do Brasil”. Então ouviu dela os mesmos argumentos que ele havia apresentado ao pai. Quando o filho contou que o pai disse que ela andava chorando por causa da iminente partida dele, ouviu isto: “Eu?!!! Quem tá chorando é ele! Vá cuidar da tua vida, rapaz!”.

Muita coisa na vida de W. J. Solha aconteceu de estalo. Alguns exemplos: prendeu a nadar num momento de sufoco para não se afogar, dirigiu pela primeira vez sem nunca ter feito uma aula sequer de autoescola, tocou piano sem ter estudado (a cena – belíssima e singela – desse episódio num colégio de freiras foi aproveitada no romance Israel Rêmora e transcrita na autobiografia). A filha, Andréia, fotógrafa de enorme talento (https://www.flickr.com/photos/acsolha/), parece ter seguido os passos do pai: “Uma anotação minha, em 11.10.68: Andréia, hoje, apareceu andando, sem nunca ter engatinhado: foi direto!”.

Outra passagem sublime é a alegria da pequinês Lady ao voltar para casa depois de um mês de férias com a família: “Mal abrimos as portas do carro e o então portãozinho de nossa casa, Lady saltou para a rampa, cruzou o jardim na disparada, sumiu no corredor que havia do lado direito da casa, deu a volta toda, nela, na mesma velocidade, reaparecendo de imediato no corredor do outro lado, alucinada, eufórica, eu e Ione (Dmitri e Andréia ainda crianças), todos gargalhando emocionadíssimos com aquele transbordamento da sua e nossa alegria”.

Na infância, ele ouvia que o sobrenome Solha vinha de ciganos espanhóis. Ninguém na família gostava daquele nome “no registro, nome de um peixe horroroso, cujo nome deriva do latim ‘solea’ – ‘sandália’ – pois a criatura tinha o aspecto de uma sola. Minha mãe, um dia, nos gozou: – Queriam sobrenome como o da família Gambacorta, uma das mais ricas daqui de Sorocaba? Sabem o que significa? Perna curta!”.

3.

W. J. Solha relembra os prêmios que conquistou, mas também passagens de insucesso na carreira de escritor e artista (“Algumas porradas à la Fernando Pessoa”). E momentos curiosos. Um: afugentou ladrões blefando aos gritos que estava armado e iria atirar. Outro: a reação de um fotógrafo convidado por ele para fotografá-lo para a edição do romance A verdadeira estória de Jesus, ao saber de que tratava o livro. (O autor não acredita na existência de Jesus Cristo. Argumenta que Jesus Cristo foi invenção dos romanos.)

O fotógrafo deixou um bilhete no lugar do segundo encontro marcado com W. J. Solha (no primeiro, a máquina apresentou um repentino defeito): “Não posso colaborar com uma obra contra minhas convicções”. Mas o romancista não é ateu: “Não. O que não acredito é no deus tribal dos judeus”. Autor do “iconoclasta” A verdadeira estória de Jesus, W. J. Solha relata episódios de cura a distância de pessoas em estado crítico, embora nunca tenha sido espírita. Esses casos estão também no seu romance Relato de Prócula.

Na única vez em que viu Lula pessoalmente, em 1989, W. J. Solha conheceu “o célebre fenômeno do carisma”. Ele integrava a diretoria do Sindicato dos Bancários da Paraíba e havia voltado de um encontro nacional da CUT em São Paulo que discutiu a viabilidade de uma greve geral. Ao comunicar à plateia de bancários no sindicato que a decisão da entidade foi “de não fazer a paralisação nacional”, W. J. Solha foi vaiado e chamado de pelego, “no exato momento em que – em plena campanha para a Presidência da República (em que seria derrotado por Collor) – entrava ali o Luiz Inácio Lula da Silva (que eu jamais vira pessoalmente, nem veria depois). Foi um alvoroço. […] Chamado à mesa, Lula chegou ao meu lado, pegou o microfone, foi direto: – Cumpanheiros [sic]: não existe, realmente, clima para a greve geral”. W. J. Solha arremata na autobiografia: “E todo mundo se calou. Porque o fenômeno [do carisma] existe. Embora eu continue sem partido”.

Repito: esses são apenas alguns dos incontáveis episódios notáveis da Autob/i/ografia de W. J. Solha. O ideal é ir ao livro e conhecer melhor esse grande artista brasileiro e seu trabalho. Como escreveu o editor Linaldo Guedes na apresentação da obra: “Um livro para celebrar o amor de seu autor pela arte e a cultura. Foi isso que o moveu nesses 80 anos. E continua movendo”. De fato, depois da publicação da autobiografia, o “SuperSolha”, como o chamou certa vez o poeta e tradutor Ivo Barroso (1929-2021), lançou seu sétimo poema longo, Preciso de um poema novo (Arribaçã, 2024). Não demora, certamente outro virá.

*Hugo Almeida, jornalista e escritor, é doutor em literatura brasileira pela USP. Autor, entre outros livros, do romance Vale das ameixas (Sinete).

Referência


W. J. Solha. Autob/i/ografia. João Pessoa, Arribaçã Editora, 2023, 346 págs. [https://amzn.to/3FffMEJ]


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