Bach e Walter Lourenção

Reuben Kadish, Sem título, 1947
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Os 300 anos de Bach em Leipzig e os 95 anos de Walter Lourenção na Rádio Cultura, revelam como ambos enfrentaram a condição servil do músico: Bach na “libré de lacaio” que humilhava artistas até o século XIX, Lourenção na liquidação de seu programa pela emissora

Johann Sebastian Bach 300

A cidade de Leipzig na Alemanha decidiu festejar à altura seu mais ilustre filho: Johann Sebastian Bach. Isto é, “filho” é modo de dizer, já que Johann Sebastian Bach não nasceu lá, e sim em Eisenach, na Turíngia. Mas em Leipzig, foco cultural e um dos mais prósperos centros germânicos, passaria a última e mais frutífera parte de sua vida. Ali o Kapellmeister se tornou famoso e Kantor da Igreja de S. Thomas.

E nessa igreja pode-se visitar seu túmulo. Para escolher uma data redonda, resolveram comemorar os 300 anos da chegada e instalação de Johann Sebastian Bach na cidade. E fim de suas peregrinações, porque passou metade da vida transferindo-se com sua numerosa prole de um posto para outro, ao léu dos mecenas e dos empregos que lhe ofereciam.

Ante sua maravilhosa obra, abre-se a discussão: é ele o maior compositor barroco ou simplesmente o maior compositor que já houve.? Suas fugas, sua arte do contraponto e da polifonia, tudo parece inconteste. Recebeu até influência da música italiana e da francesa, cujas partituras ele copiava e colecionava: por isso a música que produziu é mais brilhante em seus efeitos e admite tons operísticos.

Só não compôs óperas. As Paixões e as Miasas cantadas são o que mais se aproxima da ópera, e foram muitas vezes criticadas a seu tempo por trazerem inovações líricas pouco pias. Mas atenção, Johann Sebastian Bach era profundamente religioso e sua obra é de música sacra, de elevação mística.

Hoje Johann Sebastian Bach é uma figura venerável, graças à iconografia que o retrata com sua peruca empoada e cacheada, calções que descem até o joelho e meias brancas daí para baixo, completados pela casaca de seda bordada. Mas isso era a libré de lacaio que ele usaria a vida toda, e muitos músicos ilustres confiaram a papeis íntimos a humilhação que sentiam.

Herança do feudalismo, os músicos eram considerados criados, de nível social inferior, agregados à corte de um nobre para distrai-lo e enlevar seus convivas. E isso até o alvorecer do século XIX. Só bem depois de Bach os músicos seriam dispensados da obrigação, e Beethoven já não seria submetido ao uniforme. A democratização trazida pela Revolução Francesa acabaria com esses costumes vexatórios. O Romantismo, com sua promoção do indivíduo e sobretudo do artista, poria uma pá de cal nessas coisas, mais cedo ou mais tarde.

Johann Sebastian Bach era de família protestante luterana devota. A cultura musical luterana era forte nos pequenos ducados e principados alemães, misturada à prática religiosa. A fé luterana predomina até hoje na Alemanha e nos países nórdicos, todos adeptos do credo reformado, a partir da Reforma de Lutero.

Maior família musical da história, os Bach dominaram a cena durante perto de três séculos e forneceram ao todo cerca de 200 músicos. Johann Sebastian era filho e neto de músicos, bem como pai de vários profissionais. Acredita-se que seja o caso mais notório de estoque genético musical, inigualado por qualquer outro. Há quem veja nos Brueghel da pintura outro caso, mas não chegam nem perto em número de artistas.

A celebração dos 300 anos procedeu a um concerto que começou à luz do dia, como se faz todo verão Europa afora, e acabou com noite fechada, tocando exclusivamente Bach, na praça central de Leipzig, onde se ergue o belo Hôtel-de-Ville de época.

O concerto foi comandado por Lang Lang e orquestra, com alguns números de canto entremeados. Como o piano ainda não havia sido inventado ao tempo de Bach, as peças originais são para cravo e órgão, tendo Lang Lang se pautado por arranjos para piano. O que ele tocou? Algumas das Variações Goldberg, famosas pelas duas gravações do gênio do teclado Glenn Gould, que as registrou com um intervalo de um quarto de século. Quando for comprar preste atenção, se é a de 1956 ou a de 1981, um ano antes da morte do artista. De preferência, escolha uma gravação que contenha as duas.

Lang Lang, em repertório pouco imaginoso, tocou ainda as mais repisadas das peças de Johann Sebastian Bach, como o Largo, a Ária Para a Quarta Corda e Jesus Alegria dos Desejos Humanos. Esta última foi entusiasticamente cantada por toda a plateia, que recebeu um folheto com a letra – e é claro que todo alemão sabe cantar uma melodia tão popular … Não pude deixar de notar que, por um milagre de civilidade, nem um só celular foi iluminado, sequer brandido.

Os 95 anos de Walter Lourenção

A Rádio Cultura vem de liquidar o programa “Teatro de Ópera”, em que nosso querido maestro pontificou por tantos anos. E o substituiu por outro, de alcance bem mais limitado. No dia 17 de novembro passado, a rádio prestou-lhe homenagem com programa composto por depoimentos de outros profissionais, entremeados de trechos de música, enquanto o próprio maestro expunha passagens de sua biografia.

Personalidade incontornável da cena erudita em São Paulo, o maestro consagrou-se a viver música, divulgar música, ajudar músicos, formar músicos, formar-se a si mesmo. E isso desde tenra idade, quando seu avô napolitano o levava para ouvir a banda na praça de Jundiaí, explicando-lhe a voz dos instrumentos, ao andamento dos dobrados e polcas.

Depois de múltiplos estudos, especialmente de piano, e da formação em regência sob a batuta do maestro italiano Edoardo de Guarnieri, estrearia graças a Eleazar de Carvalho, a quem substituiu num concerto. Daí em diante sua carreira deslanchou. Mas antes formou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (mais um nome ilustre que devemos àquela escola).

Regeu por muitos anos o coral do Instituto Cultural Brasil-Itália, sediado no Colégio Dante Alighieri, e o transferiu para o Masp a convite de Pietro Maria Bardi. Ali dirigiu o Departamento de Música e fundou a Orquestra de Câmara do Masp.

Fez de tudo, inclusive criando o programa Pró-Ópera na gestão Mário Chamie na Secretaria Municipal de Cultura. Passaria a oferecer -modestamente – um recital de árias acompanhado pela pianista Selma Asprino, por toda parte onde desse: escolas, clubes, auditórios… Sempre elogiando os colaboradores, dizendo que graças aos cantores e à pianista o programa foi um sucesso.

Encontraria seu nicho na Fundação Padre Anchieta, à qual serviria por 44 anos, atuando na televisão e no rádio, em tudo o que concerne à música erudita.

Tinha um fraco por ópera, que amava com desvelo. Pois foi justamente nesse campo, em que seu saber encontrava poucos rivais no país, que mais se destacou nos últimos anos. O programa da Rádio Cultura intitulado “Teatro de Ópera”, selecionado e apresentado por ele, encantou ouvintes de todo quadrante e de toda extração.

“Teatro de Ópera” entrava em sintonia na FM da Rádio Cultura todos os domingos, às 15 horas, em convênio para retransmitir os concertos do Metropolitan Opera House, de Nova York, uma das casas especializadas mais importantes do mundo. Para ouvi-lo, muito fã se esquivava após o almoço dominical e voltava correndo para casa.

Os comentários que se seguiam analisavam com amor e carinho cada peça, dissecando-a em seus componentes, fazendo jus à sua categoria de obra-de-arte, com o maior respeito. Não dispensava o histórico da composição de partitura e libreto, ligando-os ao autor e à época. Podíamos contar com sua aula.

O Metropolitan Opera House, devido às gordas subvenções de que depende, não é uma casa que espelhe o gosto tradicional e convencional. Ao contrário, arrisca em produções novíssimas, experimentais, vanguardistas. Isto, é claro, temperado pelas óperas mais conhecidas, para contentar o gosto da parte conservadora do público. Essa receita, que busca equilibrar o tesouro histórico com a inovação, é a fórmula seguida por casas do mundo inteiro, inclusive as nossas.

Por aqui, o São Pedro e o Municipal fazem encenações ambiciosas, este último confiado em seu imenso palco que abriga verdadeiras multidões. Tivemos oportunidade de assistir alguns espetáculos da linha de frente mundial, como por exemplo a montagem por Robert Wilson do Macbeth de Verdi, toda baseada no trabalho da luz. A ópera é antiga, mas a montagem é moderníssima. Ou então uma revelação, que foi a Lady Macbeth de Mtsensk, de Shostakovitch, por muitos anos maldita e banida. E no mesmo local encenou-se a ópera Café, de Mário de Andrade, com suas massas corais

Somos gratos ao maestro Walter Lourenção por tantos anos de elevação artística e deleite, que devemos a sua incansável dedicação. Apegamo-nos afetuosamente à sua dicção fiel à norma culta paulista, com ss e rr bem escandidos, em timbre de barítono. E à pronúncia impecável de tantos nomes e títulos de obras em diferentes línguas, em que costumava caprichar.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]


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