Capitalo-parlamentarismo no Brasil – parte 2

Imagem: Arthur Jackson
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Por DIOGO FAGUNDES*

De forma um tanto dogmática e brutal: não há política no Brasil. Ou melhor: só há a política do capitalo-parlamentarismo, logo nenhuma política

Jair Bolsonaro: anti-sistema?

Hoje, quando o bolsonarismo, ainda que muito forte, dificilmente é respeitável por gente “séria” (o fato de um dia ter sido é, em si, algo patológico), devido aos arroubos insurrecionais e ao incrível obscurantismo e negligência na questão da vacinação pública durante a pandemia de Covid, esquecemos de um dado essencial: o quanto Jair Bolsonaro foi não só aceito e naturalizado, como explicitamente preferido pelo povo da bufunfa contra Fernando Haddad, que, como vemos hoje (mas alguém achava realmente diferente?) está longe de ser um esquerdista aterrorizante para os mercados.

Enquanto o professor da USP passava um tempo precioso durante a sua campanha isolado em São Paulo, tentando convencer Fernando Henrique Cardoso a lhe prestar um apoio (que nunca veio) em 2018, Jair Bolsonaro era visto como a melhor opção por 99 de 100 pessoas da nossa elite econômica e midiática.

Isto nos obriga a colocar a questão: em que medida Jair Bolsonaro é heterogêneo ao consenso capitalo-parlamentarismo brasileiro instalado?

Ora, vamos fazer o check list.

Ele acredita que o socialismo e o comunismo são um câncer responsável por tudo de ruim no país e no mundo (check), os grande responsáveis pela situação terrível do Brasil eram as ideias de esquerda (e infelizmente de vez em quando o PT e Lula deram um pouco de ouvido a elas…), essencialmente corruptas e desastrosas (check), há um excesso de regulações trabalhistas e direitos sociais que impedem o país de progredir (check, inclusive do STF e de figuras como Luís Roberto Barroso, hoje seu suposto arqui-inimigo), é preciso privatizar e mercantilizar muito mais (check), os grandes privilegiados do país são professores, aposentados, profissionais da saúde, enfermeiras, assistentes sociais, etc. que compõem a massa do funcionalismo público e da previdência (check), sindicatos são atraso de vida (check), a Petrobrás é um dinossauro obsoleto, assim como ideias de soberania sobre nossos recursos (check), líder político bom é quem obedece às injunções do mercado financeiro e não palpita sobre economia, terceirizando tudo para quem de fato sabe, um agente do mercado erigido à condição de super-ministro (check).

Mesmo características visivelmente toscas, como a contestação contra o resultado das urnas – Aécio Neves e Gilmar Mendes não tinham feito o mesmo após a vitória de Dilma em 2014? –o, não eram novidade. A crítica demagógica ao “mundo político” já estava amplificada há tempos: “gestores”, apresentadores de palco ou gente diretamente do mundo dos negócios eram apresentados como possíveis melhores opções à condução do Estado.

Até a submissão incondicional e servil a um líder externo é meramente matéria de gosto: o bolsonarismo prefere Donald Trump, mas a postura dos nosso “democratas” da rede Globo é igual em relação à outra facção da política norte-americana, pois concordam que os EUA devem liderar o planeta e lutar de forma enérgica, militar, pelos seus interesses (portanto, China é um bicho-papão crescente), que convergem com os da humanidade.

Certo, o estilo rude, o gosto por espetáculos políticos de massa, um “exagero” retórico, uma falta de zelo com a imagem (dá para praticar políticas devastadoras para o meio ambiente sem ser tão descarado na intenção de desmatar, apoiar garimpeiro ilegal e matar índio, né?), o que não fica muito legal para a aprovação de quem devemos agradar (os “investidores estrangeiros”), tudo isso não “orna”, como dizem no interior de São Paulo. Mas, sem problemas, Tarcísio de Freitas já é o líder preparado para o bolsonarismo 2.0., purificado de seu lado demasiado populacho, com toda a bênção da Faria Lima.

E o Lula? Bem, enquanto não houver muito “petismo” (isto é, trabalhadores, camponeses ou espírito anti-imperialista tendo alguma voz) nele pode ser aceitável. É útil para normalizar e dar consenso social às reformas neoliberais já aprovadas (afinal, em governos de direita, a esquerda costuma fazer oposição a coisas que ela mesmo depois chancela), mas não é confiável, muito menos o seu partido, principalmente quando este se mete a ter ideias próprias. É vacilante demais, devido ao compromisso com sua base social, para fazer o que deve ser feito imediatamente: desvincular salários da previdência, cortar pisos constitucionais de educação e saúde, cobrar mensalidades em universidades, etc. O futuro de sua “frente ampla” é incerto, pois se o bolsonarismo se apresentar mais ao estilo Tarcísio de Freitas do que ao estilo família Bolsonaro, deixará de ter utilidade.

Se o futuro da política brasileira consistir em disputas completamente despolitizadas entre figuras representando uma vertente mais moderna e “social” do capitalo-parlamentarismo contra outra mais chucra e desqualificada, como uma possível versão macro deste embate midiático atual entre Tábata Amaral e Pablo Amaral nas pré-eleições municipais, a paz dos cemitérios está garantida.

A “polarização” dos EUA é o exemplo mais bem acabado desse estado de coisas: uma hiperagitação ideológica, tão incessante e fascinante quanto ridícula, sem que haja qualquer questão política real a clivar a paisagem eleitoral – veja o que falam ambos os candidatos a respeito de Israel. É fácil demais polir com aura antagonista e violenta aquilo que não tem qualquer heterogeneidade real: o exemplo da Guerra de 1914-1918 é o grande exemplo histórico. Política real é outra coisa.

O que fazer?

A fim de não cairmos nas lamúrias incapacitantes e no tagarelismo opinativo a partir de um ponto de vista externo e superior – como é o caso frequente de um ambiente cada vez mais marcado pelas redes sociais –, tentemos formular algumas tarefas, ainda que pouco promissoras para quem tem pouca paciência e gosta de alimentar ilusões para si ou para os outros a respeito do futuro.

Declaremos, de forma um tanto dogmática e brutal: não há política no Brasil. Ou melhor: só há a política do capitalo-parlamentarismo, logo nenhuma política, pois sem a existência de contraposição de políticas distintas, só há gestão da ordem. Com efeito, se adotarmos a tese do supracitado Lazarus, a política não é da ordem de uma invariante (uma superestrutura jurídico-estatal de qualquer formação social), nem espontânea ou coextensiva aos movimentos reivindicativos, mas rara.

Ora, é claro que há movimentos, organizações, lutas sociais, grupos de pressão, opiniões críticas, etc. Mas isso é o suficiente para constituir uma política efetiva?

Da parte do PT, há a postura do “dique de contenção”: estar no governo para evitar a volta do bolsonarismo, cozinhando em banho-maria até às próximas eleições, com algum crescimento modesto, sem nenhuma proposta ousada, mas capaz, talvez, de proporcionar um mínimo de melhoria para os mais pobres. Esta é a ideia. Há dois problemas: (i) isto é suficiente para deter a força de uma extrema-direita muito mobilizada, organizada e ideologizada?; (ii) o mercado é insaciável e pede mais “reformas” a fim de superar os impasses provocados pelo novo arcabouço fiscal e as promessas de déficit zero. Digamos apenas que dar de bandeja para o fascismo o monopólio da defesa de pautas populares (como a luta contra desvinculações ou cortes sociais) não parece ser uma tática das mais inteligentes para lidar com o perigo de retorno do bolsonarismo.

Aos que desgostam de Lula – e muitos possuem seus motivos – podemos dizer apenas: a tendência é piorar quando o inevitável destino biológico chegar. Lula, gostemos ou não, é um líder popular, com conexão com as massas mais empobrecidas, ligado ao movimento operário, com alguma trajetória de mínimo tensionamento contra o imperialismo (nem que seja por sua recusa de fazer o papel de líder anti-Cuba no continente).

Com a crise brutal do sindicalismo (a burguesia tem gratidão a Michel Temer não à toa), o fim do velho mundo do qual o político Lula nasceu, e a falta de lideranças populares genuínas no PT, não parece haver motivo para muito otimismo com o futuro do partido. Claro, sempre novos movimentos históricos, na forma acontecimentos imprevisíveis, podem surgir, possibilitando que lideranças e organizações novas ocupem papel análogo no futuro. No entanto, é sensato constatar que lideranças políticas de massa na esquerda não são improvisadas e nem muito frequentes.

Esta postura petista, evidentemente, não constitui nada de diferente em relação ao capitalo-parlamentarismo consensuado em 2016 (prova: nenhuma reforma do Michel Temer ou Jair Bolsonaro é sequer discutida como passível de reversão, ao contrário das promessas abundantes durante o período de oposição a estes governos), mas se fia na modéstia de um objetivo possivelmente verossímil (ganhar as próximas eleições), já que há inexistência de qualquer outra via.

Se o adesismo total e acrítico costuma não gerar nada de bom – pelo contrário, prejudicam a discussão de rumos, balanço do passado e retificação de erros, e, assim, sempre preparam futuras derrotas ou então impedem um caminho vitorioso –, resta fazer oposição?

O problema está num vício clássico que podemos chamar de “oposicionismo”. Ele consiste em acreditar que a política consiste num mix de agitação e propaganda (mais ou menos doutrinária, dependendo do caso) e denúncias, reclamações e lamúrias. O trotskismo, fértil em cultivar tal estilo, teve a infelicidade, em sua história, de conhecer bem a impotência desta postura: as denúncias às “crises de direções” não costumam levar a muita coisa, limitam a política à formação de “grupos de pressão” ou, no pior dos casos, a promessas vagas e pouco críveis (“na minha vez, quando estiver no governo, será diferente!”). Para ser franco, é uma cultura que costuma favorecer o oportunismo.

Isto, evidentemente, não quer dizer que não seja importante formar uma opinião crítica e questionadora a respeito do governo, nem influenciar ideologicamente o clima cultural do país neste sentido. Só não é aconselhável ter ilusão quanto ao seu papel. Portanto, mesmo que haja grupos de esquerda – com diversas divergências, mas concordando que o rumo do país é horrível – atuantes ou até com programas elaborados, não verifica-se atualmente nenhuma política apontado germes de uma possível nova orientação estratégica, que não meras intenções e proclamações.

Talvez isto seja inevitável devido à atual situação em que estamos – terrível não apenas no nível nacional, mas global –, em meio aos rudimentos iniciais de uma nova política, sem que qualquer organização ou líder possa se apresentar como “vanguarda do proletariado” ou ter pretensões do tipo sem soar ridículo.

Além do “oposicionismo”, que é estéril enquanto não servir para produzir possibilidades novas, reais e afirmativas através de palavras de ordens de organizações colocando massas em movimento em ruptura com a ordem, outro vício cada vez mais atual é o milenarismo profético, um clássico da ultra-esquerda.

Devido às crises ambientais e a urgência da questão ecológica, há uma postura confortável de pregar o apocalipse iminente, seja ecológico ou econômico, sem apresentar qualquer alternativa política. Deus sabe como há esquerdistas que choram de alegria com crises! Quanto mais catastróficas, mais promissoras para a conquista do público em torno de sua pregação e sua estética radical, o que pode ser útil para vender livros e chamar a atenção, mas costumam levar mais a imobilismo e pânico (ou, no sentido contrário: crença ingênua de que qualquer movimento na esquina é o anúncio, enfim, do fim do capitalismo) do que a gerar senso de urgência militante.

É preciso ser novamente brutal. A política, afinal, muitas vezes o exige, o que costuma causar repelência no pequeno-burguês cheio de afinidades por nuances e sutilezas (muitos acadêmicos transformam este ethos em carreira de vida): quem fala muito em catástrofe sem defender e praticar uma política antagônica ao capitalismo (o que não é um vago anti-capitalismo, mas um novo comunismo) é um irresponsável. Principalmente se condena unilateralmente e em bloco – quanto se trata de ser anti-comunista, as nuances dos acadêmicos vão pro espaço – toda experiência passada que, de fato, gerou medo ao mundo capitalista (quantas vezes nossos profetas conseguiram fazer isso?), com os termos e avaliações os mais banais e óbvios possíveis. Serve apenas para fomentar niilismo estético, vendável e até rentável, de sabor aristocrático.

Se a postura da espera profética, pregação apocalíptica ou milenarista (um dia haverá o Arrebatamento, e o capital se dissolverá em um passe de mágica, com o fim imediato da mercadoria, da moeda, do direito, do Estado, etc.) é, portanto, outro tique deletério e clássico da história da esquerda, um verdadeiro obstáculo epistemológico a impedir a formação de caminhos promissores, resta, então, sermos realistas: nossas tarefas são de cunho mais basilares, pré-políticas, e podem não soar tão encantadoras no curto prazo para quem quer resultados rápidos.

O que se entende por “pré-político”?

Simplesmente isto: antes de se ter qualquer programa acabado ou estratégia elaborada em laboratório – o que é um franco idealismo quando não há ancoragem em trabalho político efetivo e que produza resultados verificáveis –, é melhor focar nossas energias em outras coisas indispensáveis, mas anteriores. O caminho estratégico, fora balizas muito gerais, só pode ser elaborado de forma real após uma política existir e ganhar corpo e potência.

Podemos listar quatro dessas “coisas anteriores” à existência de uma nova política: (a) formação de uma intelectualidade marxista qualificada e orientada para um novo comunismo; (b) criação de vínculos orgânicos com as massas; (c) inserção em movimentos já existentes, de cunho muito reivindicativo (portanto, pré-político) mas com potencial de politização; (d) realização de um esforço intelectual e investigativo a respeito do país e do mundo, e de suas organizações e sequências políticas de pelo menos desde o início do século XX.

A respeito da primeira tarefa: não se trata simplesmente de fazer análises e tecer opiniões críticas a respeito do capitalismo. Não há coisa mais fácil do que falar mal do capitalismo – mesmo alguns capitalistas falam! –, e isso nunca fez mal algum a este modo de produção. A tarefa central é criar condições para um novo comunismo, afirmativo, resoluto, sem pagamento de pedágio. Isto só é possível com uma avaliação honesta e inventiva dos fracassos e obstáculos da sequência comunista anterior, inaugurada pela Revolução de Outubro de 1917. O dogmatismo da mera defesa do passado deve ser combatido tanto quanto quem acha que tudo deve ser recriado do zero e não há de bom para aprender ou defender.

Isto inevitavelmente produzirá certo isolamento num primeiro momento, pois “comunismo” ainda é uma palavra amaldiçoada. Mesmo intelectuais críticos à ordem são reticentes quanto se trata de dar novo peso e glória a esta palavra. Mas acabar com esta maldição é nossa primeira tarefa, pois sem ordem nas ideias, é impossível ter ordem em matéria de organização, como diria Mao. E sem luta ideológica efetiva, nenhuma orientação política é possível, segundo o mesmo chinês.

A segunda tarefa é, provavelmente, a mais trabalhosa, difícil, prolongada e pouco compensatória (pelo menos, no curto prazo), mas é a mais indispensável. Trata-se de criar vinculações entre intelectuais comunistas e massas laboriosas, onde quer que elas estejam, nos ambientes de trabalho, moradia, socialização, etc. O caminho dos “cursinhos populares” – apesar dos limites, pois é algo facilmente passível de despolitização –, o investimento em educação popular em periferias, a retomada do movimento da extensão universitária (como advocacia e médicos populares), são as apostas mais promissoras nesta direção.

 É preciso, provavelmente, criar uma mistura de organizações de ajuda (com serviços de primeiros socorros, auxílio jurídico, clínicas para problemas de saúde mental e adicção, organização de restaurantes comunitários, alfabetização e auxílio escolar, etc.) com escolas políticas transmitindo tudo o que diz respeito à história da luta entre capitalismo e comunismo nos últimos dois séculos, pelo menos. O caminho das organizações brasileiras dos anos 1970 e 1980 que apostaram no trabalho popular deve ser retomado. Precisamos estudá-las.

A terceira é, provavelmente, a que mais atualmente ocorre na prática. O acompanhamento, auxílio, divulgação e propaganda de movimentos como o VAT (Vida além do trabalho) ou dos trabalhadores de aplicativos. Deve-se, contudo, evitar dois erros. O primeiro é utilizar os movimentos de forma instrumental ou oportunista, apenas para pescar quadros ou pretender receber os louros em caso de vitórias. O aparelhismo clássico, em suma. O outro é o apoio irrefletido, mero “suporte”, sem nada contribuir para o ultrapassamento do estágio puramente reivindicativo ou com a formulação de palavras de ordem com capacidade de unificação, mobilização e obtenção de vitórias políticas (a respeito da redução da jornada de trabalho, por exemplo).

Por fim, a última tarefa envolve um esforço coletivo tanto teórico quanto experimental. Não se trata meramente de estudar a história de formações sociais, apesar de isso ser importante, mas de constituir um arquivo, quiçá uma enciclopédia, da história dos movimentos populares e das políticas emancipatórias do último século, no nível global e nacional.

Este estudo do passado deve ser complementado por um esforço para realizar investigações concretas (isto é, trabalho de campo por meio de reuniões com pessoas envolvidas) a respeito das principais questões do capitalismo contemporâneo – como se estrutura a vida urbana, o que é o campesinato contemporâneo, as grandes migrações internacionais, como é a vida e o pensamento de quem mora nas periferias das nossas metrópoles, como se estrutura o novo mundo do trabalho, como se dá a disputa por matérias primas e minérios no globo –, na maior escala possível, isto é, é um trabalho potencialmente e idealmente internacional.

De cunho político mais imediato, é preciso se debruçar, no mínimo, com os movimentos históricos mais recentes, fazendo um balanço detalhado dos seus fracassos ou limitações. Um exemplo: as insurgências recentes na Colômbia (que originaram o governo Petro), no Chile (na origem do governo Boric), mas também no Equador e Peru, onde mobilizações enormes não geraram governos de esquerda bem-sucedidos. No Brasil, é decisivo ainda meditar sobre junho de 2013 e o movimento de ocupação de escolas de 2016.

Mais decisivamente, no entanto, é necessário fazer um balanço das organizações e lutas políticas que ocorreram nas últimas décadas onde a chama da revolução esteve viva: os anos 1960 e 1970. No Brasil, isto implica estudar tanto a luta armada como as organizações que optaram por um caminho “pacífico”, não necessariamente eleitoral. As mais interessantes não estavam, na verdade, fixadas em nenhum desses dois vértices bem delimitados.

Estas décadas de intensa politização, com as lutas de libertação nacional, os Panteras Negras, o pós-maio de 68, as novas formas de luta operária e a criação de um novo movimento comunista (muitas vezes com ideias inspiradas em referências novas, como o maoismo e a Revolução Cultural) são frequentemente mal estudadas e compreendidas. Fazer este estudo é uma necessidade e, portanto, um dever.

Por fim, eis algumas indicações e sugestões para os comunistas brasileiros:

Não caiamos no erro de achar que já possuímos uma teoria de partido pronta e acabada para o comunismo do século XXI. Simplesmente não há exemplo de partido revolucionário bem sucedido em nossa época, ao contrário da época em que o marxismo-leninismo era um verdadeiro paradigma. Não é preciso jogar o passado fora, mas é dogmatismo ossificado acreditar que as estruturas da III Internacional e o marxismo-leninismo antigo dão conta dos nossos objetivos.

A teoria política, organizativa e estratégia da terceira etapa do comunismo ainda precisa ser criada, e ela necessariamente envolve entender por que os partidos-Estado da III Internacional se tornaram alérgicos à invenção política comunista e fracassaram, assim como compreender a complexidade – hoje obscura e coberta sob um véu de total ignorância – da Revolução Cultural na China, a tentativa mais radical e concreta de criar uma inovação dentro do campo marxista-leninista.

Trata-se da Comuna de Paris do século XX: uma derrota prenhe de significados e lições para uma nova política. Devemos repetir o gesto de Lênin e não meramente copiar sem criatividade uma doutrina codificada: assim como ele lutou para criar uma teoria e uma política capazes de superar os problemas da Comuna de Paris – isto está diretamente na origem de obras como O que fazer –, é necessário estudar as coisas interessantes (e há muitas), assim como os erros fatais e desastrosos da Revolução Cultural. O marxismo está em sua etapa pós-maoísta.

Tanto o stalinismo quanto o trotskismo são ideologias conservadoras nos tempos atuais. O maoísmo dogmático, militarista e caricato de organizações inspiradas no Sendero Luminoso também. Os grupos professando tais referências e que conseguiram sobreviver o fizeram a custo de muito enrijecimento dogmático, tornando-se pesados e incapazes de inovação, ou através de um ecletismo e uma diluição que tornam boa parte dessas palavras inoperantes ou sem sentido. O diálogo com este grupos conservadores deve ser respeitoso mas polêmico, sempre indicando o caráter impróprio dessas terminologias e referências obsoletas.

 Há dois problemas cruciais a serem encarados de frente: o eleitoralismo e o federalismo. Engana-se quem subestima a força corrompedora e inercial das instituições estatais burguesas e acha que pode blindar-se de seus efeitos facilmente. Mesmo grupos sem estratégia eleitoralista na história do movimento comunista (isto é, anti-revisionistas, críticos ao eurocomunismo, etc.) facilmente se veem presas da postura defensiva de orientar suas táticas em torno da manutenção de seus aparelhos ou currais ao adentrarem no jogo institucional. Vemos isso até em grupos trotskistas em seus sindicatos.

O contágio inercial e possivelmente conservador de estratégias que apostam na conquista e manutenção de pedaços do Estado (sejam prefeituras, universidades ou sindicatos) não deve ser subestimado. Quando a vida eleitoral passa a ditar o tempo da organização, é difícil haver caminho efetivamente alternativo ao capitalismo. Pelo menos nunca vimos isso em toda nossa experiência histórica.

Já o federalismo tornou-se uma espécie de ideologia espontânea dos movimentos de nossos tempos. Trata-se da concepção da política que a identifica pelo conjunto múltiplo de lutas dos movimentos sociais organizados em torno de suas próprias pautas, formando uma espécie de conexão positiva entre todos eles, um circuito de feedbacks positivos sem nenhuma unidade política maior ou visão estratégica de conjunto.

A grande formulação moderna desta ideologia se encontra nos intelectuais e militantes, como Félix Guattari, que viram no maio de 68 não uma possível unificação política de novo tipo fornecida pela diagonal entre intelectuais, operários, camponeses e massas, mas uma explosão fragmentada de múltiplas lutas dispersas e marcadas por conteúdos próprios e auto-interessados.

É este o caldeirão que forma a sopa do movimentismo contemporâneo, operando mesmo em grandes levantes históricos. A hipótese a ser levantada é que no caso do Chile isto ficou particularmente claro: a somatória de lutas parciais (de movimentos de gênero, raça, educação, saúde, minorias nacionais, etc.), unificada apenas pela negação à Constituição de Pinochet, sem existência de organização política dirigente e capaz de criar uma unidade popular ativa, através de uma visão de conjunto da situação e de prescrições precisas e simples, incapacitou a luta pela nova Constituinte, que se tornou uma grande caixa de ressonância de movimentos fragmentados.

Estas indicações têm apenas um propósito: estimular os comunistas brasileiros a construir os rudimentos de um novo caminho político. Esta tarefa ainda está em um estágio muito inicial e precário, mas há aspectos promissores: o entusiasmo da juventude com os novos intelectuais comunistas – muitos deles, de origem proletária –, bastante populares nas redes sociais, é bastante animador.

No entanto, a lucidez envolve justamente não cegar-se com sucessos momentâneos e nutrir expectativas falsas. O salto de que precisamos para conseguir criar uma política efetiva é enorme. Sair do niilismo contemporâneo não é uma tarefa fácil. Por isso, digamos, de forma provocativa, como Mao: “Não ter um ponto de vista político correto é como não ter alma”.[i]

Lutemos, então, para ter uma alma, e, assim, quem sabe, sustentar a ambição de tempos menos niilistas: salvação e imortalidade. Sem precisarmos, contudo, de qualquer Céu transcendente. Trata-se de matéria telúrica, do aqui e agora.

*Diogo Fagundes é mestrando em Direito e graduando em Filosofia na USP.

Para ler a primeira parte deste artigo clique neste link.

Nota


[i] Esta citação está num dos textos políticos mais importantes da nossa história (“Sobre o tratamento correto das contradições no seio do povo”).. Contudo, quem, de fato, lhe dedicada a atenção devida e ainda o lê ?


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