Cesarismo

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por EUGÊNIO BUCCI*

Por trás do caos performático do presidente dos Estados Unidos, com mentiras intercontinentais e factoides histriônicos, há uma lógica ferina e fria

Em sua coluna dominical em O Globo, a jornalista Dorrit Harazim vem ajudando a gente a escrutinar o inconcebível. Os artigos que ela escreveu sobre a pulverização de Gaza fazem e compõem uma antologia definitiva. Logo mais, alguém se lembrará de publicá-la em livro. Agora, Dorrit Harazim tem decifrado a vulgar esfinge de Donald Trump.

No domingo passado, num texto intitulado “Com método”, ela demonstrou que, por trás do caos performático do presidente dos Estados Unidos, com mentiras intercontinentais e factoides histriônicos, há uma lógica ferina e fria.

Nas palavras da colunista do Globo, o “objetivo maior e final de Donald Trump” é “assumir controle pleno, sistemático e duradouro da máquina federal”. E mais: “o conjunto de ordens executivas e medidas adotadas nesse sentido nada tem de caótico – são eficazes, precisas e reveladoras de um planejamento de anos para o desmonte da burocracia qualificada”.

Aí está. Dorrit Harazim não usou a palavra, mas o nome disso é cesarismo. Ao que você pergunta: “Mas o que é o cesarismo?”. Peço permissão para responder a sua gentil pergunta com o auxílio de uma reminiscência ligeira.

No início de 1988, eu e o sociólogo Eder Sader entrevistamos o professor Antonio Candido para a revista Teoria e Debate. Eu era o editor da revista, que tínhamos lançado no finzinho de 1987. Eder Sader integrava o nosso conselho de redação. Ele morreria poucos meses depois, em maio de 1988, aos 46 anos.

Hemofílico, tinha contraído o vírus da Aids numa transfusão de sangue, provavelmente em 1985, e não conseguiu vencer a doença (naquele tempo, ninguém conseguia). Guardo dele a imagem luminosa de um homem bem-humorado, leve, inteligente e, acima de tudo, generoso com os mais jovens. Cabelos embranquecidos, sobrancelhas negras, sorriso desprendido.

Nossa conversa com Antonio Candido também foi iluminadora: transcorreu com leveza, inteligência e generosidade. Quando lhe perguntamos sobre a revista Clima, que ele e Paulo Emílio Salles Gomes editaram na década de 1940, ele nos contou uma história e tanto. Foi nessa resposta que ele falou sobre o cesarismo. Eu nunca mais esqueci.

Eis o que ele disse: “No começo [a revista] era deliberadamente apolítica, tendo inclusive colaboradores integralistas. A virada foi em 1942, quando o Brasil entrou na guerra. Nós assinamos um manifesto redigido por Paulo Emílio assinalando a nossa posição antifascista e dizendo que agora tinha acabado a isenção e começava a luta, atacando inclusive os integralistas. Alguns dos nossos colaboradores deste naipe brigaram conosco. O nosso manifesto causou certo barulho e foi comentado, entre outros, por Astrojildo Pereira, que assinalou o seu caráter puramente negativo. Então resolvemos tentar uma definição positiva, que foi obra de Paulo Emílio, sob a forma de um “Comentário” publicado no número 12, já em 1942”.

“Este documento ainda tem interesse, e para mim foi o fixador de ideias, o definidor da posição política. Foi certamente ele que me levou a não ficar nem stalinista nem trotskista, mas aceitar a posição preconizada por Paulo, de um socialismo democrático desinteressado das Internacionais, procurando soluções adequadas ao país, empenhado na luta contra o fascismo, porque esta era a manifestação contemporânea do cesarismo oposto à tradição humanista, que provinha do cristianismo por meio das revoluções dos séculos XVIII, XIX e XX. (…) Este documento foi decisivo para mim e outros. A partir dele entrei para valer na militância.”

Antonio Candido virou militante para combater o fascismo. Bom motivo. Foi ele quem primeiro me ensinou sobre cesarismo: um tipo de arbítrio que é o oposto da “tradição humanista, que provinha do cristianismo”. Há quem diga que o cesarismo constitua um autoritarismo estatal, mas essa conceituação é falha, pois perde de vista a chaga escura que Paulo Emílio denunciou. O César romano (de ondem descendem as palavras “Kaiser” e “Czar”) exercia seu mando em permanente prontidão guerreira, como um chefe de gangue.

O cesarismo, portanto, não se tece por meio do Estado, mas por cima do Estado e contra a institucionalidade de um Estado não selvagem. O cesarismo é o “desmonte da burocracia qualificada” (cito Dorrit Harazim outra vez), aquela mesma burocracia na qual Max Weber identificou um ponto positivo do Estado moderno. O cesarismo funda a genealogia do fascismo e do trumpismo.

Agora, Donald Trump anunciou que vai intervir em Gaza. Em outra frente, já começou a mandar imigrantes deportados para as masmorras de Guantánamo, onde já se documentaram sessões de tortura. Guantánamo será a versão trumpista dos campos de concentração.

O que ele quer com tudo isso? Desorientar os aliados? Sim, mas não só. Quer atemorizar a comunidade internacional? Também. E para quê? Ora, para dizer que nada mais será limite para os abusos que inventar. Ele quer ser não apenas o rei da América, mas o seu César. Reduzirá a América a um nome de golfo. Isolado. Incrível como ainda existe gente que olha com naturalidade (fake) para investidas tão acintosas.

Viva Eder Sader. Viva Antonio Candido.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES