Por FLÁVIO R. KOTHE*
Considerações sobre o filme dirigido por Edward Berger
1.
Não temos a chave do Conclave que há de escolher o sucessor do papa Franciscus. Podemos, no entanto, buscar algumas chaves do filme O conclave, premiado este ano com o Oscar, além da chave óbvia de que se trata de um investimento feito quando o papa já era idoso e se poderia prever que seu passamento iria estimular milhões de espectadores a assisti-lo. Certo é, porém, que o Conclave será diferente do filme, embora este procure estar atualizado quanto às tendências políticas em conflito. Mesmo a solução proposta, a escolha de alguém fora do colegiado normal, já ocorreu na história.
Vi o filme com meu filho de 22 anos, engenheiro, e achei interessante ao conflito de opiniões que tivemos no fim. Quando o filme se encaminhava já para os seus finalmentes, vi brotar em mim o espontâneo comentário de que os autores do romance e do script haviam exagerado na dose de psyops da CIA, forçando a barra da ideologia identitária. Meu filho disse que só estava querendo se divertir vendo o filme; eu respondi que o preço da diversão ianque é a doutrinação.
Não usei a expressão lavagem cerebral. Meu filho estuda numa universidade em que a doutrina dos gêneros gerou a prática de que só mulheres podem concorrer à Reitoria, pois cuidam melhor que os homens.
Qual é a chave de O conclave? Se for pelo argumento do roteiro, o próximo papa teria de ser bissexuado, um hermafrodita. Só assim ele seria capaz de não ser dogmático, ter na dúvida o fundamento da fé. Se surgisse, porém, um papa assim, ele teria logo de apresentar atestados médicos negando o fato. Seria perseguido por boatos desgastantes pelo resto do mandato. Assim como a Presidenta Dilma Rousseff foi desgastada por uma sórdida campanha difamatória, de que seria autoritária e burra: acabaram por legitimar o golpe de Estado que a vitimou sem culpa formal.
Se o filme realmente tivesse o poder de influenciar que pretende, todo papábile teria de fazer prova de sua sexualidade. Exatamente isso fica excluído na vida dos religiosos católicos, que fazem o voto da castidade para se dedicarem integralmente à Igreja. Equivale ao sacrifício que fazem os judeus com a circuncisão, que dura a vida toda e não precisa ser feita a cada dia.
2.
O papado é a única monarquia eleita, já que os eleitores, supõe-se, não têm filhos que os pais possam querer promover a sucessores. O modelo da Igreja Católica está na República de Platão. Nesse governo dos sábios, o mestre grego postulou o heliocentrismo como o que distinguiria os “donos da verdade” e os crentes gregos, que tinham um geocentrismo implícito na crença de que Apolo levaria o Sol pelo céu a cada dia.
Hoje, todos sabem que nem o Sol nem a Terra são centro do universo, porque este sequer tem centro, pois não tem limites (e não é um uni verso). Claro é que os cristãos tiram isso de letra, pois eles têm um deus que rodeia tudo isso, abrange tudo e mais um pouco. O heliocentrismo foi uma doutrina egípcia para legitimar Tutancâmon, como filho do Sol. Quando esse monoteísmo foi posto fora do poder pelo retorno do politeísmo, ele foi imposto aos judeus, escolhidos pelos sacerdotes egípcios para manterem essa crença (que foi repassada a diversas religiões posteriores).
O filme O conclave adota a tese católica de que o colégio eleitoral é inspirado pelo Espírito Santo (que em geral não consegue se comunicar bem com os cardeais, pois não há unanimidade dos votos). Ele aparece por atentados a bomba, que forçam uma decisão. As votações vão mostrando o embate entre diferentes forças: cardeais italianos da cúria, que querem preservar o poder; americanos e europeus ambiciosos de mando; um cardeal negro, a representar o terceiro mundo; um cardeal mais reacionário e prepotente.
O filme é uma novela de detetive. Este papel é desempenhado pelo Camerlengo, que supervisiona o simpósio e é obrigado a assumir por três vezes a função de desvendar mistérios. O primeiro aparece durante o repouso noturno dos cardeais, quando se ouve uma voz feminina e uma masculina em discussão. Pela manhã, uma freira negra deixa cair uma bandeja. O Camerlengo vai investigar, mas a freira que supervisiona o trabalho das mulheres religiosas quer resolver tudo sozinha.
Ele exige que ela obedeça. Assim, entra em contato com a freira de origem africana: sob confissão, ela diz ter tido um filho com o cardeal negro papábile quando eram jovens. Quando ele é abordado, reconhece que teve o caso, mas que não havia sido repetido, tendo a criança sido adotada por uma família, e que um pecado de juventude não deveria impedir que se tornasse papa. Essa defesa não é aceita para ele ser digno da função.
Desdobramento da investigação é descobrir quem convocou essa religiosa para o Vaticano nesse período. Desta vez, o Camerlengo tem a cooperação da freira supervisora, que lhe dá acesso a documentos privados do papado e permitem decifrar o que teria se passado entre o falecido papa e outro candidato ao cargo: há o boato de que lhe teria sido exigido que abdicasse. Este havia tratado de se livrar do candidato africano, convocando quem podia comprometê-lo. Tais documentos são distribuídos então em cópias a todos os cardeais eleitores. Assim se liquidam dois candidatos.
A disputa entre os remanescentes se acirra, mais ainda porque estão ocorrendo atentados terroristas fora. Os candidatos europeus se enfrentam. O candidato mais à direita prega com veemência a necessidade de eliminar inimigos na guerra religiosa em curso. O problema que surge agora é saber como impedir que o Vaticano caia nas mãos da extrema direita, intolerante e dogmática. Daí entra em cena o Espírito Santo.
Após veemente discussão, ouve-se a voz do cardeal in pectore, nomeado secretamente pelo Santo Padre, o cardeal de Cabul. Ele diz que tinha estado em diferentes países e visto várias guerras, com cadáveres católicos e de outras religiões. Era preciso evitar as guerras, lutar pela compreensão mútua, pela compaixão. Que esta, sim, era a doutrina de Cristo. Na votação seguinte, ele é eleito papa.
3.
Há nele, no entanto, um segredo, a ser decifrado pelo Camerlengo, que soube que ele tinha ido a uma clínica suíça, patrocinado pelo falecido papa. Perguntado, ele conta que realmente havia ido lá para examinar a possibilidade de uma cirurgia. Na aparência externa, no internato, ele não se distinguia dos outros meninos, mas cedo havia descoberto de que tinha ovários. Seria possível extirpá-los mediante cirurgia, mas que ele havia decidido não fazer, pois, se Deus o havia feito como era, ele precisava se aceitar assim. Havia contado isso ao papa antes de ser nomeado cardeal in pectore. Esse dado não é contado a todos: o expectador sabe mais que o colégio de cardeais…
Na mitologia grega havia uma figura que havia sido mulher e depois homem. Tal personagem foi perguntado sobre como havia sentido mais prazer. No caso do novo papa, a tese do filme é que ele seria mais compreensivo, menos dogmático. Não há prova de uma relação causal aí.
A doutrina da identidade de gênero parece pregar a igualdade dos diferentes (para apregoar, caso se queira, a superioridade dos diferenciados), para deixar de lado a questão central, a desigualdade entre ricos e pobres, entre proprietários de meios de produção e assalariados. Do mesmo modo, o filme não aprofunda a questão básica da religião: a crença na vida após a morte, na “ressurreição da carne”.
A “aposta de Pascal” tratou disso. Seu argumento é falacioso, vindo de um monge que era um gênio matemático. Sabendo-se que se vai morrer, haveria uma chance de ter essa vida e uma de não ter: 1 x 1. Se o sujeito apostasse que não haveria, caso houvesse ele ficaria perdido; se apostasse que haveria, e houvesse, ele sairia ganhando (então o jeito era apostar que haveria). Trata-se de aposta, não de certeza, mas o cálculo de probabilidades é usado para doutrinar.
O pressuposto é, porém, que só haveria um Deus verdadeiro. Os homens criaram, no entanto, milhares de deuses diferentes: se o sujeito apostasse em certo deus, rezando para ele a vida toda, e não fosse esse deus a aparecer no além, e sim outro, o crente errado certamente seria mandado para os quintos do inferno. A proporção já não seria mais de 1 x 1, e sim de 1 x 1 em >1000. Mesmo entre os monoteístas, Deus não é sempre igual.
A questão se desloca, portanto, da vida eterna para essa necessidade de crer que o sujeito vai ser preservado para o todo e sempre. Ele se sente tão precioso que acha que merece isso e ainda um paraíso. Um nome simples para isso é narcisismo, mas não resolve a questão. Todo crente é um negacionista. Consola mais crer do que assumir a dúvida, a certeza da morte espiritual.
Sob a humildade de padres e pastores, tem-se a arrogância de se sentirem tão importantes que só aceitam um deus como senhor, patrão da querência. Eles abdicam das glórias do mundo (não é bem isso o que se vê no luxo do Vaticano) para lograrem a glória eterna. Trocam pouco por muito, assim como trocam algumas horas de culto e liturgia pela eternidade. Obter tanta vantagem seria uma loteria, máquina inventada por Pascal para diversão da aristocracia.
Franciscus foi um bom papa: defendia os pobres e desvalidos, pregava a fraternidade, a tolerância e a paz. Deve ser sucedido por alguém mais à direita e, se deus quiser, europeu e italiano. Se a um pobre brasileiro impressionam os paramentos encarnados, pretos e azuis dos religiosos, a riqueza dos mármores coloridos, das estátuas e dos prédios da Igreja, mais ainda eles impressionam se tomados em nome da pobreza. Devem ser um sinal de acesso ao divino.
*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc].
Referência
Conclave
EUA, Reino Unido. Irlanda do Norte, 2024, 120 minutos.
Direção: Edward Berger.
Roteiro: Richard Harris e Peter Straughan
Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Isabella Rossellini, Sergio Castellitto.
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