Chile, 48 anos depois

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ LUÍS FIORI*

 “Aprendam a lição (porque) muito mais cedo do que tarde, se abrirão novamente as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Tenho a certeza que meu sacrifício não será em vão”
(Salvador Allende, às 9:30 horas da manhã do dia 11 de setembro de 1973).

O golpe militar, a morte de Salvador Allende e o fim do governo da Unidade Popular, na manhã nublada, fria e melancólica de Santiago do Chile, daquele 11 de setembro de 1973, foi um momento trágico da história política da esquerda latino-americana, e foi também um momento de mudança irreversível do pensamento crítico e progressista do continente.

Nos anos 60 e até o início da década de 70 do século passado, América Latina viveu um momento de intensa criatividade intelectual e política. Foi o período áureo da revolução cubana e de sua influencia sobre os movimentos de luta armada do continente, em particular, no Brasil, Uruguai e Argentina, e um pouco mais tarde, na América Central. Foi o tempo do reformismo militar de Velasco Alvarado, no Peru, e de Juan Jose Torres, na Bolívia; da volta do peronismo e da e da vitória de Juan Domingos Peron, na Argentina; da primeira experiência reformista democrata-cristã, na Venezuela, e acima de tudo, do “reformismo cepalino”, de Eduardo Frei, e do “socialismo democrático”, de Salvador Allende, no Chile. Tendo como pano de fundo, como desafio político e intelectual, o “milagre econômico” do regime militar brasileiro.

Neste período, Santiago transformou-se no ponto de encontro de intelectuais de todo mundo, e virou o epicentro do que talvez tenha sido o período mais criativo da história politicas e intelectual latino-americana, do século XX. Revolucionários e reformistas, democrata-cristãos, socialistas, comunistas e radicais, tecnocratas e intelectuais, líderes sindicais, sacerdotes, artistas e estudantes discutiam – a todas as horas e em todos os cantos da cidade – sobre a revolução e o socialismo, mas também, sobre o desenvolvimento e subdesenvolvimento, industrialização e reforma agrária, imperialismo e dependência, democracia e reformas sociais, e sobre a própria especificidade histórica do capitalismo latino-americano.

Por que Santiago? Porque o Chile foi o único país do continente onde se tentou – de fato – combinar democracia com socialismo, nacionalizações com capitalismo privado, e desenvolvimentismo com reforma agrária, durante o período da Frente Popular, entre 1938 e 1947, e durante o governo da Unidade Popular, entre 1970 e 1973, mas também, de certa forma, durante o governo democrata-cristão, de Eduardo Frei, entre 1964 e 1970. Na década de 1930, os socialistas e comunistas chilenos formaram uma Frente Popular com o Partido Radical, venceram as eleições presidenciais de 1938, e depois foram reeleitos mais três vezes, antes de serem separados pela intervenção norte-americana, no início da Guerra Fria, em 1947. Os governos da Frente Popular chilena, sob a liderança do Partido Radical, colocaram sua ênfase nos programas de universalização da educação e da saúde publica, mas também na infra-estrutura, no planejamento e na proteção do mercado interno e da indústria.

Mas foi só em 1970, que o governo da Unidade Popular propôs explicitamente um projeto de “transição democrática para o socialismo”, como estratégia de desenvolvimento e sem destruição da economia capitalista. Antes de Allende, os democrata-cristão “chilenizaram” o cobre, e começaram a reforma agrária, mas o governo da UP acelerou a reforma agrária e radicalizou a nacionalização das empresas estrangeiras produtoras de cobre, e foi além disto, ao propor criar um “núcleo industrial estratégico”, de propriedade estatal, que deveria ser o líder da economia capitalista e o embrião da futura economia socialista. Este foi, aliás, o pomo de discórdia que dividiu a esquerda durante todo o governo da Unidade Popular, chegando até o ponto da ruptura, entre os que queriam limitar as estatizações industriais aos setores estratégicos da economia, e os que queriam estendê-las, até originar um novo “modo de produção”, sobre a hegemonia estatal. Pois bem, este projeto absolutamente original de “transição democrática para o socialismo”, do governo da Unidade Popular foi interrompido pelo golpe militar do general Pinochet, com apoio decisivo dos EUA e do governo militar brasileiro.

Mas como previu Salvador Allende, no seu último discurso, “muito mais cedo do que tarde”, o Partido Socialista voltou ao governo do Chile, em 1989, aliado com os democrata-cristãos. Só que naquele momento, os comunistas chilenos haviam sido dizimados, e os socialistas já haviam aderido ao consenso neoliberal, hegemônico durante a década de 1990, e haviam deixado de lado os seus sonhos socialistas. Uma década depois, entretanto, no início do século XXI, a esquerda avançou muito mais e conquistou o governo de quase todos os países da América do Sul. E nesta hora, um grande numero de jovens das décadas de 1960 e 1970, que escutaram as últimas palavras de Allende, no Palacio de la Moneda, foram chamados a governar.

Por todo lado, em vários pontos da América do Sul, a esquerda voltou a discutir sobre o socialismo, o desenvolvimentismo, a igualdade e as novas estratégias de transformação social, para o século XXI. Mas depois de uma década, a esquerda latino-americana se deu conta que a palavra “socialismo’ hoje tem conotações absolutamente diferentes nas Montanhas Andinas, nas Grandes Metrópoles, nos pequenos povoados, ou nos vastos campos ocupados pelo sucesso exportador do agrobusiness; que o “desenvolvimentismo” se transformou num projeto anódino e tecnocrático, desprovido de qualquer horizonte utópico; que defender a “indústria” ou a “re-industrialização”, virou um lugar comum da imprensa, que pode significar qualquer coisa segundo o economista de turno; e o “reformismo social” foi dissolvido num conjunto de políticas e programas desconexos originários do Banco Mundial, mais preocupado com o seu “custo-efetividade” do que com a luta pela igualdade social.

Somando e subtraindo, hoje, exatamente quarenta e oito anos depois da morte de Salvador Allende, o balanço é muito claro e desafiador: a geração de esquerda dos anos 1960 e 1970 chegou em muitos países ao poder, mas já não tinha mais do seu lado a força do sonho e da utopia que levou Salvador Allende à resistência, ao silencio e à morte, naquela manhã violenta e inesquecível do dia 11 de setembro de 1973, na cidade nublada, fria e melancólica de Santiago do Chile.

José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marilia Pacheco Fiorillo Carla Teixeira José Micaelson Lacerda Morais Fernando Nogueira da Costa Eugênio Trivinho Rubens Pinto Lyra Marcus Ianoni Luiz Carlos Bresser-Pereira Everaldo de Oliveira Andrade Vinício Carrilho Martinez Yuri Martins-Fontes Alexandre de Lima Castro Tranjan Ronald Rocha Luiz Werneck Vianna Ricardo Fabbrini Luiz Roberto Alves Liszt Vieira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Samuel Kilsztajn Renato Dagnino Marjorie C. Marona Otaviano Helene Alysson Leandro Mascaro Antônio Sales Rios Neto Dênis de Moraes Fernão Pessoa Ramos Bernardo Ricupero Valerio Arcary Kátia Gerab Baggio Ricardo Abramovay Francisco de Oliveira Barros Júnior José Raimundo Trindade Jean Pierre Chauvin Paulo Sérgio Pinheiro Luciano Nascimento Daniel Brazil Matheus Silveira de Souza Luiz Marques Chico Alencar Mário Maestri José Dirceu Dennis Oliveira Andrés del Río Armando Boito Alexandre de Freitas Barbosa Airton Paschoa João Paulo Ayub Fonseca João Adolfo Hansen Tadeu Valadares Caio Bugiato Heraldo Campos Berenice Bento Alexandre Aragão de Albuquerque Leonardo Boff Francisco Pereira de Farias José Costa Júnior José Geraldo Couto Michel Goulart da Silva Flávio R. Kothe Manchetômetro Henry Burnett Sandra Bitencourt João Lanari Bo Milton Pinheiro Leda Maria Paulani Tarso Genro Ari Marcelo Solon Atilio A. Boron Rafael R. Ioris Priscila Figueiredo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Celso Favaretto Gerson Almeida Manuel Domingos Neto Valerio Arcary Marcos Silva Bruno Machado Sergio Amadeu da Silveira Tales Ab'Sáber Jean Marc Von Der Weid Marcelo Módolo Francisco Fernandes Ladeira Luis Felipe Miguel Claudio Katz José Machado Moita Neto Marcos Aurélio da Silva Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eugênio Bucci Gilberto Maringoni Ricardo Antunes Maria Rita Kehl Celso Frederico Mariarosaria Fabris Jorge Branco Daniel Afonso da Silva André Márcio Neves Soares Igor Felippe Santos Lucas Fiaschetti Estevez Eleutério F. S. Prado Leonardo Sacramento Ladislau Dowbor Flávio Aguiar Boaventura de Sousa Santos Walnice Nogueira Galvão Ronaldo Tadeu de Souza Vanderlei Tenório Luís Fernando Vitagliano Eliziário Andrade Marcelo Guimarães Lima Marilena Chauí Salem Nasser Luiz Bernardo Pericás Gilberto Lopes João Sette Whitaker Ferreira Afrânio Catani Paulo Capel Narvai Julian Rodrigues Remy José Fontana Antonio Martins Vladimir Safatle Slavoj Žižek Juarez Guimarães Fábio Konder Comparato Osvaldo Coggiola Ronald León Núñez Daniel Costa Annateresa Fabris Gabriel Cohn Rodrigo de Faria Paulo Martins Paulo Fernandes Silveira Antonino Infranca Eduardo Borges Ricardo Musse Érico Andrade Leonardo Avritzer Denilson Cordeiro José Luís Fiori Benicio Viero Schmidt Paulo Nogueira Batista Jr Bento Prado Jr. Carlos Tautz Thomas Piketty André Singer João Carlos Loebens Michael Löwy Luiz Eduardo Soares Chico Whitaker Elias Jabbour Henri Acselrad João Feres Júnior Lincoln Secco Jorge Luiz Souto Maior Andrew Korybko Luiz Renato Martins Eleonora Albano Anselm Jappe Lorenzo Vitral João Carlos Salles Michael Roberts

NOVAS PUBLICAÇÕES