Cinco fenômenos históricos

image_pdf

Por EMMANUEL TODD*

A verdadeira patologia do poder não está mais nos movimentos populares defensivos, mas nas elites desconectadas, cujo projeto delirante de uma Europa pós-nacional revela uma agressividade expansionista que espelha o pior do passado

Hitlerismo, Trumpismo, Netanyahuísmo, Le Penismo, Macronismo

As referências aos anos 1930 estão se multiplicando. A degeneração da democracia americana parece nos levar de volta à da República de Weimar alemã. Donald Trump, através de seu deleite com a violência e a mentira, através de seu exercício do mal, nos remete irresistivelmente a Hitler. Na Europa, a ascensão de movimentos categorizados como de extrema direita nos força a olhar para trás, para a nossa história.

No entanto, as sociedades ocidentais já não se parecem com o que eram nos anos 1930. Elas envelheceram, tornaram-se consumistas e orientadas para os serviços, as mulheres se emanciparam e o desenvolvimento pessoal substituiu a filiação partidária. Como isso se compara com as sociedades dos anos 1930: jovens, frugais, industriais, operárias, dominadas por homens, filiadas a partidos?

É essa distância sócio-histórica que me levou a considerar, a princípio, até agora, que o paralelo entre a “extrema-direita” do presente e a do passado era inválido. Mas as doutrinas políticas existem, hoje como ontem, e não podemos simplesmente postular a impossibilidade, por exemplo, de um nazismo de idosos, um franquismo de consumo, um fascismo de mulheres emancipadas ou um Croix-de-Feu LGBT.

Chegou a hora de comparar as doutrinas do nosso presente com as dos anos 1930. Aqui está um esboço do que poderia ser um estudo comparativo de cinco fenômenos históricos: Hitlerismo, Trumpismo, Netanyahuísmo, Le Penismo. Adicionarei brevemente o Macronismo no final. O extremismo centrista e pró-europeu que está levando a França ao caos nos obriga a examinar isso. Esse extremismo é realmente tão centrista?

Esta será uma abordagem impressionista, sem qualquer pretensão de exaustividade ou mesmo de coerência, cujo objetivo é abrir caminhos para o pensamento, não tirar conclusões. Estou exagerando traços e cores para colocar os conceitos em relação uns com os outros. Estou deliberadamente exagerando para alcançar ou mesmo antecipar a aceleração da história. Uma abordagem expressionista talvez seja uma metáfora mais apropriada.

Comecemos pela dimensão geral do racismo ou da xenofobia.

A rejeição de um “outro” definido como externo à comunidade nacional, com vários graus de intensidade, é comum ao Hitlerismo, ao Trumpismo e ao Le Penismo. No caso do Hitlerismo e do Trumpismo, é a noção de racismo, explícita ou implícita, que é comum. Os nazistas consideravam os judeus uma raça no sentido biológico. Os negros, alvos mal disfarçados do Partido Republicano trumpizado, também são definidos biologicamente.

O Le Penismo, por outro lado, só pode ser associado ao conceito de xenofobia. Árabes e muçulmanos são definidos por sua cultura. Uma das características da obsessão francesa com a imigração continua sendo sua fixação no Islã e sua incapacidade de visar os negros, cuja chegada em massa é, no entanto, o novo elemento no processo migratório. A taxa de casamentos mistos entre mulheres negras é muito alta na França, mas permanece insignificante nos Estados Unidos.

Uma característica comum dos “populismos” ocidentais é, obviamente, sua rejeição à imigração: o Reform UK, os Democratas da Suécia (Sverigedemokraterna), a AfD, Viktor Orbán na Hungria, o Lei e Justiça na Polônia, Giorgia Meloni na Itália, assim como Trump ou Le Pen, passam no teste deste denominador comum. Isso é suficiente para defini-los como de extrema-direita, da mesma forma que o nazismo e o fascismo eram de extrema-direita? Eu acho que não.

Há uma diferença crucial entre o populismo de hoje e a extrema direita hitlerista ou mussoliniana: o nazismo e o fascismo eram expansionistas, com o objetivo de projetar o poder do povo alemão (ariano) ou italiano (romano) para o exterior. Eram agressivos, nacionalistas e conquistadores. Apoiavam-se em partidos de massa. É difícil imaginar os populistas de hoje organizando desfiles ao estilo de Nuremberg. As festas de salame e vinho do RN (Rassemblement National, partido de Le Pen) são certamente antimuçulmanas, mas ainda menos impressionantes do que as cerimônias de guerra de Hitler. De Nuremberg a Hénin-Beaumont? Sério?

O único populismo ocidental que passaria no teste de expansionismo 100% hoje seria o de Benjamin Netanyahu. Assentamentos na Cisjordânia, genocídio em Gaza: estabelecer uma ligação entre Hitlerismo e Netanyahuísmo é inevitável.

A xenofobia francesa, britânica, sueca, finlandesa, polonesa, húngara e italiana, ao contrário do nazismo e do fascismo, é defensiva. Não estamos lidando com povos que querem conquistar, mas com povos que querem permanecer donos de suas próprias casas. É por isso que a dimensão cultural prevalece hoje na Europa sobre a noção racial e por que só podemos falar aqui de xenofobia.

Essa xenofobia é conservadora, enquanto o racismo de Hitler era revolucionário porque perturbava a ordem social. A noção de nacionalismo, portanto, não se aplica ao populismo europeu atual, nem a noção de extrema-direita, ou então teríamos que introduzir oximoros como “nacionalismo moderado” e “extrema direita moderada”. Prefiro falar de conservadorismo popular.

Pessoalmente a favor de uma imigração controlada, devo admitir a legitimidade dessa xenofobia porque aceito o axioma de que um grupo humano que carrega uma cultura, consciente de existir como comunidade, em suma, um povo, tem o direito de querer continuar a existir. Em termos concretos: um povo pode controlar suas fronteiras. O nazismo, com seus soldados estacionados do Atlântico ao Volga para escravizar ou exterminar outros povos, era algo completamente diferente.

O Trumpismo representa uma forma mista porque combina um elemento central defensivo e anti-imigração com um forte potencial de agressão ao mundo exterior. Não é expansionismo no sentido estrito do termo. É a expansão anterior do aparato militar americano e o papel do dólar na predação imperial que tornaram possíveis os atos violentos de Donald Trump contra outros povos e nações: Venezuela, Irã, nós, os povos submetidos da Europa Ocidental e, claro, os árabes, com os palestinos como alvo principal.

A integração gradual de Israel no Império, a partir de 1967, significa que em 2025 será quase impossível distinguir o Trumpismo do Netanyahuísmo. Mas Donald Trump, para além de suas palhaçadas dignas do Prêmio Nobel, é de fato o principal culpado pelo genocídio em Gaza através de seu incentivo de longa data à violência israelense: este simples fato coloca o Trumpismo ao lado do Hitlerismo. Donald Trump ainda está no comando: as acelerações e os freios americanos regulam a agressão genocida de Netanyahu.

Tenho sorte: enquanto escrevo, Donald Trump, assustado com a reação dos países árabes ao ataque israelense ao Catar e, em particular, com a aliança estratégica entre a Arábia Saudita e o Paquistão, está recuando. Ele ordena que Netanyahu peça desculpas pelo bombardeio do Catar, e Netanyahu obedece. Trump impõe um acordo com o Hamas a Israel, e Netanyahu assina. O que vem a seguir? Trump é um pervertido, impossível dizer.

O conceito de Trumpo-Netanyahuísmo, bastante feio, admito, permite-nos identificar a questão judaica como uma semelhança entre a crise americana dos anos 2000-2035 e a crise alemã dos anos 1920-1945.

Na minha opinião, a postura radicalmente pró-Israel do Trumpismo mascara um antissemitismo visceral e vicioso: a identificação de todos os judeus com o Netanyahuísmo, um fenômeno histórico verdadeiramente monstruoso e um câncer na história judaica, servirá apenas para renovar a concepção nazista de um povo judeu monstruoso. Estou falando aqui de antissemitismo 2.0.

Estou ciente de que poucos leitores concordarão comigo neste ponto. Mas estou apenas falando aqui como um profeta regular do Antigo Testamento. “Não fomos escolhidos para estar do lado dos poderosos. A história nunca deixa de nos armar essa armadilha”. Quantas vezes os judeus acreditaram estar salvos pelos fortes, pelos poderosos, pela autoridade, por um império, até mesmo designados pelo privilégio — sucesso financeiro e intelectual, importância no partido bolchevique — apenas para serem finalmente jogados aos lobos para povos furiosos…

Meu coração sangra quando vejo tantos judeus franceses, que hoje acreditam estar do lado vencedor, justificando as políticas de Netanyahu. Mas é de fato uma armadilha que se abre. Graças a Trump, o planeta inteiro está se tornando antissemita. Os judeus americanos, a maioria dos quais rejeita a linha de Netanyahu, são mais sábios e justos. Mas já, os judeus que são hostis a Netanyahu, acadêmicos ou não, são suspeitos pelas autoridades de serem antissemitas. A perversidade reina. O Trumpismo reina.

Quando a armadilha se fechará? Um dia, inevitavelmente, as nações cristãs farão as pazes com 1,6 bilhão de muçulmanos. Os judeus serão então abandonados por seus fãs e, agora sozinhos, jogados aos lobos de outros povos raivosos.

Terras prometidas se sucedem, desastres as seguem. O Cair da Noite (Nightfall), um conto antigo de Isaac Asimov, o grande autor americano de ficção científica, parece-me ser uma metáfora para a longa série de dramas que compõem a história judaica: dentro de uma civilização poderosa, um resquício de profecia anuncia uma catástrofe misteriosa… ela chega, surpreendente… a civilização desmorona… então, lentamente, ela renasce, floresce… um resquício de profecia anuncia uma catástrofe misteriosa… ela chega, surpreendente…

Na verdade, o mero retorno da obsessão judaica ao coração do Ocidente valida a hipótese de uma continuidade ameaçadora entre o passado e o presente.

Protestantismo zumbi e nazismo, protestantismo zero e trumpismo.

O contexto religioso da ascensão do nazismo, igualmente importante, é menos familiar: entre 1870 e 1930, a fé protestante desapareceu na Alemanha, primeiro entre a classe trabalhadora, depois entre as classes média e alta. As regiões católicas resistiram. Em 1932 e 1933, o mapa de votação nazista espelhava assim o do luteranismo com uma precisão fascinante.

O protestantismo não acreditava na igualdade dos homens. Havia os eleitos, designados como tal pelo Senhor antes mesmo de seu nascimento, e os condenados. Uma vez que a crença metafísica protestante desapareceu, o que restou foi a histeria causada pelo medo do vazio deixado por seu conteúdo desigual, com judeus, eslavos e tantos outros como os condenados. Nos Estados Unidos, o protestantismo de origem calvinista visava os negros. O povo calvinista, fixado na Bíblia, identificava-se com os hebreus, o que limitou o antissemitismo americano nos anos 1930 e protegeu os judeus. Bem, protegeu-os até o surgimento recente da fixação evangélica no Estado de Israel.

Na França católica (particularmente na Bacia de Paris e na costa do Mediterrâneo), o colapso da fé e da prática religiosa a partir de 1730 transformou a igualdade de oportunidades de acesso ao paraíso (obtida através do batismo, que lava o pecado original) em igualdade entre os cidadãos e na emancipação dos judeus. A ideia republicana do homem universal substituiu a do cristão católico universal (katholikos significa universal em grego). Este foi um programa muito diferente do nazismo, mas representou, muito antes do nazismo, a primeira substituição massiva de uma religião por uma ideologia.

Na França revolucionária, como na Alemanha nazista, no entanto, o potencial de orientação social e moral fornecido pela religião havia sobrevivido à crença: os indivíduos permaneciam membros de sua nação e de sua classe, mantendo uma ética de trabalho e um senso de obrigação para com os membros de seu grupo. A capacidade de ação coletiva era forte, talvez dez vezes maior. É isso que eu chamo de estágio zumbi da religião. O nazismo correspondia a este estágio zumbi, daí, infelizmente, sua eficácia econômica e militar.

Encontramos o protestantismo no Trumpismo. Encontramos então a desigualdade associada à negrofobia. No entanto, não estamos mais no estágio zumbi da religião, mas em seu estágio zero. A moralidade comum desapareceu. A eficiência social desapareceu. O indivíduo flutua, particularmente nesta América de estrutura familiar nuclear absoluta, individualista e sem regras de herança bem definidas.

Devemos, portanto, esperar algo mais da ideologia trumpista: desigualdade como sempre, mas menos estabilidade no delírio, oscilações brutais que não se originam fundamentalmente no cérebro de um presidente vulgar e vicioso, mas na própria sociedade. Felizmente para nós, a capacidade de ação coletiva, econômica e militar, está muito diminuída.

No caso do Trumpismo, devemos notar o surgimento de formas niilistas pseudo-religiosas que incluem uma reinterpretação obscena da Bíblia, como a glorificação dos ricos. Significativamente mais fraco que o nazismo em termos de racismo, o Trumpismo vai mais longe em sua imoralidade econômica.

O nazismo era simples e explicitamente anticristão. O Trumpismo afirma ser religioso, mas à maneira de um culto satânico, através da inversão de valores. O mal é o bem, a injustiça é a justiça. Hitler era apenas o Führer, o guia do povo alemão para o seu martírio; Donald Trump não é Satanás, mas suspeito que para seus fãs satanistas, seu boné vermelho é o do Anticristo.

Na França

No caso do Le Penismo, não há herança protestante desigual. Este é o verdadeiro mistério do Rassemblement National: xenófobo, nasceu em território católico. Pior ainda, seus primeiros redutos, na costa do Mediterrâneo e na bacia de Paris, foram os da Revolução: igualitários em termos de vida familiar e descristianizados desde o século XVIII. Então? O Rassemblement National é desigual? Igualitário?

Um mistério para nós, o Rassemblement National é provavelmente também um mistério para si mesmo. Sua rejeição ao outro decorre de um igualitarismo perverso que exige a rápida assimilação dos imigrantes em vez de percebê-los como fundamentalmente diferentes. Acima de tudo, o Rassemblement National, fortemente determinado por sua rejeição aos imigrantes e até mesmo a seus filhos, é constantemente lembrado da tradição igualitária francesa porque seus eleitores odeiam os ultrarricos, os poderosos, em suma, nossas elites estúpidas, e não apenas os imigrantes.

É por isso que a união das direitas está lutando para ter sucesso na França. De uma forma ou de outra, a união dos oligarcas e do povo (branco) contra os estrangeiros não apresenta problemas nos Estados Unidos, no Reino Unido ou na Escandinávia, onde as forças populares conservadoras e as forças clássicas de direita concordam facilmente. Na França, a coalizão dos ricos e dos pobres contra os estrangeiros é elusiva.

No entanto, não devemos subestimar a violência potencial de uma forma universalista de xenofobia. Ela pode facilmente se transformar em racismo. Se um homem acredita a priori que todos os homens são iguais em todos os lugares e se depara com homens que têm costumes diferentes, ele pode muito bem concluir que eles não são homens.

O Rassemblement National é o produto do catolicismo zero, assim como a Revolução foi o produto do catolicismo zumbi. É por isso que ele não dará origem a nenhum projeto coletivo. Deixarei um exame detalhado do Rassemblement National e sua relação com o futuro para um texto futuro, nem impressionista nem expressionista, que dedicarei inteiramente à lógica interna e à dinâmica do caos francês.

Psiquiatria das classes médias altas

Chego agora a uma diferença crucial, que deveria ser óbvia para todos e apontada pelos comentaristas políticos que constantemente nos remetem a 1930 com seu vocabulário. Compreender a dimensão religiosa, ou pós-religiosa, do Hitlerismo, do Trumpismo ou do Le Penismo pressupunha um conhecimento histórico que não se pode esperar dos comentaristas políticos na televisão. Por outro lado, podemos esperar que eles sejam capazes de situar socialmente as ideologias do passado e do presente, que eles implacavelmente agrupam sob o termo “extrema-direita”. A diferença entre o passado e o presente é muito clara aqui.

O nazismo e os movimentos de extrema direita do pré-guerra encontraram seu epicentro social nas classes médias, particularmente nas classes médias altas, que se sentiam ameaçadas pelos movimentos operários, social-democratas e comunistas. Essas classes médias eram febris, ocupadas em trancafiar suas mulheres e perseguir homossexuais.

Hoje, pelo contrário, os chamados movimentos de extrema direita encontram seu epicentro nos círculos da classe trabalhadora, particularmente em um mundo do trabalho empobrecido, abalado ou destruído pela globalização econômica e ameaçado pela imigração. As classes médias de hoje, em grande parte definidas pelo ensino superior, são menos ou mesmo pouco afetadas pela “extrema-direita”. As classes médias altas, que combinam ensino superior e altos rendimentos, são particularmente imunes.

É por isso que prefiro falar de conservadorismo popular em vez de extrema direita. Suas raízes no grupo dominado explicam a natureza defensiva do conservadorismo popular. Seus eleitores não conseguem imaginar conquistar a Europa ou o mundo se veem suas próprias vidas como uma questão de sobrevivência.

O verdadeiro erro intelectual seria parar por aí. Continuemos a avançar, até mesmo invertendo o problema da associação entre ideologia e classe. Comparamos as ideologias do presente com as do passado; agora comparemos as classes do presente com as do passado.

Algumas classes médias europeias entre as guerras enlouqueceram. A classe trabalhadora era mais razoável. Mas as classes médias de hoje, particularmente as classes médias altas, são razoáveis? Elas são pacíficas? Quais são seus sonhos?

Elas são loucas. A construção de uma Europa pós-nacional é um projeto delirante quando se considera a diversidade do continente. Levou à expansão da União Europeia, remendada e instável, para o antigo espaço soviético. A União Europeia agora é russofóbica e belicista, com sua agressão renovada por sua derrota econômica para a Rússia. A União Europeia está tentando arrastar os povos britânico, francês, alemão e muitos outros para uma guerra real. Mas que guerra estranha seria essa, na qual as elites ocidentais adotaram o sonho de Hitler de destruir a Rússia!

A comparação por classe social, portanto, nos permite fazer um grande avanço intelectual. O europeísmo, e, portanto, o Macronismo, caem, por sua agressividade externa, do lado do nacionalismo, do lado da extrema-direita do pré-guerra. Se somarmos a isso as violações cada vez mais massivas e sistemáticas da liberdade de informação e do sufrágio popular dentro da União Europeia, nos aproximamos ainda mais da noção de extrema direita. Fundada como uma associação de democracias liberais, a Europa está se transformando em um espaço de extrema direita. Sim, a comparação com os anos 1930 é útil, até mesmo indispensável.

No grandioso projeto europeísta, encontramos uma dimensão psicopatológica já observável no Hitlerismo: a paranoia. A paranoia europeísta se concentra na Rússia. A paranoia nazista tornou a ameaça judaica uma prioridade, sem, no entanto, negligenciar o bolchevismo russo (conhecido como judeo-bolchevismo).

Hoje, como ontem, podemos, portanto, analisar a psicopatologia das classes dominantes da Europa. A bizarra sequência de eventos que começou com a eleição de Donald Trump, com o desejo do presidente instável de conversar com Vladimir Putin, nos permitiu acompanhar ao vivo como nossos próprios líderes perderam o contato com a realidade. Vamos resumir nosso processo delirante. Começou por volta de 2014, antes, durante e depois de Maidan, o golpe de estado que desintegrou a Ucrânia, controlado remotamente por estrategistas americanos e alemães.

A sequência agora:

(2014-2022) — Vamos provocar a Rússia, que havia avisado que não toleraria a anexação da Ucrânia pela União Europeia e pela OTAN.

Feito. Putin invadiu a Ucrânia.

(2022-2025) — Vamos perder a guerra econômica que resultou para nós.

Está feito. Nossas sociedades estão implodindo.

(2022-2025) — Vamos perder a guerra propriamente dita, travada em nosso nome pelo regime de Kiev.

Está em andamento.

A mudança dos governos europeus para uma realidade paralela começa em 2025.

— Tiremos de nossa derrota a ideia de que podemos finalmente impor nossa vontade e instalar nossas tropas na Ucrânia, para anexar o que resta dela à UE. Mas como não pensar em Hitler trancado em seu bunker em 1945, dando ordens a exércitos que não existem mais?

Hoje na Europa, estamos lidando com loucos, ou melhor, com uma loucura coletiva que tomou conta em massa de indivíduos das classes sociais dominantes. Só na França, milhares de jornalistas, políticos, acadêmicos, líderes empresariais e altos funcionários públicos estão participando da alucinação coletiva de uma Rússia que quereria conquistar a Europa (paranoia). Nenhum indivíduo pode ser responsabilizado pessoalmente. Estamos lidando com uma dinâmica psicológica coletiva.

Estou convencido de que o encolhimento do indivíduo nascido do estado zero da religião explica o surgimento desses cardumes de peixes russofóbicos.

Como expliquei em Les Luttes de classes en France au XXIème siècle (As Lutas de Classes na França no Século XXI), o desaparecimento das crenças coletivas — crenças religiosas e depois crenças ideológicas do estado religioso zumbi — levou a um colapso do superego humano.

Ao contrário dos ativistas pela libertação do ego, não defino o superego como única ou mesmo primariamente repressivo. O superego, como ideal do ego, ancora valores morais e sociais positivos na pessoa. As noções de honra, coragem, justiça e honestidade encontram sua origem e força no superego. Se ele enfraquece, elas enfraquecem. Se ele desaparece, elas desaparecem. No final, portanto, a humanidade não foi libertada pelo fim da religião e das ideologias, mas sim diminuída. São homens e mulheres altamente instruídos, moral e intelectualmente atrofiados pela ausência de religião, que são, em massa, portadores da patologia russofóbica.

Os antissemitas nazistas tinham uma constituição psicológica completamente diferente. A morte de Deus, para citar Nietzsche, certamente os lançou em uma busca por um Führer, mas eles dificilmente careciam de superego e permaneciam capazes de ação coletiva. O desempenho trágico do exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial testemunha isso. Quem hoje ousaria imaginar nossas classes médias altas correndo para a morte, à frente de seus povos, em direção a Kiev e Kharkov? Nossa guerra na Ucrânia é uma piada, um produto da emancipação do eu, a prole do desenvolvimento pessoal. Apenas ucranianos e russos morrerão.

A menos que…

Trocas termonucleares podem dispensar heróis.

*Emmanuel Todd é historiador e antropólogo. Pesquisador do Instituto Nacional de Estudos Demográficos francês. Autor, entre outros livros, de Após o império: ensaio sobre a decomposição do sistema americano (Edições 70). [https://amzn.to/4jUbJfs]

Tradução: Ricardo Kobayaski.

Publicado originalmente em Emmanuel Todd Substack.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
Lô Borges
07 Nov 2025 Por TALES AB’SÁBER: Lô Borges ensinou que o sagrado na arte não se revela na repetição vazia, mas no encontro único que atravessa o sujeito e transforma a escuta em uma experiência de vida irreprodutível
2
O conivente silêncio sobre o agronegócio
11 Nov 2025 Por MIGUEL ENRIQUE STÉDILE: A ostentação de uma riqueza que devasta e empobrece depende, sobretudo, do pacto silencioso que a sustenta e a absolve
3
O jantar da CONIB
11 Nov 2025 Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: O manto de uma solenidade comunitária pode esconder a farsa perigosa que une o supremacismo de um Estado estrangeiro ao projeto autoritário da extrema direita local
4
Outros atos e maneiras de escrever
09 Nov 2025 Por AFRÂNIO CATANI: O ato de escrever é indissociável da vida concreta, da disciplina, das limitações e das ferramentas utilizadas, transformando a experiência em forma, seja ela uma resistência política ou uma cura pessoal
5
COP 30 – sucesso ou fracasso?
07 Nov 2025 Por LISZT VIEIRAl é capaz de impor uma transição justa à inércia catastrófica do business-as-usual
6
O que os coaches não te contam sobre o futuro do trabalho
12 Nov 2025 Por CARLOS JULIANO BARROS & LEONARDO SAKAMOTO: Introdução dos autores ao livro recém-lançado
7
O agente secreto
13 Nov 2025 Por GUILHERME COLOMBARA ROSSATTO: Comentário sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
8
Zohan Mamdani escolhe a tradição de Eugene Debbs
13 Nov 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: A vitória de Zohan Mamdani em Nova York revive a esperança de Richard Rorty em uma "Nova Velha Esquerda", que une as lutas de minorias e trabalhadores na tradição socialista e democrática de Eugene Debbs e Luther King
9
João Carlos Salles, coragem e serenidade
12 Nov 2025 Por EMILIANO JOSÉ: Coragem e serenidade em meio à procela: a liderança de João Carlos Salles se agigantou no claro-escuro da crise política, transformando-se na voz firme da resistência acadêmica ao regime dos ataques
10
Zohran Mamdani – a virada que desafia o império
11 Nov 2025 Por MANUELA D’ÁVILA & ORLANDO SILVA: No coração do império, a política do cuidado e do dissenso vital devolve uma palavra proscrita ao vocabulário do possível: o comum
11
Da China, com inveja
14 Nov 2025 Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.: O despertar chinês ensina que a verdadeira soberania nasce de um projeto próprio: rejeitar receitas alheias para construir, com pragmatismo e orgulho civilizatório, um palco onde o Estado conduz e os agentes atuam
12
Não aos “intervalos bíblicos”
13 Nov 2025 Por MARCO MONDAINI: O avanço dos projetos de lei confessionais faz soar o alarme contra a perda da separação entre política e religião, ameaçando os fundamentos estruturantes da escola pública, como a cientificidade e a pluralidade
13
Álvaro Vieira Pinto
14 Nov 2025 Por GABRIEL LUIZ CAMPOS DALPIAZ & KAUE BARBOSA OLIVEIRA LOPES: O polímata Álvaro Vieira Pinto uniu a dialética platônico-hegeliana e o marxismo para conceber o subdesenvolvimento como um problema a ser superado pela industrialização e a razão científica
14
Quem quer a paz mundial de verdade?
11 Nov 2025 Por FRANCISCO FOOT HARDMAN: Desafios para uma multipolaridade na Amazônia e o papel de uma cooperação socioambiental efetiva Brasil-China
15
Contra o fiscalismo e o quietismo
12 Nov 2025 Por VALERIO ARCARY: A verdadeira coragem política reside em navegar a tensão necessária: usar a frente ampla como trincheira tática sem nela se aprisionar, mantendo a estratégia de transformação antineoliberal como bússola
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES