Classe em farrapos

Juliano Schnabel, Humanidade dorme, 1982
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Por LISANDRO BRAGA*

“Apresentação” do autor, à nova edição do livro sobre o lumpemproletariado

“Entre 1990 e 1998 sucessivas ondas desindustrializadoras atingiram a região do conurbano bonaerense como resultado das privatizações e outras regularizações neoliberais. Consequentemente, ocorreu um acelerado processo de expulsão do mercado de trabalho acompanhado de uma maior instabilidade no emprego. Vale lembrar que boa parte dos sindicatos argentinos foram cooptados e aceitaram prontamente esse conjunto de reformas e ajustes neoliberais.

Dessa maneira, parcela significativa dos operários do conurbano passou a se sentirem completamente desorientados politicamente. No entanto, as consequências políticas e sociais para as instituições burocráticas e clientelistas do Partido Justicialista também foram enormes, assim como o debilitamento do peronismo perante as classes sociais inferiores.

Diante da ausência de respostas efetivas do poder público e das suas instituições para os problemas sociais que afetavam o lumpemproletariado da região, emergiram organizações populares nos bairros que passaram a se organizar por fora das estruturas burocráticas, tais como partidos políticos e sindicatos. É nesse contexto que emerge as organizações de desempregados e um novo modelo de militância territorial na região do conurbano. Portanto, entre 1990 e 1995 alguns bairros começaram a se organizar para reclamar das tarifas dos serviços públicos privatizados. Em 1995 surge a primeira comissão de desempregados no município de La Matanza, porém somente em 1996 inicia as primeiras manifestações exigindo auxílio à alimentação.

Tais manifestações ocorrem em maio de 1996 quando vários vizinhos dos bairros María Elena e Villa Unión realizam uma manifestação na Praça São Justo com uma importante participação feminina. Logo em seguida, no dia 06 de setembro de 1996 se realiza uma importante “Marcha contra a fome, a repressão e o desemprego” até a Praça de Maio, que reuniu aproximadamente duas mil pessoas. A marcha foi um pontapé inicial para a emergência de diversas organizações de desempregados em vários municípios do conurbano (SVAMPA & PEREYRA, 2009).

La Matanza é um município vizinho à capital da República, com aproximadamente 1.500.000 habitantes, população que supera de longe à de 18 das 23 províncias argentinas (ISMAN, 2004). Trata-se de um enorme aglomerado urbano com grande quantidade da população vivendo abaixo da linha da pobreza. Segundo o Jornal Clarin de 22 de outubro de 2001: “La Matanza é um dos maiores e mais difíceis municípios do conurbano bonaerense: calcula-se que o 50% de seu um milhão e meio de habitantes vive abaixo da linha da pobreza e que o índice de desemprego chega a 30%. Viver, nesse contexto, se torna mais complicado a cada dia. As pessoas não têm dinheiro, não tem teto seguro, não tem comida, não tem roupa, não tem remédios. E não tem esperança”.

As condições de deterioração pelas quais vem sofrendo o município de La Matanza se inicia em 1976 com o golpe militar e vêm se ampliando continuamente até atingir sua fase mais acentuada durante o período menemista (1989-1999). As ocupações ilegais de terra na região do Conurbano Bonaerense são reveladoras do processo de pauperização social que atinge a região desde o período da última ditadura burguesa.

Durante o período marcado pela substituição de importações, o setor fabril carregava consigo o restante das atividades econômicas em termos de produção e gerava diversos postos de trabalho, porém nos anos noventa o coeficiente de empregabilidade se encontrava na ordem de -3,7% e demonstrava que o setor industrial foi o grande responsável pela expulsão da mão-de-obra na região, isto é, pelo processo de lumpemproletarização (BASUALDO, 2002; BARRERA & LÓPEZ, 2010; VIANA, 2009). Nesse contexto, La Matanza deixou de ser um dos grandes pólos industriais do conurbano para se converter numa região intensamente lumpemproletarizada. E essa realidade não era exclusividade desse município, pois diversas outras regiões do país também passaram a experimentar um intenso processo de lumpemproletarização.

De acordo com uma nota de Ismael Bermudez, contida no jornal Clarin de 19 de setembro de 2001, exemplifica a situação geral do Conurbano Bonaerense: “O desemprego cresceu quatro vezes mais (subiu de 5,7% para 22,9%) e entre os chefes de família se multiplicou por cinco (de 3,3% a 17,2%). Como resultado direto dessa situação, nesses municípios quase 40% das residências é formada por pessoas que recebe apenas 20% da renda da região. Isso explica a razão pela qual a pobreza atinge quase 50% da população, o que significa que seus habitantes ou famílias da região não possuem renda suficiente para custear as compras dos bens e serviços básicos”.

Contra essa situação de desemprego, condições de vida precária e inexistência de serviços públicos básicos de qualidade (creches, escolas, postos de saúde, moradia, asfalto, rede de esgotos etc.), ou seja, por conta desse completo quadro de abandono gerado pelo descaso dos poderes públicos (municipal, estadual e federal) é que nascem, na região de La Matanza, diversas organizações de bairros, que darão início a uma onda de protestos sociais, resultando em 1995 nas primeiras tentativas de organização do lumpemproletariado na região. É nesse contexto que emerge as organizações essencialmente lumpemproletárias e uma nova forma de militância territorial na região do conurbano.

O que vem ocorrendo na Argentina da década de 1990 é parte do já vinha acontecendo em quase toda a sociedade moderna a partir da década de 1980, isto é, a sociedade moderna passa a sofrer importantes transformações nas suas formas de valorização do capital (toyotismo), assim como nas suas formas de regularização das relações sociais garantidoras do mesmo. A principal forma regularizadora dessas relações consiste no Estado neoliberal.

Esse emerge com o objetivo de proporcionar melhores condições para a acumulação capitalista através da regularização neoliberal do mercado, do “afastamento” do Estado das obrigações sociais (saúde, educação, segurança, emprego etc.) e de sua transferência para a iniciativa privada via privatização dessas obrigações e de alguns setores estratégicos antes sob o controle estatal (energia, água, gás, petróleo, transportes coletivos, telefonia etc.).

Juntamente com a emergência de um movimento essencialmente lumpemproletário, que passou a construir estratégias de enfrentamento ao processo de lumpemproletarização e empobrecimento generalizado, e que dificultaram a expansão das conquistas necessárias à acumulação integral, emergiu também a face mais autoritária e repressiva do Estado neoliberal que, juntamente com o capital comunicacional (empresas capitalistas de comunicação), transformaram a luta pelos direitos sociais em delitos contra a ordem e os manifestantes como delinquentes dignos de serem aprisionados ou quando não executados sumariamente pelo Estado penal, como ocorreu nos diversos casos de “gatilho fácil”” (BRAGA, 2024, p. 187-192).

*Lisandro Braga é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Referência


Lisandro Braga. Classe em farrapos: acumulação integral e expansão do lumpemproletariado. 2ª. edição. Goiânia, Ragnatela, 2024. 290 págs. [https://amzn.to/4gTbVdM]


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