Por VALTER POMAR*
O PT enfrenta uma encruzilhada, e seu futuro depende da capacidade de reação de sua base militante contra a acomodação e em defesa de um projeto transformador
1.
Milito no PT desde 1982, sou filiado desde 1985, já participei de muitas instâncias e assumi muitas tarefas (vice-presidente nacional, secretário de Relações Internacionais etc.), fui candidato à presidência nacional do partido em 2005, em 2007, em 2013 e em 2019. Já vi e vivi de tudo nesses mais de quarenta anos, mas não me lembro de uma situação tão grave como a atual, ao menos no que diz respeito ao contraste entre as urgências e necessidades do momento histórico, de um lado, e a morosidade e mediocridade de certas escolhas, de outro lado.
Embora cada militante e cada tendência experimente, interprete e fale publicamente desta situação de maneira distinta, a verdade é que parte importante está reagindo a isso com pessimismo, gerando um círculo vicioso que se não for detido projeta desacúmulo de forças.
Minha impressão é que parte do pessimismo é devido à implacável biologia e seus melancólicos desdobramentos. Isso afeta especialmente a geração que construiu o Partido dos Trabalhadores e que exala crescentes dúvidas sobre o que virá depois. Mas afeta também os integrantes de outras gerações, que também têm crescentes dúvidas sobre o que acontecerá quando certos integrantes da geração fundadora não estiverem mais presentes.
Outra parte do pessimismo deve-se aos efeitos colaterais do nosso muito relativo sucesso. O sucesso pode ser exemplificado por uma comparação: em 1967, aos 45 anos da fundação, todas as variantes do Partido Comunista estavam na ilegalidade, combatendo nas trevas. Já o PT completou seus 45 anos em 2025, na legalidade e ocupando inúmeros cargos e mandatos, a começar pela Presidência da República.
A relatividade do nosso sucesso pode ser constatada quando lembramos que, 45 anos depois da fundação do PT, seguem pendentes todas as reformas estruturais sem as quais o Brasil não conseguirá superar a dependência, a desigualdade, a “democracia” aristocrática e o subdesenvolvimento que caracterizam nosso país há séculos. Quanto aos efeitos colaterais, podem ser assim resumidos: grande parte da classe trabalhadora segue superexplorada, mas um pequeno pedaço do Partido ocupa espaços na institucionalidade, a partir daí controla parcela importante das direções e nelas vai empurrando o Partido a assumir crescentes compromissos com o chamado “sistema”.
Caso este crescente compromisso com o sistema coincidisse com um momento exitoso do capitalismo, o horizonte pareceria mais venturoso. Mas o que está em curso é uma imensa crise sistêmica, um ambiente marcado por catástrofe climática, pandemias, ultraliberalismo, neocolonialismo, imperialismo, guerras e genocídio, ameaças nucleares, neofascismo, fundamentalismos, racismo, machismo, lgbtfobia, preconceitos e violências de todo tipo e sabor, sem falar da ameaça existencial que a inteligência artificial e a robotização lançam sobre toda a classe trabalhadora.
2.
Frente a esta situação e norteado pelo compromisso com o sistema, um setor do PT entrou no “modo direção defensiva”, temendo a polarização, adotando como leitmotiv “combater o neofascismo” e “esquecendo” o papel da direita tradicional, do neoliberalismo, do capital financeiro, do agronegócio e das mineradoras no que está ocorrendo. Este “esquecimento” explica, em parte, porque o “modo direção defensiva” não está produzindo muitos efeitos positivos: um progresso efetivo dependeria de enfrentarmos as frações dirigentes do Capital.
Ganhamos quatro eleições presidenciais seguidas, implementamos políticas públicas importantes, mas não conseguimos derrotar os golpes de 2016 (impeachment de Dilma Rousseff) e 2018 (condenação, prisão e interdição eleitoral de Lula). Depois conseguimos voltar à presidência em aliança com parte dos golpistas, mas após quase trinta meses implementando políticas públicas igualmente importantes, seguimos fortemente constrangidos pelos neoliberais, ameaçados pelo neofascistas e muito longe de fazer as famosas reformas estruturais.
Parte da esquerda brasileira sabe que, mantida esta toada, corremos alto risco de termos “um grande passado pela frente”. Mas na cúpula do PT, mesmo entre os que percebem o risco, a maioria parece não acreditar que seja possível fazer algo muito diferente do que já vem sendo feito. Os da “maioria” colocam a culpa na correlação de forças, parte da “minoria” culpa a chamada direita do PT, os que não são petistas geralmente culpam todo o PT, mas o efeito prático é mais ou menos o mesmo, podendo ser resumido na seguinte história: fizemos campanha em 2022 em favor de um programa que falava de reconstrução e transformação, mas ao tomarmos posse em 2023 dissemos que nosso governo era de união e reconstrução.
Se o PT fosse um micropartido, seria relativamente simples escapar desta situação. Mas o PT é um influente partido de massas. A nossa “luta interna” reflete de forma mediada as grandes disputas que estão em curso dentro da própria classe trabalhadora brasileira. E os desdobramentos da nossa “luta interna” impactam o curso dos acontecimentos no Brasil e no mundo. E como para nós inexiste a alternativa “deixar de disputar os rumos da classe trabalhadora”, é imperioso disputar os rumos do Partido dos Trabalhadores. Aliás, isso é reconhecido pelas organizações que romperam conosco nas últimas décadas: na prática, todas gravitam em torno do PT.
3.
Em tese, a disputa “interna” do PT seria mais fácil de fazer se houvesse uma grande onda de lutas sociais, que empurrasse o Partido para a esquerda. Como a classe trabalhadora é muito grande e diversa, uma onda assim pode acontecer. Mas como o PT reúne parte importante dos lutadores do povo, é pouco provável que ocorram grandes lutas sem que o PT se engaje fortemente e desde o início, o que por sua vez pressuporia uma mudança na linha do Partido. Existe, é claro, o cenário em que a iniciativa ou a direção de lutas vindouras caibam a setores antipetistas, mas neste caso o resultado pode não ser empurrar o PT para a esquerda.
Por estes e por outros motivos, ao menos nos últimos anos a “luta interna” ao Partido dos Trabalhadores vem sendo menos influenciada pela ação independente dos de baixo e mais influenciada pelos ataques cometidos pelos de cima, assim como por seus reflexos nas dinâmicas internas ao próprio Partido. Sendo este o contexto, quais as chances de a atual “luta interna no PT” resultar na vitória de posições mais à esquerda, ou seja, mais comprometidas com o socialismo, com as reformas estruturais, com a superação do modelo primário-exportador, com a derrota do agronegócio e do capital financeiro, do neoliberalismo e do neofascismo, do oligopólio que controla a comunicação de massas, da direita que dirige os aparatos de Defesa e Segurança Pública? Quais as chances de prevalecerem posições engajadas na reconstrução de um partido militante e que apostem no papel estratégico da mobilização social?
É preciso reconhecer que estas chances são pequenas. E isso acontece não apenas devido à influência política dos setores moderados e aos erros da chamada esquerda petista, mas também devido aos métodos atualmente utilizados para constituir maioria dentro do PT. A saber: uso da máquina, abuso de poder econômico, fraude explícita e voto de cabresto. Dados de realidade que, como já explicamos, levaram vários setores da chamada esquerda do PT a adotar o slogan “já que não podemos derrotar, vamos nos unir a eles”.
Vale dizer que a atitude derivada deste slogan é o suicídio. Afinal, mesmo quando a derrota é inevitável, algumas batalhas precisam ser travadas por quem se pretende de esquerda. Mas no caso do PT, apesar de pequenas, as chances de vitória da esquerda-que-merece-o-nome existem.
Essas chances derivam em parte de uma razão estrutural: a natureza do capitalismo brasileiro e da classe dominante. A brutal exploração e opressão que existem em nosso país colocam limites à integração social-democrata da esquerda. Um bom exemplo disto é o golpe dado contra o governo de Dilma Rousseff.
Outro é o fato de a tendência atualmente majoritária ter tantas vantagens a seu favor e, mesmo assim, não possuir maioria absoluta no Diretório Nacional do Partido. A rigor, a tal “tendência majoritária” só se torna efetiva maioria quando consegue cooptar outros setores do Partido, o que é péssimo do ponto de vista político, mas pelo menos gera maravilhas literárias: afinal, só o “irrealismo” fantástico conseguiria explicar que tendências da chamada esquerda petista e autodenominadas “socialistas” apoiem um candidato à presidência do PT cujo manifesto não cita uma única vez, nem mesmo para constar, a palavra “socialismo”.
Seja como for, as razões estruturais citadas fazem com que siga existindo, na base do PT, uma grande quantidade de militantes que seguem orientados pelas razões que levaram à fundação do nosso partido. Em boa medida depende destas pessoas, que chamamos pelo coletivo “Nação Petista”, o que vai acontecer em 6 de julho de 2025.
Se a nação petista permanecer passiva, ainda que insatisfeita com o rumo das coisas, a CNB triunfará mais uma vez, mesmo que seja a última. Mas se a nação petista se movimentar, a esquerda pode vencer as eleições internas, compondo maioria no Diretório Nacional e elegendo no segundo turno um presidente. Portanto, embora sejam pequenas, as chances de vitória da esquerda existem e dependem, no limite, da mobilização da nação petista, ou seja, das centenas de milhares de filiados e filiadas que se afastaram do cotidiano da vida partidária, que atualmente não manifestam vontade de comparecer para votar, mas que se forem convencidos podem alterar a correlação de forças interna.
Mas este petismo raiz, que nos salvou inúmeras vezes – por exemplo no PED de 2005, no segundo turno de 2014 e na campanha Lula Livre – só vai agir se achar que realmente vale a pena. Alguns entendem este “valer a pena” de maneira estritamente imediata e eleitoral; por isso, tentaram sem êxito unificar toda a esquerda desde o primeiro turno das eleições partidárias, na crença de que assim fazendo passariam a impressão de que as chances de vitória seriam maiores.
Outros, a exemplo de nós, entendem “valer a pena” de um ponto de vista imediato e eleitoral, mas também de um ponto de vista histórico e político. Trata-se, portanto, de chamar a militância a travar o bom combate, pelas causas justas e belas. O que inclui apresentar um diagnóstico correto da situação, uma alternativa política à altura da situação e uma trajetória coerente com o discurso. E sempre dizer a verdade: o resultado das eleições petistas está em aberto, mas as chances de vitória dependem da nossa mobilização.
4.
Nesse espírito, temos chamado a atenção para o tamanho da crise mundial e seus impactos na vida nacional; para a urgência de mudar os rumos do partido e do governo, em particular a política econômica; temos alertado que, sem mudança de rumos, são grandes os riscos de um derrota em 2026 ou de uma vitória de Pirro, ou seja, em piores condições do que as vigentes em 2022; temos destacado que a mudança inclui reafirmar o socialismo como objetivo estratégico do PT, retomando a estratégia democrática e popular; temos denunciado a tutela das nossas instâncias partidárias por parte de quem ocupa mandatos, mandatos que precisam ser dirigidos por quem efetivamente os conquistou: o Partido.
E por tudo isso defendemos reconstruir nossa organização militante e investir nossas energias na organização e mobilização social. Desafios e tarefas imensas, mas que precisam ser enfrentadas e com urgência, se queremos de verdade que “valha a pena”.
Uma última nota: embora a situação do PT seja muito grave, embora compreenda os motivos do pessimismo que afeta a alma de tanta gente boa, a verdade é que não podemos nos deixar arrastar pela angústia, pelo desânimo e pelo desalento. Isto por vários dos motivos, entre os quais um muito simples: o capitalismo não vai acabar suavemente, mas sim em meio a sangue, suor e lágrimas. É verdade que este curso das coisas envolve inúmeros perigos.
Mas dada a gravidade da situação, a alternativa real é lutar ou perecer. É apenas no enfrentamento da crise, em meio à crise, correndo enormes riscos que podemos acabar com o capitalismo. O PT pode jogar um papel muito importante nesse sentido, se entender que em tempos de crise e guerra, a esperança só pode ser vermelha.
Isto posto, segue o anteriormente prometido estado da arte da eleição interna do PT, tal como estava no dia em que este artigo foi entregue para publicação (5 de maio). A eleição ocorrerá no dia 6 de julho de 2025. Até o final de maio podem ocorrer alterações nas chapas e candidaturas inscritas para disputar as eleições nos diversos níveis: zonal, municipal, estadual e nacional. No plano nacional, há uma semelhança e quatro diferenças importantes em relação ao último processo eleitoral petista, ocorrido em 2019.
Diferenças: (i) o Movimento PT (MPT), uma tendência “moderada” que em 2019 apoiou a candidatura da tendência majoritária, desta vez lançou candidatura própria à presidência; (ii) o Diálogo e Ação Petista (DAP), uma tendência de esquerda que em 2019 apoiou a candidatura da tendência majoritária, desta vez não repetiu a dose; (iii) mantidas as condições atuais, a Construindo um Novo Brasil (CNB), “tendência majoritária”, poderá vir a apresentar duas chapas e duas candidaturas presidenciais (Edinho Silva e Washington Quaquá), mas como a situação é de alta instabilidade tudo pode acontecer, inclusive nada; (iv) ao invés de aproveitar estas divisões para tentar derrotar a tendência majoritária, neste ano de 2025 mais setores da chamada esquerda petista decidiram apoiar a candidatura presidencial da “tendência majoritária”.
Em 2019 foi apenas a tendência Resistência Socialista quem fez isso. Agora é novamente a Resistência Socialista (RS), mas também a tendência Esquerda Popular Socialista (EPS), parte da tendência Socialismo em Construção (SoCo) e parte da tendência Novo Rumo (NR), além de indivíduos oriundos de outras tendências da esquerda.
Semelhança: como ocorreu em 2019 (e em praticamente todas as outras eleições internas petistas), a chamada esquerda petista não se unificou no primeiro turno. Em 2019 tivemos uma candidatura presidencial da Articulação de Esquerda (AE) e outra candidatura presidencial da Democracia Socialista (DS); além disso, em 2019 tivemos 4 chapas da chamada esquerda petista (Resistência Socialista, Diálogo e Ação Petista, uma chapa encabeçada pela AE e uma chapa encabeçada pela DS).
Em 2025, embora vários personagens e grupos tenham mudado de lugar, o cenário é similar nas candidaturas (antes Valter Pomar e Margarida Salomão, agora Valter Pomar e Rui Falcão) e de maior fragmentação nas chapas (foram 4 chapas da esquerda em 2019, agora devem ser 5 chapas, uma vez que a chapa liderada pela DS se dividiu em duas).
Resumo da ópera, a preços de 5 de maio: em 2019, 3 candidaturas presidenciais e 8 chapas; em 2025, 5 candidaturas à presidência nacional e 8 chapas. O que resultará disso, saberemos logo mais. Com a palavra, a nação petista.
*Valter Pomar é professor da Universidade Federal do ABC e membro do Diretório Nacional do PT.
O site A Terra é Redonda está postando artigos dos candidatos à presidência nacional do Partido dos Trabalhadores.
Para ler os já publicados clique em https://aterraeredonda.com.br/por-um-pt-com-a-politica-no-comando/
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