Comunicação e destino

Imagem: Joao Teles
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Por OTAVIO A. FILHO*

O destino não está no algoritmo de Zuckerberg, mas no código aberto da inventividade baiana que teima em transformar o “cortejo de horrores” em poesia concreta

1.

Lembro-me de meu pai contando, estarrecido, que ao passar por uma loja de roupas numa das ruas do comércio na cidade de Salvador e vendo numa vitrine uma camisa que lhe interessou, entrou na loja para comprar. Foi atendido por um funcionário jovem que disse que aquela camisa estava sendo vendida em três prestações.

Meu pai retrucou dizendo que iria fazer o pagamento à vista. Na época, ainda não eram populares os cartões de crédito e os boletos precisavam ser pagos em Bancos. Prevendo todo o trabalho, ele optou pelo pagamento à vista. Para sua surpresa e incredulidade, o vendedor avisou que infelizmente não poderia vender o produto à vista e, sim, em três parcelas. Questionado por meu pai, o vendedor foi categórico: lamento, só em três vezes.

Este fato marcou profundamente o meu modo de ver como “a loucura se esconde nos alvéolos da razão’’. Desde então, tenho assistido (pedindo permissão à genial Fernanda Torres) esse “cortejo de horrores”. Absurdos que fariam Kafka corar de vergonha, diante da avançada estupidez burocrática do nosso tempo. A Inteligência artificial está aí para provar que a noção de inteligência é uma das mais difíceis de ser compreendida.

E essa loucura vai se juntando a outras e o caldo de delírios vai engrossando a passos largos. Um verdadeiro angu de caroço. Mas antes que o leitor pense que estou “ressentido” pelos percalços da comunicação e da desinteligência do nosso tempo, alerto que sou daqueles apaixonados pelas tecnologias da inteligência e que, nalgum lugar do passado, tive o privilégio de ter feito um doutorado em comunicação e também de ter ensinado esse assunto numa universidade pública. Sinto-me, portanto, tranquilo para apontar essas maluquices vestidas de inteligência e avanços, nisso que se costuma chamar “comunicação institucional”.

E, de forma mais ou menos rápida, entendo “comunicação institucional”, num sentido mais restrito, nesse conjunto de mensagens e atendimentos feitos por empresas (bancos, clínicas médicas, hospitais, planos de saúde, lojas de departamento etc., etc.) aos seus clientes. Imagino que a quase totalidade dos brasileiros sabem, vivem ou já viveram situações absurdas nesse ambiente de “comunicação institucional/ empresarial”.

Hoje, a quase totalidade das comunicações são feitas através do whatsapp (coisa que, do ponto de vista da soberania nacional, para mim, constitui um crime). A dependência que o Brasil, e tantos países, têm do supremacismo tecnológico norte americano é de assustar. Não compreendo por que ainda não fomos capazes de desenvolver ferramentas para competir nessa seara. O Brasil, reconhecidamente um país criativo e inovador ainda tropeça feio no mundo digital.

Temos aqui empresas reconhecidas mundialmente por sua ousadia inovadora. Basta lembrar da Petrobrás, Embrapa, Embraer e WEG, dentre outras. O Sírius, nosso acelerador de partículas em Campinas, é uma coisa assombrosa em termos de avanços tecnológicos. Por isso, parece paradoxal que estejamos de joelhos perante as big techs americanas e, agora, também das chinesas.

2.

O Brasil tem dessas coisas malucas. Dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação mostram que somos o 13º país em produção e publicação de papers no mundo acadêmico mas, infelizmente, ocupamos o 49° lugar no que diz respeito à inovação. Parece que tem uma cabeça de burro enterrada na mentalidade atrasada de muita gente por aí.

No ano passado, formamos, ainda de acordo com o M CTI, 25.000 doutores e cerca de 66.000 mestres, mas não conseguimos produzir um “uber”, um “airbnb”, um “tiktok”. Pagamos ao mundo fortunas e só exportamos, ou quase, só soja e milho para os suínos do mundo. Suínos de olhos azuis capazes de produzir tomógrafos, satélites geoestacionários e redes sociais que trabalham a serviço da mais abjeta extrema direita nazifascista.

E olhem como no meio dessas coisas absurdas, desse deserto de inteligência, florescem coisas tão belas como o cinema, a música e a literatura. Ou seja, lá do fundo da alma, a inteligência brasileira grita a todo pulmão: Ainda estamos aqui!.

Por isso, o desconforto quando vemos a estupidez caminhar sorridente pela comunicação institucional/empresarial com a qual, raramente, o consumidor mal consegue um telefone para se comunicar com alguém. Observem que os sites, em sua grande maioria, não têm telefone. Só e-mails e o whatsapp.

Estou seguro disso, sabemos o tormento que é ligar para uma dessas empresas e ser atendido por uma gravação que começa sugerindo ao cliente baixar o app da empresa para encontrar lá “todas as facilidades” necessárias ao “bom atendimento”. Ledo e desesperado engano. Quão longe está hoje o consumidor brasileiro de ter um atendimento decente nesses ambientes digitais. Beira, muitas vezes, o cinismo, a estupidez e a burrice.

O cliente liga para um hospital, uma clínica, uma empresa qualquer e tem que ouvir uma longa lista de opções para digitar um número. “Se você ligou para exames, digite o um, se ligou para resultados de exame, digite o dois, se ligou para fazer uma cirurgia do calcanhar, digite o três, se você quer um seguro de vida, digite o quatro mas, se assunto for reservar um lugar no cemitério, digite o cinco.” E, nalguns raros casos, aguarde para ser atendido por um dos nossos funcionários. Culmina, então, cinicamente, que esta ligação está sendo gravada para sua segurança.

A cabeça de burro é uma espécie de vírus que, como a Covid, foi negada por um bando de imbecis, que acreditavam e acreditam que a Terra é plana e que a vacina é um chip implantado no cérebro, capaz de fritar os miolos dos imbecis. Antes fosse assim, pois através de uma vacinação obrigatória, poderíamos dar um jeito nesse maldito vírus da burrice.

Não será fácil essa tarefa, não será fácil vencer o atraso, sobretudo quando sabemos que por aí proliferam Dudus bananinhas, fritadores de hamburgers, que aspiram ocupar a embaixada do Brasil em Washington. Patriotários analfabetos funcionais, ocupando cargos decisivos na estrutura do Estado brasileiro. Não, não será fácil arrancar essa maldita cabeça de burro, encravada na mentalidade atrasada da vida nacional.

A Bahia, esse estranho enclave em que um dia um governador disse: “pense num absurdo: na Bahia tem antecedentes”, e é um lugar onde brotam grandes e poéticas inteligências. Música, artes visuais, cinema (no passado), e uma escola de comunicação política, que é um desses celeiros de criatividade e inventividade.

Ao mesmo tempo, é um cruel retrato do Brasil de contrastes abomináveis. Estradas, cidades, escolas, hospitais e a criminalidade mostram a fratura exposta das nossas múltiplas realidades. O grande político paulista, Mário Covas, ex-governador, ex-senador da República, um estadista dos grandes, disse, certa vez, como apreciava o modo como os baianos davam nomes às coisas. Ele se referia ao programa do Governo da Bahia para atender aos jovens carentes: “Cuida bem de mim”. Nada mais doce e carinhoso que essa frase para dizer o afeto que se encerra em nosso peito juvenil.

Pois a Bahia tem, na Universidade Federal, na Escola Politécnica, um programa de Inteligência Artificial que é um primor. É o PRAIA – “Pesquisa em Inteligência Artificial visando a criação de um Centro de Pesquisa Avançado em Inteligência Artificial (Centro de Pesquisa Realmente Aplicada em Inteligência Artificial). A missão do centro é ser um hub de integração entre mercado e academia, visando aumentar a competitividade das empresas, bem como ajudar a criar novas empresas a partir de um maior domínio das técnicas da Inteligência Artificial e de suas possíveis aplicações no mercado público e privado”.

Essas iniciativas no coração da Universidade pública brasileira, são de emocionar todos aqueles que amam o Brasil e esperam que nos tornemos não só um imenso Portugal, mas também uma nação digna da grandeza do seu povo. Afinal, é assim, aos solavancos, que caminha a humanidade.

Mais dia, menos dia, esperamos todos, um raio descerá numa velocidade estonteante de uma nave brilhante e colorida e pousará no coração atormentado da cegueira humana e, num claro instante, vamos render nossas homenagens à mais avançada, das mais avançadas tecnologias: a tal da inteligência!

*Otavio A. Filho é doutor em comunicação e semiótica.


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