A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
1.
Senhoras e senhores. O sociólogo norte-americano de ascendência sueca Thorstein Veblen escreveu um trabalho sobre a preponderância dos judeus na cultura ocidental. Agora, esta preponderância, ou primazia, pode ser demonstrada estatisticamente e Thorstein Veblen quis investigar suas causas. Rechaçou, antes de tudo, a etnia: não acreditava, negava que houvesse uma superioridade ou uma peculiaridade na estirpe judaica.
Salientou, ademais, que os judeus são muito misturados, que talvez não se possa falar de judeus puros, e concluiu que a razão deste fenômeno era o fato de que os judeus, na cultura ocidental, estão lidando com uma cultura que não é a sua. Ou seja, à qual não devem qualquer lealdade e dentro da qual podem atuar sem superstições e muitas vezes de forma revolucionária.
Agora, passemos a um problema análogo, que é o que nos interessa hoje: o caso da Irlanda, o caso dos irlandeses na cultura britânica e na cultura ocidental. Pois bem, no século XIX, insistiu-se na diferença entre a raça saxônica e a raça celta: há um romance de Meredith chamado Celt and Saxon, mas, depois, aprofundando o assunto, viu-se que não se trata de uma diferença racial.
No século XIX, pensava-se que todos os ingleses eram de ascendência saxônica, que ser irlandês significava ter sangue celta. Pensa-se agora que os ingleses e os irlandeses são racialmente heterogêneos, e é natural que seja assim. Pensemos que houve uma população celta na Inglaterra, que depois a invadiram os romanos, que depois a invadiram os saxões, os anglos e os jutos – estes últimos vinham da Dinamarca –, depois temos as invasões dinamarquesas, depois a invasão normanda, de escandinavos conquistados para a cultura francesa…
Já podemos ver que a cultura inglesa é bastante heterogênea. Quanto à Irlanda, bastaria observarmos alguns dos grandes nomes irlandeses para ver que muitos procedem da estirpe inglesa. Assim, a teoria da raça celta não seria suficiente para explicar estas coisas.
Agora, o que é curioso é que a Irlanda deu ao mundo uma série de nomes famosos e que isso não tem qualquer relação com o fato de que a Irlanda é um país pequeno, pobre e pouco povoado. No entanto, temos já no século IX o famoso místico John Scotus e depois – bem, não pretendo esgotar o catálogo de nomes ilustres irlandeses, direi aqueles que foram se acumulando, aqueles que aparecem em minha memória – pensemos em Oscar Wilde, pensem em William Butler Yeats, aquele que T. S. Eliot disse ser talvez o maior poeta de língua inglesa de nosso tempo, pensemos em George Moore, pensemos em Bernard Shaw, em Sheridan… em outro campo, no Duque de Wellington. Isto é, os nomes ilustres abundam. E depois pensemos também em James Joyce.
Penso que a teoria, a conjectura de Thorstein Veblen, poderia ser aplicada aos irlandeses, para além de qualquer caráter racial. Assim, poderíamos dizer que os irlandeses vivem dentro da cultura inglesa. Lidam – às vezes de forma esplêndida – com a língua inglesa. E, no entanto, sabem que não são ingleses, ou seja, não devem qualquer fidelidade especial à tradição – ou às tradições inglesas. Por isso, podem encarar o que fazem de um ponto de vista revolucionário.
E, se vocês me permitem um parêntesis, esta é, ou poderia ser, ou já foi, em alguns casos, nossa atitude de americanos. Nós participamos da cultura ocidental, lidamos com uma língua ocidental – o espanhol – e, no entanto, sabemos que não somos europeus, não somos espanhóis e, em todo caso, nossa história parte da decisão de não sermos espanhóis, e talvez seja por isso que a máxima revolução nas literaturas de língua hispânica surgiu primeiro na América e depois chegou à Espanha. Estou pensando, evidentemente, no Modernismo, em Rubén Darío, Jaime Freyre e, not least, em Leopoldo Lugones.
2.
Bem, voltemos agora ao caso de James Joyce, que é o que nos interessa hoje. Não sei exatamente qual é a ascendência de Joyce, mas sei que seu pai era cobrador de impostos, que a família era católica – por isso James Joyce foi educado pelos jesuítas. Quanto à ascendência celta, sei que Joyce, ao contrário de seus companheiros de geração, não se interessou, no início, principalmente por ela. Quando os irlandeses estudavam sua antiga língua celta, James Joyce lembrou-se de que Dublin [Borges pronuncia-a em inglês] tinha sido um porto de Vikings, de Vikings dinamarqueses, que já tinha havido dinastias escandinavas.
Ou seja, que, na raiz da Irlanda, não estava apenas o celta, mas o escandinavo, e James Joyce estudou norueguês, e escreveu uma longa carta àquele grande dramaturgo para o qual outro irlandês, Bernard Shaw, estava chamando a atenção da Inglaterra, Henrik Ibsen. E, no último livro de James Joyce, o enigmático e vertiginoso Finnegans Wake, há, dizem-nos, muitas palavras escandinavas, muitos calhamaços feitos com palavras escandinavas.
Portanto – já que convém fixar James Joyce no tempo –, vale a pena lembrar destas poucas datas: James Joyce nasce em Dublin em 1882. Publica a obra que o tornará famoso e escandaloso no mundo, Ulisses, por volta de, penso eu, 1922, e morre em 1941. Agora, a vida de James Joyce transcorre longe da Irlanda. Ele mesmo diz no Retrato do artista quando jovem, um romance evidentemente autobiográfico, que se propõe a deixar a Irlanda e trabalhar com três armas, essas três armas são o silêncio, o exílio e a astúcia: silence, exile and cunning, são as palavras usadas por James Joyce na última página do Retrato do artista quando jovem.
A obra de James Joyce é uma obra que, para além de nossas preferências e aversões, é muito importante para nosso tempo. Eu participei uma vez do movimento chamado ultraísta, e acreditava na possível renovação das letras, e se tivesse que apontar uma obra que representa, que representasse de uma forma magnífica tudo o que chamaram e seguem chamando moderno, essa obra seria sem dúvida a de James Joyce.
Em outras palavras, havia, há no mundo centenas, milhares de rapazes jovens, que estão ensaiando uma obra que corresponde ao que Guillaume Apollinaire chamou “a aventura”, opondo-se à ordem. Pois bem, o símbolo dessa aventura, da nossa aventura, é claramente a obra de James Joyce. Quero dizer que, se tudo o que se chama literatura moderna se perdesse, e tivesse que salvar dois livros, e esses dois livros tivessem que ser escolhidos, digamos em todo o mundo, seriam, em primeiro lugar, Ulisses, e, depois, Finnegans Wake de Joyce. Quero dizer que há uma espécie de aventura, uma aventura que os jovens empreendem em todo o mundo; o melhor espelho dessa aventura é a obra de James Joyce.
Bem, James Joyce, desde sempre, sabe-se irlandês, sente-se profundamente irlandês – esta é uma paixão para ele – e talvez mais do que irlandês, Dubliner, homem de Dublin. Agora, quando Joyce se torna famoso, volta à Irlanda por alguns dias e depois volta a Paris, e depois volta a Zurique, onde morre, destruído por um longo e obstinado trabalho, já cego, em 1941.
Martínez Estrada disse que William Henry Hudson pôde deixar a República Argentina quando era jovem, e nunca mais voltou a ela porque a levava consigo. Não precisava voltar: sua memória era tão vívida como, digamos, a intuição sensível das coisas. E o mesmo poderíamos dizer de James Joyce. Joyce levou a Irlanda, sua Irlanda, com ele. Além disso, ele já disse que o exílio é uma arma. Quer dizer, talvez para escrever esses dois livros tão profundamente irlandeses, Ulisses e Finnegans Wake, era necessária a nostalgia, eram necessários o estímulo e o incentivo, e isso Joyce sabia, pois escreveu algo como “silence, exile and cunning”.
3.
Bem, James Joyce começa escrevendo um livro de contos curtos, Dubliners. Depois, há uma peça de teatro sua chamada, significativamente, Exiles; todas estas obras são lidas agora porque refletem, porque a glória de Ulisses recai sobre elas, do contrário seriam – merecidamente, ao que me parece – esquecidas. E depois temos o romance, O retrato do artista quando jovem, o livro mais acessível de James Joyce. E depois temos este livro de contos, Dubliners.
Parece que James Joyce se propôs a acrescentar um conto à série, mas antes já tinha se interessado pela evolução da literatura europeia. Ou seja, Joyce estudou profundamente as duas grandes correntes francesas da época: o naturalismo, cujo nome máximo, ou mais famoso, é o de Émile Zola, e o simbolismo. O simbolismo produziu um grande poeta na Irlanda, como sabemos, o poeta Yeats. Trata-se de duas escolas opostas; na França, os simbolistas eram inimigos dos naturalistas, mas James Joyce se interessou por ambas. E vamos abordá-las agora, já que isso é necessário para a compreensão da obra de Joyce.
Vejamos em primeiro lugar o naturalismo. Os naturalistas propunham-se a oferecer a seus leitores les tranches de vie, fatias de vida. Há uma expressão também corrente nessa época, e essa expressão é “transcrição da realidade”. Isto é, os naturalistas, embora alguns deles – sobretudo Émile Zola – tivessem uma imaginação poderosa, ou uma imaginação visionária, diziam querer apenas transcrever a realidade. E vamos analisar esta expressão. Seguramente, só se transcreve o oral, só se transcreve o que está escrito, ou o que se diz transcrição.
Por outro lado, grande parte da realidade não é oral, de modo que, mesmo neste programa aparentemente modesto, de transcrição da realidade, há algo que é impossível. Quer dizer, é possível transcrever o que uma pessoa diz, ou um escritor pode lidar com um estilo que se confunda, ou que pareça confundir-se com o estilo oral. Mas a maior parte da realidade não é oral.
Há uma parte da realidade que é oral, outra é olfativa, outra é tátil, outra é gustativa, e depois temos também a memória, a memória feita de imagens, e temos as paixões. Nada disto pode ser transcrito diretamente. Seria possível transcrever a realidade se ela fosse simplesmente verbal, mas ela é muitas outras coisas: é memória e paixão e nostalgia e vontade. Tantas coisas que não são palavras.
Agora, James Joyce também está interessado no simbolismo. O simbolismo quer ser o contrário do naturalismo; o simbolismo acredita que nada pode ser expresso, que o escritor deve proceder por sugestão. E, neste sentido, o simbolismo está mais próximo da tradição eterna, das tradições eternas da literatura, do que o naturalismo.
Vejamos o que são as palavras; as palavras são símbolos, mas para que estes símbolos funcionem é necessário que sejam símbolos compartilhados. Por exemplo, se eu falo da Praça da Constituição, isso desperta uma imagem em todos nós, porque a conhecemos, mas se eu falar para vocês da rua Congress em Austin, por exemplo, isso não deve despertar qualquer imagem precisa.
Ora, os simbolistas queriam proceder por sugestão, e a metáfora é, em grande parte, uma sugestão. E talvez as metáforas ou imagens mais felizes não são as que declaram as coisas, mas as que as sugerem. Lembro-me, por exemplo, neste momento, de uma imagem de Mallarmé, e é curioso que Mallarmé seja um simbolista, e, não obstante, vou citar uma imagem de Mallarmé que é o oposto do simbolista, que marca demasiado as coisas, parece-me. Mallarmé fala de um casal de amantes, então o chama de blanc couple nageur, o casal branco nadador. É claro que isto é vívido, mas, ao mesmo tempo, é demasiado vívido.
Aqui, Mallarmé não foi muito simbolista. Por outro lado, lembro-me de um poeta do século XIV, Chaucer, e Chaucer em Troilo e Créssida diz “O loveres ye that bathen in gladnesse”, “Oh, amantes que os banhais na alegria”. Aqui a palavra “banhais” sugere a nudez. A palavra “banhais” sugere também o que Mallarmé diz explicitamente. Ou seja, neste verso, aquele poeta longínquo do século XIV foi melhor simbolista, atuava conforme as regras do simbolismo seguramente mais do que Mallarmé, cuja imagem é tão explícita que é estranho que notemos imediatamente as diferenças entre, bem, entre a natação e o abraço, digamos.
4.
Bem, James Joyce interessava-se por ambos os métodos. Quase poderíamos dizer que Joyce se interessava por tudo o que fosse literatura. Joyce não foi um pensador importante. Joyce – a vida de James Joyce – foi uma vida comum. Ele tinha, digamos, a paixão política que havia em sua época. Era conscientemente, e por vezes agressivamente, irlandês. Procurou deliberadamente modelos na França para não os procurar na Inglaterra. As ideias de James Joyce são ideias comuns. O que o diferencia de todos os homens é sua paixão literária, o fato de ter dado sua vida à literatura.
James Joyce tinha escrito Dubliners e depois pensou em acrescentar um conto à série. O argumento desse conto era bastante simples, ou parecia simples, ou parecia simples à primeira vista. Joyce pensou numa personagem bastante comum, Leopold Bloom, um judeu bastante perdido em Dublin, e em um dia desse homem. Ora, o que interessava a James Joyce é que este homem sabe que sua mulher o está traindo, sabe que sua mulher vai traí-lo neste dia, e tem que cumprir suas obrigações – é um homem de negócios – e, assim, percorre a cidade de Dublin, conversa com diversas pessoas, às vezes se esquece dessa preocupação, mas realmente essa ideia, de que sua mulher o trairá – ele sabe a hora e o local –, está perseguindo-o, e lança uma espécie de sombra sobre ele, e depois volta para sua casa, ele sabe o que aconteceu, e dorme.
E agora Joyce pensou em dedicar um conto a este dia, este dia de fracasso, de solidão, este dia de um homem que está vivendo um destino trágico, mas que não o quer confessar a si próprio, que quer viver com indiferença esse dia. Então James Joyce disse para si mesmo vou escrever um conto no qual esteja esse dia de Leopold Bloom, desde o momento em que acorda até o momento na alta noite em que cai no sono.
E depois James Joyce começou a olhar para esse dia, e ocorreu-lhe o que se passou com aquele grego antigo Zenão de Eléia, que se perguntou sobre o problema de algo em movimento que tem que partir daqui e chegar a esta outra extremidade da mesa. Então, Zenão de Eléia disse para si mesmo, bem, primeiro tem que passar por este ponto intermediário, mas antes de passar por este ponto intermediário tem que passar por este, antes por este, antes por este, e, assim, até o infinito. Ou seja, Zenão de Eléia viu numa extensão, qualquer extensão, o infinito. A mesma coisa aconteceu com James Joyce.
Podemos pensar em James Joyce debruçando-se sobre esse dia de Leopold Bloom, e vendo que esse dia, para ser fielmente registrado, continha milhares de coisas. Pensemos no número de percepções visuais que nos acompanham desde o momento em que acordamos até o momento em que dormimos: são certamente milhares. Pensemos nas percepções táteis, nas percepções gustativas. Pensemos simplesmente no que significa atravessar uma rua, ou entrar numa moradia, ou encontrar uma pessoa e reconhecê-la. Pensemos no contexto de memórias que as nossas ações trazem.
Eu, por exemplo, ao vir hoje a La Plata, pensei nas muitas vezes que vim. Pensei, momentaneamente ao acaso e sem intenção, pensei em amigos meus que morreram. Pensei em López Merino, e lembrei-me de versos de Almafuerte. Bem, tudo o que cabe em um dia. E então James Joyce percebeu que, se quisesse cumprir esse programa, aparentemente modesto, de escrever um dia humano, teria que escrever um livro quase infinito. E Joyce dedicou muitos anos, em Paris e em Trieste, e na cidade de Zurique, na Suíça, onde morreria, à redação desse livro.
Agora, entre as personagens tradicionais, havia uma que sempre atraiu James Joyce, e essa personagem era Ulisses. Joyce comparou-a com outras personagens que vivem na memória, na imaginação dos homens – com Fausto, Don Juan, Hércules –, todas elas pareciam-lhe muito menos significativas do que Ulisses, e pensou que nessa história de um modesto comerciante judeu-irlandês a aventura de Ulisses poderia estar de alguma forma codificada.
Creio que William Blake disse que tudo acontece nas sessenta batidas de um minuto. Blake, em sua linguagem metafórica, fala dos alcáceres de prata e de ouro que existem em cada minuto humano, e James Joyce pensou algo parecido. Pensou que todo o empreendimento de Ulisses, sua nostalgia, seu desejo de voltar a Ítaca, que tudo isso poderia estar no dia único de Leopold Bloom. Leopold Bloom também quer voltar para sua Ítaca, para sua casa, e teme encontrar uma Penélope que não lhe tenha sido fiel.
5.
Ora, como James Joyce tinha estudado todas as técnicas literárias, e não estava satisfeito com nenhuma delas, propôs-se a experimentá-las e esgotá-las no Ulisses, e tomou como esquema a Odisseia. Ou seja, cada capítulo do Ulisses de Joyce corresponde a cada um dos Cantos, a cada uma das rapsódias da Odisseia. Ademais, Joyce procurou outras analogias: por exemplo, cada capítulo é dedicado a um órgão do corpo humano; em cada capítulo, predomina uma cor; cada capítulo segue uma técnica literária diferente.
Agora, há quem tenha visto nesta técnica o mérito, uma das virtudes de Ulisses. Eu não acho que haja maior mérito, acho que Joyce o fez simplesmente para animar-se a continuar escrevendo. E acho que essa é, em geral, a função de todos os argumentos e de todos os esquemas. O que importa é a obra. Agora, o esquema, o argumento, tem a virtude de persuadir o autor de que ele já tem alguma coisa.
Em outras palavras, James Joyce, para empreender a gigantesca tarefa de escrever Ulisses, tinha que pensar que toda ela estava prefigurada na Odisseia. Ou melhor, tinha que pensar que ele, que sua obra, era adequada à realidade de Dublin do início do século, a todas as aventuras que Ulisses vive no Mediterrâneo, a todas essas aventuras fantásticas, com feiticeiros, ciclopes, guerreiros, deuses. Penso que isso serviu de ajuda, ou uma suposta ajuda, a James Joyce.
Agora, se interessa a vocês toda esta espécie de andaimes do Ulisses, tudo isso está num livro, não oficial, digamos, publicado por Stuart Gilbert, que foi secretário de James Joyce.
Ali temos o Ulisses de Joyce analisado capítulo a capítulo, ali temos as correspondências homéricas, ali vemos que neste capítulo predomina a cor vermelha, que neste capítulo quase todas as metáforas são retiradas da circulação, que em tal outro capítulo predomina o ar, que neste capítulo quase todas as metáforas são retiradas da respiração, que em tal outro capítulo predomina o digestivo, em outro o generativo, e há também uma figura, uma figura retórica que predomina em cada capítulo.
E, no final da obra, temos um capítulo escrito em forma de catecismo. Ali o método naturalista é levado ao extremo. Ali, por exemplo, é dito a nós exatamente o ângulo a partir do qual as personagens olham, ali dizem a nós os nomes dos livros da biblioteca, é um capítulo cheio de dados precisos. E depois, no último capítulo, aquele que mais influenciou em toda a literatura, e é o longo monólogo interior da mulher de Bloom, aquilo em que pensa a mulher de Bloom antes de dormir. Agora, na Odisseia, temos o tema de Ulisses e Telêmaco, e no Ulisses de James Joyce temos uma personagem, Stephen Dedalus, que é o próprio Joyce, que procura seu pai e finalmente o encontra em Bloom. Dedalus é o Telêmaco desta Odisseia.
Ora, o que podemos dizer sobre o Ulisses? É, evidentemente, uma das obras mais estranhas de nosso tempo, mas – como Sampson indica em sua História da literatura inglesa – tem o defeito capital de ser ilegível. Não pode ser lida do início ao fim. Por outro lado, abunda em frases felizes, porque o talento de Joyce era, foi, parece-me, antes de tudo, verbal. Veremos isso em alguns dos poemas que escutaremos daqui a pouco. Agora, ele escreve este livro, este livro que pretende seguir a realidade.
Agora, creio que não a siga exatamente, porque não creio que as palavras possam seguir a realidade. E James Joyce deve ter sentido que, bem, não tinha cumprido seu objetivo, pois, pouco depois, começou a escrever o outro livro, um livro que é o que Ulisses é para todos os demais livros, Finnegans Wake. Quero dizer que Ulisses é mais complexo do que qualquer outra obra literária e, no entanto, Ulisses é límpido se o compararmos com Finnegans Wake. Ulisses dura um dia, o que significa que corresponde ao pensamento da vigília, e Finnegans Wake dura uma noite, o que significa que corresponde ao pensamento, ao pensamento simbólico, aos sonhos da noite.
Ora, Jung fala do subconsciente coletivo. Isso significa que, em cada um de nós, haveria uma pequena área, uma superfície que corresponde à consciência, e depois uma espécie de esfera ou cone de sombra que corresponde à subconsciência, e isso estaria representado nos sonhos. Há também outra diferença: há psicólogos que dizem que vivemos sucessivamente, ou seja, em toda nossa vida consciente há um antes, um durante, um depois.
Os psicólogos têm perguntado o que é o presente? O filósofo inglês Bradley diz que o presente é o momento em que o futuro se torna passado. Isto é, não viveríamos de acordo com o fluxo do tempo, mas estaríamos avançando contra o fluxo do tempo. Iríamos em direção ao manancial do tempo, que estaria no futuro. Foi o que disse Unamuno em “Noturno o rio das horas flui / desde seu manancial, que é o futuro[i] / eterno”. Bem, o mesmo que Bradley diz. O tempo vem do futuro em direção a nós, e nós avançaríamos de frente para o futuro.
Bem, segundo alguns psicólogos – lembro-me do livro de Dunne, An Experiment with Time (Um experimento com o tempo) –, não sonhamos sucessivamente. Segundo Dunne, ao sonharmos, abrangeríamos uma zona de tempo, feita de passado imediato e de futuro imediato. Ou seja, sonharemos esta noite com o dia de hoje e o dia de amanhã. E dominaremos tudo isto – seria uma pequena eternidade pessoal – de uma altura, mas, como estamos acostumados a viver sucessivamente, quando acordamos lembramo-nos sucessivamente do que sonhamos, ainda que talvez o sonho tenha sido simultâneo.
Por exemplo, ao ler, nossos olhos estão acostumados a percorrer a página da esquerda para a direita. Uma das dificuldades de aprender línguas semíticas é que temos que refazer esse percurso. Ora, segundo alguns psicólogos, sonhamos simultaneamente, mesmo que depois, ao armar o sonho, ao recordá-lo, lhe atribuamos um caráter sucessivo.
6.
James Joyce propôs-se escrever um livro cujo protagonista fosse um taberneiro de Dublin, mas esse taberneiro seria apresentado em seus sonhos, não na vigília. Assim, o livro de James Joyce, Finnegans Wake, seria um livro simultâneo. Agora, é claro que não o podemos ler simultaneamente; estamos condenados a lê-lo sucessivamente. Lemos, em primeiro lugar, a página um, a dois, a três, exceto que nunca chegamos à página três, porque ficamos na primeira página, geralmente, dada a dificuldade do texto.
James Joyce disse que este livro deveria ser lido e que era possível vê-lo simultaneamente – não sei se a atenção humana é capaz de tudo isto. Agora, James Joyce, dado que se movia no mundo dos sonhos, num mundo de sugestões infinitas, num mundo que – segundo ele – compreende também o inconsciente. Joyce não pôde contentar-se com a linguagem comum, por isso decidiu escrever um livro inteiro feito de neologismos, e vejamos agora qual é o mecanismo desses neologismos.
Começarei com um exemplo em espanhol que esclarecerá estas coisas. Este exemplo pertence a Marcelo Del Mazo, autor daquele tríptico de tango. Marcelo Del Mazo, amigo de Evaristo Carriego. Havia em Buenos Aires orquestras de zíngaros, isto é, ciganos, e alguém falou de um café onde tocava uma orquestra de zíngaros e perguntou se realmente eram zíngaros. Então o Marcelo Del Mazo disse: “Bem, zíngaros não, gríngaros”, vamos dizer. Ou seja, gringos que se fazem de zíngaros.
E agora, bem, vejamos esta palavra em que se juntam duas palavras, gringos mais zíngaros, gríngaros. Agora, vejamos um exemplo de Laforgue, um poeta simbolista. Laforgue fala de violupté. Em violupté temos a ideia de volupté, voluptuosidade, e de viol, violação. Está dado numa só palavra. E há outro exemplo, está dado numa negação da eternidade, uma piada feita sobre a eternidade por Jules Laforgue, ele não fala de éternité mas de éternullité, a eternulidade, não é? Ambas as coisas são negadas.
James Joyce concebeu o propósito, e infelizmente levou-o a cabo, de escrever um livro de trezentas páginas em que todos os substantivos, e todos os adjetivos, e todos os verbos se tornam assim, centauros de duas palavras. Por exemplo, em inglês temos a palavra noise – barulho –, a palavra voice – voz –, então ele diz voise para unir a ideia de barulho e de voz. Ou então, em inglês, temos the English language, mas também a palavra jingle, cantiga, jangle, que é fazer soar umas chaves, uns metais, então Joyce, em vez de English language, fala de Jinglish janglage.
Agora, às vezes os efeitos são muito curiosos, por exemplo, ele fala de glittergates of elfinbone. Glitter é brilho, glittergates dá-nos, numa só palavra, a imagem de portas resplandecentes. E agora vejamos elfinbone. Em alemão existe a palavra Elfenbein, que significa marfim, mas que poderia ser interpretada como “ossos de elfo”. Mas, claro, não é essa a etimologia. A etimologia vem de elefante, Bein – osso de elefante, por causa do marfim das presas.
James Joyce pega essa palavra, traduz e dá-nos elfinbone, em vez de marfim, osso de elfo, como se os esqueletos dos elfos fossem de marfim. E agora vou lembrar outro exemplo, uma ideia de comparar a noite com um rio; não é uma ideia muito original. No entanto, vejamos o que Joyce faz com isso. Fala-se, bem, da noite que flui, e Joyce fala de “the rivering waters of”, as águas, e depois temos “rivering”, que é um particípio feito de river, de rio. “The hithering tithering waters of”, ora hither and tither é aqui e ali, cá e acolá, mas hithering and tithering é um verbo, o que nos dá a ideia de um movimento em muitas direções, e assim Joyce escreve o final de um dos capítulos de Finnegans Wake: the rivering waters of, the hithering tithering waters of night, e assim se resolve o que foi dito acima. Tudo isto é verbalmente esplêndido, mas não sei se cumpre o objetivo, por acaso humanamente impossível, que Joyce se impõe.
Virgina Woolf talvez tenha encontrado a melhor definição de Ulysses e Finnegans Wake. Diz que se trata de derrotas terríveis, de derrotas gloriosas. Acho que é assim que devemos vê-los. Quero dizer, acho que não se pode ir mais longe do que isso. Trata-se de uma espécie de redução ao absurdo, de reductio ad absurdum da máxima ambição literária. Croce disse que a literatura, que a arte é expressão. Pois bem, James Joyce propôs-se a expressar. Todo escritor conta com uma parte morta da linguagem: todos sabemos que dizer “fulano entrou num quarto”, “fulano saiu para a rua”, isto realmente não é expressar nada.
Isto é sugerir ao leitor uma possibilidade de imagens que não lhe damos. Em vez disso, James Joyce quis expressar-se continuamente. Neste jogo de palavras compostas de Finnegans Wake, uma das dificuldades é que Joyce não se limitou a combinar palavras inglesas, mas combinou seus monstros verbais com palavras inglesas, norueguesas, celtas, francesas, gregas, espanholas, sânscritas… Bem, isto faz do livro uma espécie de labirinto.
7.
Agora, o que perdura da obra de James Joyce? Penso que, em primeiro lugar, temos, digamos, o exemplo moral de ter empreendido uma obra assim, mesmo que essa obra não seja vitoriosa, não poderia ser vitoriosa. E depois, em segundo lugar, talvez mais importante, temos o extraordinário talento verbal de Joyce. Por isso, James Joyce não pode ser julgado numa tradução. Joyce revisou e colaborou na versão francesa de Ulisses. No entanto, se compararmos esta versão com a inglesa, verificamos que é muito, muito, muito deficiente.
Por exemplo, temos algo como um spectrales bougies, na versão francesa. Em contrapartida, na versão inglesa, temos uma palavra composta, ghostcandle: ghost, fantasma, candle, vela, mas tudo isto forma uma só palavra. Agora, Joyce começou escrevendo poemas. Esses poemas são realmente extraordinários. É uma pena que Joyce, que tomou significativamente o nome de Dedalus, se dedicara a construir labirintos, a construir vastos labirintos, nos quais ele mesmo se perdeu e nos quais seus leitores se perdem.
Mas agora, como nenhum julgamento de um poeta pode ser equivalente à audição imediata, à respiração dos versos de um poeta, peço-lhes que ouçam dois poemas, que nosso amigo […] vai ler. O primeiro é um poema bastante curto, é simplesmente feito de melancolia, feito de desespero. Talvez não haja melhores elementos para fazer um poema. Chama-se, penso eu, “She Weeps over Rahoon”. Pode ler.
“She weeps over Rahoon”
Rain on Rahoon falls softly, softly falling
Where my dark lover lies
Eu gostaria, vejamos, que lindo é “Where my dark lover lies”, “Onde jaz meu obscuro amante”. Obscuro, porque está debaixo da terra, porque está perdido, porque está morto.
“Sad is his voice that calls me, sadly calling / at grey moonrise”. “Moonrise” em vez de “sunrise”, e o cinza que está em todo o poema, como vocês verão.
Love, hear thou
How sad his voice is ever calling,
Ever unanswered, and the dark rain falling,
Then as now.
Dark too our hearts, O love, shall lie and cold
As his sad heart has lain
Under the moongrey nettles, the black mould
And muttering rain.
“Chuva sussurrante”, “Chuva balbuciante”. Agora, o outro poema… – eu acho simplesmente extraordinário, como som, como música verbal, já é muito que um poema tenha essa música verbal –. E agora vamos ver o outro poema, que é o poema da visão.
I hear an army charging upon the land
And the thunder of horses plunging
Foam about their knees:
Arrogant, in black armour, behind them stand,
Disdaining the reins, with fluttering whips, the charioteers.
They cry unto the night their battle-name.
Este verso é um dos mais extraordinários, penso eu: “They cry unto the night their battle-name”, a força que tem esta palavra composta, their battle-name, sim.
They cry unto the night their battle-name:
I moan in sleep when I hear afar their whirling laugther.
They cleave the gloom of dreams, a blinding flame
Claro, “estão fendendo a penumbra dos sonhos”.
Clanging, clanging upon the heart as upon an anvil.
They come shaking in triumph their long, green hair
They come out of the sea and run shouting by the shore.
My heart, have you no wisdom thus to despair?
My love, my love, my love, why have you left me alone?
Muito bem, muito obrigado. Agora, eu gostaria de acrescentar algumas palavras sobre estes poemas que o nosso amigo leu, com uma boa paixão irlandesa, não? Bem, este poema começa como um sonho. O poeta sonha, ou tem uma visão, de exércitos, exércitos que são homéricos, ou celtas, ou, melhor dizendo, ambas as coisas ao mesmo tempo, que surgem do mar: “I hear an army charging upon the land”.
Estes são exércitos muito antigos, porque se trata de guerreiros que estão em carros de batalha. Depois eles gritam na noite seus nomes de batalha, e enchem a terra. E são exércitos de deuses, de divindades homéricas, ou celtas, que surgem do fundo do mar, e enchem a terra. Agitam seus longos cabelos verdes, para que entendamos que são divindades marítimas, e depois golpeiam com o coração, “as upon an anvil”, como se fosse uma bigorna.
E depois, temos que compreender que, no que corresponde aos dois últimos versos, o poeta acorda, e então vemos que todo este esplendor, todo este horror de exércitos que surgem do mar e que invadem a terra, e que gritam seus nomes de batalha, e que o poeta compara com uma chama que o deixa cego, são simplesmente uma espécie de vasta metáfora da desolação em que foi deixado por uma mulher que não o quer.
Ou seja, todo o início do poema é preenchido com o tumulto visionário destes exércitos. E depois, no final, há simplesmente uma pergunta, como a de uma criança perdida, dizendo à amada por que ela o deixou.
Era isto que eu queria dizer. [ii]
*Jorge Luis Borges (1899-1986) foi escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Autor, entre outros livros, de Ficções (Companhia das Letras). [https://amzn.to/3R7pV8n]
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Notas
[i] Borges lê aqui “futuro”, embora no original, “Rima descriptiva” número LXXXVIII do Rosario de sonetos líricos, Unamuno escreveu “amanhã” (185). Ver: Unamuno, Rosario de sonetos líricos. Madrid: Impr. Española, 1911.
[ii] Agradecemos a Matías Carnevale pela transcrição desta importante conferência. Esta publicação conta com a permissão da Andrew Wylie Literary Agency, que representa a herdeira de Borges.
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