Confissões

Rubens Gerchman, SOS, 1967/1968. Reprodução fotográfica João L. Musa/Itaú Cultural
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VICTOR SERGE*

Poema apresentado e traduzido por Sean Purdy.

Vitor Serge (1890-1947) foi um marxista revolucionário belga-russo que apoiava Leon Trotsky e a Oposição da Esquerda contra Stalin nos anos 1920-1930 na União Soviética. Romancista, poeta, jornalista, historiador e militante socialista, nasceu na Bélgica, filho de exilados da Rússia tzarista. Atuava no movimento anarquista e anarco-sindicalista na Bélgica, França e Espanha durante a Primeira Guerra Mundial.

Em outubro de 1918, foi trocado junto com outros revolucionários russos em Paris para prisioneiros estrangeiros antibolcheviques na Rússia. Filiou-se aos bolcheviques em 1919 e trabalhou como jornalista e funcionário da Internacional Comunista. Em 1925 juntou-se à Oposição da Esquerda, trabalhando incansavelmente como militante e escritor contra a ascensão da contrarrevolução stalinista.

Serge foi preso em 1928, expulso do partido comunista e demitido do seu emprego no Estado soviético. Foi preso mais uma vez em 1933, ficou 85 dias em confinamento solitário, e foi exilado para o sudoeste do país. Após uma campanha em sua defesa por escritores europeus, foi liberado e exilado da URSS em 1936 junto com sua mulher e filhos. Foi “um milagre de solidariedade”, Serge lembrou depois. Porém, sua irmã, sogra, cunhada e dois cunhados morreram no gulag de Stalin.

Apesar de ter permissão oficial de levar todos os seus escritos feitos no exilio interno, inclusive dois romances, a polícia secreta os confiscou e ele foi forçado a reescrevê-los de memória depois. O poema “Confissões”, publicado em 1938, trata das confissões forçadas, sob tortura, de dezenas de velhos bolcheviques nos Processos de Moscou.

[Fontes: Victor Serge; James Brook; Richard Greeman. Resistance: Poems by Victor Serge. San Francisco: City Lights Books, 2001. Ver também Victor Serge. O ano 1 da Revolução Russa. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2007]

 

Confissões

Nunca fomos o que somos,
as caras de nossas vidas não são nossas,
as vozes que você ouve, as vozes que falaram
não são nossas,
nada do que você viu é verdade,
nada do que fizemos é verdade,
somos totalmente diferentes.

Nós nunca pensamos nossos pensamentos,
acreditamos em nossa fé,
quisemos nossa vontade,
hoje nossa única verdade é o desespero,
esta confissão de uma degeneração louca,
esta queda na escuridão
onde a fé é renunciada e recuperada uma última vez.

Não temos rostos nem nomes, nem força nem passado
– pois tudo está acabado e já está ultrapassado
Nós nunca deveríamos ter existido
– pois tudo está devastado
E somos nós os culpados, nós os imperdoáveis,
nós os mais miseráveis, nós os mais arruinados,
somos nós … saiba isso
– e seja salvo!

Acredite em nossas confissões, junte-se ao nosso juramento
de completa obediência: despreze nossos repúdios
Uma vez esmagada, a velha revolta nada mais é do que obediência.

Que aqueles que são menos devotados se orgulhem,
que aqueles que se perdoaram se orgulhem,
que aqueles que são mais devotados sejam orgulhosas,
que aqueles que não desistiram se orgulhem.

Se despertássemos os povos e fizéssemos estremecer os continentes,
atiramos nos poderosos, destruímos os antigos exércitos, as velhas cidades,
começamos a fazer tudo de novo com essas velhas pedras sujas,
essas mãos cansadas, e as almas escassas que nos deixaram,
não era para pechinchar com você agora,
revolução triste, nossa mãe, nossa filha, nossa carne,
nosso amanhecer decapitado, nossa noite com suas estrelas de esquelha,
com sua inexplicável Via Láctea rasgada em pedaços.

Se você se trair, o que podemos fazer senão nos trair com você?
Depois de vidas como essas, que morte poderia haver, senão, nessa traição, morrer por você?
O que mais poderíamos ter feito do que nos ajoelhar diante de você nessa vergonha e agonia,
se ao servi-lo invocamos essa escuridão?

Se outros acham em seu coração esfaqueado mil vezes
os meios para viver e resistir a você, a fim de salvá-la em vinte anos, cem anos,
abençoados são por nós que nunca acreditamos em bênçãos,
abençoados são eles em nossos corações secretos
por nós que nada mais podemos fazer.

Não pertencemos mais ao futuro, pertencemos inteiramente a esta época:
sangrenta e vil em seu amor pela humanidade,
estamos sangrentos e vis como os homens desta época.

Nos pisoteie, nos insulte, cuspa em nós,
vomite-nos,
massacre-nos,
nosso amor é maior do que esta humilhação,
este sofrimento,
este massacre,
suas bocas iníquas são justas, suas bocas são nossas bocas,
nós estamos em você,
suas balas são nossas, e nossa agonia mortal, nossa morte, nossa infâmia são suas, e sua vasta vida nestes campos trabalhados por séculos é nossa para sempre!

*Vitor Serge (1890-1947) foi escritor e ativista político russo. Autor entre outros livros de Memórias de um revolucionário (Companhia das Letras).

*Sean Purdy é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Everaldo de Oliveira Andrade Tales Ab'Sáber Luiz Eduardo Soares Marcos Silva Jean Pierre Chauvin José Costa Júnior Francisco Pereira de Farias Ricardo Fabbrini Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fábio Konder Comparato Ricardo Musse Ricardo Antunes Alexandre de Lima Castro Tranjan Valerio Arcary Henry Burnett Annateresa Fabris Ronaldo Tadeu de Souza Claudio Katz Eduardo Borges Bernardo Ricupero Atilio A. Boron José Machado Moita Neto Luiz Roberto Alves Tarso Genro Luiz Renato Martins Alexandre Aragão de Albuquerque Samuel Kilsztajn Luiz Marques Chico Whitaker Igor Felippe Santos Yuri Martins-Fontes Paulo Nogueira Batista Jr Jorge Luiz Souto Maior Carla Teixeira Gerson Almeida Vladimir Safatle Marjorie C. Marona Vinício Carrilho Martinez Alexandre de Freitas Barbosa Ronald Rocha Eliziário Andrade Manuel Domingos Neto Flávio Aguiar José Micaelson Lacerda Morais Marilia Pacheco Fiorillo Slavoj Žižek Milton Pinheiro Anderson Alves Esteves Flávio R. Kothe Mariarosaria Fabris Lorenzo Vitral Luís Fernando Vitagliano Eleonora Albano Rafael R. Ioris João Lanari Bo Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Bucci João Feres Júnior Renato Dagnino Paulo Capel Narvai Marcelo Módolo Paulo Martins Otaviano Helene Vanderlei Tenório Afrânio Catani Manchetômetro João Carlos Loebens Jorge Branco Ronald León Núñez Marcelo Guimarães Lima Anselm Jappe Gilberto Maringoni Ladislau Dowbor Leonardo Boff Alysson Leandro Mascaro Luciano Nascimento Gilberto Lopes Gabriel Cohn Érico Andrade Liszt Vieira Marcos Aurélio da Silva Rubens Pinto Lyra Tadeu Valadares Lucas Fiaschetti Estevez Antônio Sales Rios Neto André Singer Leonardo Avritzer Daniel Brazil Elias Jabbour Benicio Viero Schmidt Boaventura de Sousa Santos Luiz Werneck Vianna Matheus Silveira de Souza Ari Marcelo Solon Maria Rita Kehl Luis Felipe Miguel Rodrigo de Faria João Paulo Ayub Fonseca Marilena Chauí Julian Rodrigues Heraldo Campos Roberto Bueno Juarez Guimarães Leda Maria Paulani Kátia Gerab Baggio José Luís Fiori Valerio Arcary Salem Nasser Bruno Machado Airton Paschoa Luiz Carlos Bresser-Pereira Fernão Pessoa Ramos Celso Favaretto Sandra Bitencourt Sergio Amadeu da Silveira Chico Alencar Daniel Costa Eleutério F. S. Prado José Dirceu Henri Acselrad Thomas Piketty Daniel Afonso da Silva Paulo Sérgio Pinheiro Celso Frederico André Márcio Neves Soares Carlos Tautz Armando Boito Francisco Fernandes Ladeira Mário Maestri João Adolfo Hansen Caio Bugiato Dênis de Moraes Marcus Ianoni Leonardo Sacramento Antonino Infranca Osvaldo Coggiola Michael Löwy Andrew Korybko Fernando Nogueira da Costa Walnice Nogueira Galvão Denilson Cordeiro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Remy José Fontana Jean Marc Von Der Weid José Raimundo Trindade João Sette Whitaker Ferreira Bento Prado Jr. Paulo Fernandes Silveira Dennis Oliveira Michael Roberts Roberto Noritomi João Carlos Salles Luiz Bernardo Pericás Priscila Figueiredo Ricardo Abramovay Antonio Martins José Geraldo Couto Eugênio Trivinho Berenice Bento Lincoln Secco

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada