Consciência negra – o 13 de maio no rap e no reggae

Marcelo Guimarães Lima, Aftermach, s/d.
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Por OSNAN SILVA DE SOUZA*

A consciência negra repudia o 13 de maio, devido ao 14 de maio, isto é, o pós-Abolição e os seus desdobramentos nos nossos dias

1.

“O seu talento não entra no MASP, [nem] no Cacilda Becker/ 13 de Maio é pegadinha do João Kleber”. Este fragmento finaliza a música Pacto com o diabo, do grupo de rap Facção Central. Não obstante o seu título seja provocativo, a narrativa da canção não dá ênfase a um suposto acordo entre o homem e um ser sobrenatural do mal, muito menos se concentra em teorias conspiratórias. Há, com efeito, críticas às contradições do capitalismo, como a desigualdade social, desemprego, fomento ao consumismo e a criminalidade.

No entanto, ao refletir sobre a falta de oportunidades para a população pobre e os obstáculos para o acesso à cidadania plena, é anunciada a rima mencionada. Estabelece-se, assim, uma relação entre as problemáticas atuais e a Abolição, ou mais precisamente o pós-Abolição: o fato de haver em determinados espaços restrições, sejam explícitas, sejam veladas, à presença de segmentos da sociedade brasileira – pode-se falar em desigualdade social e racismo – faz da Abolição uma piada (talvez de mau gosto).

Vale a pena contemplarmos outro trecho da música – o quarto de empregados é relacionado às instalações dos cativos durante o regime escravista no Brasil:

Chega de quarto de empregado, a senzala do apê de Angra/
No Big meu perfil no walkie-talkie do segurança (…).
Dói ver o meu filho esperando o caminhão/
Do empresário com brinquedo, fingindo boa ação.
Gasta mil com boneca e bola, vai que cola a reportagem/
A empresa no horário nobre, puta merchandising.
Se pudesse matava a vadia do comercial de sandalinha/
Celular, pulseirinha, mas não pra sua filha.
Querem certificado da SOS computadores/
Pra gritar térreo, e eu de ascensorista nos elevadores.

Será que estou enxergando coisas demais na arte do grupo de rap paulista? Vejamos outra música, pertencente ao mesmo álbum – O espetáculo do circo dos horrores –, a Front de Madeirite. Logo de início, ouvimos: “a fome não só corrói a carne; corrói a Lei Áurea/ Lhe faz derrubar com caminhão o portão da penitenciária”. Se tanto a música Pacto com diabo quanto a Front de Madeirite inserem o 13 de Maio nas mais variadas discussões, isto é, não resumem o pós-Abolição a temáticas raciais, o Espetáculo dos circos dos horrores, um álbum duplo lançado em 2006, é constituído por faixas que tratam desde questões como o abuso sofrido por menores, passando pela negligência do Estado para com deficientes físicos, até a criminalidade.

O complexo desenrolar da emancipação negra no Brasil marca uma presença não pontual nem aleatória, mas chave e contínua no pensamento dos rappers. Na verdade, a música que nomeia o álbum se inicia da seguinte forma: “respeitável público, com orgulho apresento/ O espetáculo em cartaz desde abril de 1500”. As canções são feitas com diversas referências ao passado escravista – “casa grande”, “senzala”; “Zumbi”; “quilombo”, etc.

O passado é apresentado como uma forma de explicar o presente – uma problemática cara aos historiadores. Há uma relação entre esses dois períodos. Oito anos depois, após lançar o seu primeiro álbum solo, continuamos a vislumbrar tal perspectiva no pensamento de Eduardo Taddeo. Assim, podemos ouvir em Não existem civis: “me treinei pra não crer na autoria desconhecida/ Que joga no tráfico mortes na periferia. Pra ler no crânio do GCM [Guarda Civil Municipal] partido/ Que a Lei Áurea é hedionda como o Escravismo”. Mais ainda, desta vez em Vozes das estatísticas:

Sou o pilar do stress pós-traumático do governo/
Analfabeto funcional que interpreta texto.
Discordo da tese do estudioso em conflito urbano/
Paz não tá ligada a gancho de abrir tampa de crânio.
Onde escreve homicídios e déficit cultural/
Eu leio “pós-Abolição ficcional”.

A leitura de eventos do presente – eventos que denunciam a criminalidade, as desigualdades, a fome, o racismo e outras formas de violência existentes nas grandes periferias do Brasil – revela o horror do 13 de Maio, ou melhor, da forma como foi concebido e dos seus desdobramentos. A Lei campeã da liberdade seria constituída de uma perversidade ao nível do próprio regime escravista. Vejamos a música Substância Venenosa:

Não precisei de Vox Populi pra ver que os de pt [pistola]/
Tem em comum a ausência do nome do pai no RG.
Que explode a Cherokee blindada do tesoureiro/
Porque o 13 de Maio só vigora com morteiro.
Ainda nos treinam pra ser os escravos da casa/
Agradecidos por servir a lagosta defumada.
Ainda definhamos onde cirurgiões e ortopedistas/
Dão lugar a analistas de sangue papiloscopistas.

Eduardo Taddeo nunca se apresentou como um integrante de algum movimento negro específico; as suas letras nunca foram dedicadas exclusivamente a temáticas raciais; os seus álbuns e letras nunca tiveram uma perspectiva “afro” (ou “afrocentrada”). Isso evidencia ainda mais a importância que o pós-Abolição assume em suas reflexões. O rapper aponta para o desenrolar da Abolição nas questões políticas, econômicas e sociais atuais. Tanto durante os seus muitos anos como vocalista do grupo Facção Central quanto agora, cantando individualmente, Eduardo nos ajuda a compreender como a questão racial se faz presente de maneira intensa nos mais diversos problemas sociais. Não apenas isso: os problemas do presente podem e devem – de acordo com o seu pensamento – ser compreendido a partir do passado; sobretudo o passado escravista e pós-escravista.

Há na historiografia uma grande discussão atinente às tentativas de se explicar o tempo atual como um desdobrar direto e contínuo do tempo pretérito, isto é, uma suposta relação de causa e efeito entre passado e presente. Do mesmo modo, debate-se também, de maneira muito intensa, os significados do 13 de maio. Busca-se, com razão e lucidez, demonstrar que a Lei Áurea foi resultado, de modo direto ou indireto, de uma forte mobilização de diversos segmentos da sociedade, sobretudo de sua parcela negra, seja os escravizados, seja os abolicionistas.

Nenhum historiador nega, porém, que a Lei foi negligente e mesmo perversa para com os ex-cativos. Com efeito, desde o 14 de maio de 1888, a Lei Áurea, o que teria motivado a sua assinatura e os seus significados têm sido alvos de acirradas disputas e narrativas de diversos grupos (muitas vezes antagônicos) da sociedade brasileira. O rap, de forma artística e eloquente, entra nessa briga. A perspectiva de Eduardo encontra consonância em outros grupos e rappers, como o GOG, Racionais Mc’s, A286, Inquérito e muitos outros.

2.

Mas, além disso, é um movimento significativamente presente nas canções de Reggae. Podemos vislumbrar tal fenômeno nas letras de um grande nome do ritmo musical, Edson Gomes:

Eu vou contar pra vocês
Certa história do Brasil
Foi quando Cabral descobriu
Este país tropical
Um certo povo surgiu
Vindo de um certo lugar
Forçado a trabalhar neste imenso país
E era o chicote no ar
Era o chicote a estalar
E era o chicote a cortar
Era o chicote a sangrar
Um, dois, três até hoje dói
Um, dois, três, bateu mais de uma vez
Por isso é que a gente não tem vez
Por isso é que a gente sempre está
Do lado de fora
Por isso é que a gente sempre está
Lá na cozinha
Por isso é que a gente sempre está fazendo
O papel menor
Ou o papel pior

A história do Brasil é marcada também pelos eventos traumáticos do tráfico e da escravização do povo negro. É um trauma (doloroso demais) que se faz sentir de diversas formas na consciência, na memória e na sociedade. O presente carrega as consequências do passado. O processo de exclusão e desigualdade sociorracial só é compreendido à luz do colonialismo, do processo de escravização de africanos e os seus descendentes. Nesse sentido, História do Brasil, de Edson Gomes, está em pleno diálogo com Pacto com o diabo, de Eduardo Taddeo.

Em ambas as músicas enxergamos que os papéis que os negros ocupam ou são impedidos de ocupar está ligado à escravidão e ao pós-Abolição. Mas, em ambos os artistas, encontramos também um retorno ao passado para mudar o presente. Na mesma Vozes das estatísticas, ouvimos Eduardo Taddeo rimar: “Ancestrais não queimaram canaviais de manhã/ Para sermos depósitos de lixo midiático e gordura trans. Para sermos transformados em amebas biônicas/ Que teclam suicídio na urna eletrônica”; e em Capturados, de Edson Gomes:

Somos filhos dos escravos
Não temos vergonha de assumir
Somos filhos dos capturados
Não temos vergonha de admitir
Somos filhos dos escravos
E estamos a fim de tirar essa máscara
Revelando a história
De um povo roubado, adulterado e negado a ser feliz
Um povo castrado, lesionado e negado a ser feliz
Somos filhos dos escravos
E estamos a fim de arrancar essa máscara
Revelando a história
De um povo que habita lá dentro do gueto
Capital da miséria
Crianças que vivem circulando os sinais
São aprendizes de marginais
Somos filhos dos escravos, somos, somos, somos e somos.

Não apenas há uma relação entre o passado escravista, a Abolição e o pós-Abolição que alcança os nossos dias. Invoca-se também – de maneira muito orgulhosa – uma conexão entre os escravizados de outrora e os afro-brasileiros de hoje, os seus descendentes, que são chamados a contar a sua História. As violências dos nossos dias são denunciadas no mesmo ensejo que se denuncia a violência ocorrida ao longo dos séculos. Cobra-se justiça para o homem negro e para o seu antepassado. Assim o é em Fato consumado, de Edson Gomes: “Toda miséria que o povo passa/ Quem vai pagar?. Toda essa fome que o povo passa/ Quem vai pagar?. Por todo esse sangue derramado/ Nas pedras do Pelô [pelourinho]. De cada homem chicoteado/ Nas pedras do Pelô [pelourinho]”.

Tanto Eduardo Taddeo quanto Edson Gomes – tanto o Rap quanto o Reggae – estão tratando sobre direitos e cidadania no passado e no presente. Os artistas estão cientes das mudanças ocorridas ao longo do tempo, das transformações e conquistas. Mas têm como pretensão centralizar luz sobre o racismo que exclui o homem negro de determinados espaços, independentemente, de seus talentos e habilidades; um racismo que busca empurrar a mulher negra para cozinha do branco.

Um racismo que gera violência policial, mortes de jovens negros, violência obstétrica contra a mulher negra, que veem muitas vezes seus filhos serem mortos dentro de suas pernas. Um racismo que é constituído também por diversas formas de hostilidades que atingem de maneira brutal e covarde a população afrodescendente. A consciência negra repudia o 13 de maio, devido ao 14 de maio, isto é, o pós-Abolição e os seus desdobramentos nos nossos dias. É justo encerramos com Adão Negro, de Adão Negro:

Apartheid disfarçado todo dia
Quando me olho não me vejo na TV
Quando me vejo eu estou sempre na cozinha
Ou na favela, submisso ao poder
Já fui mucama, mas agora sou neguinha
“Minha pretinha, nós gostamos de você”
Levante a saia, saia correndo pro quarto
Na madrugada, patrãozinho quer te ver
Será que um dia eu serei a patroa
Sonho que um dia isso possa acontecer
Ficar na sala não ir mais para a cozinha
Agora digo o que vejo na TV
Um som negro
Um Deus negro
Um Adão negro
Viva o povo negro!

*Osnan Silva de Souza é doutorando em história na Universidade de Brasília (UnB).


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