Correntes artísticas na Rússia revolucionária

Natalia Goncharova, "O ciclista", 1913, pintura cubo-futurista.
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Por CELSO FREDERICO*

Vanguardas russas: quando a revolução quis forjar novas linguagens, a própria arte virou campo de batalha

Futurismo

“Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”: a conhecida frase de Maiakóvski tornou-se a bandeira de um importante movimento que teve como marco inaugural o manifesto “Uma bofetada no gosto do público, de 1912. A estridente ruptura com o passado era então apresentada em tom insolente: “O clarim do tempo ecoa através de nós pela arte da palavra. O passado é estreito. A Academia e Puskin são mais incompreensíveis que os hieroglifos. Lancemos Puskin, Tolstoi, etc., etc., fora das margens do tempo atual”.[i]

No poema A nuvem de calças, Maiakóvski se apresentava como o “Zaratustra atual” em sua fúria nietzscheana voltada ao combate das sobras de um passado decadente que teimava em sair de cena.

“Arte da palavra” significa que esta não deveria mais ficar restrita à função denotativa, designativa, de caráter representacional. O vocabulário poético deveria agora ser enriquecido com “palavras arbitrárias e derivadas”, segundo pensavam aqueles jovens que nutriam “uma raiva irreprimível pela linguagem existente”. Os signatários do manifesto, D. Bourliouk, Aleksandr Kroutchonykh, V. Maiakóvski e Viktor Khlebnikov, proclamaram, sem meias palavras, a ruptura com o passado artístico num momento de ebulição social.

A revolução em curso, diziam, exigia uma transformação radical na própria linguagem. O tom panfletário, próprio de manifestos feitos por jovens (Maiakóvski tinha então 19 anos), acompanhou as demais declarações que reiteraram o desprezo pela arte antiga. “Hoje nós cuspimos o passado”; e nos propomos a “varrer o fio glacial dos cânones de toda a espécie que gelam toda a inspiração”.

A arte futurista, segundo observou um crítico literário, surgiu como “reelaboração irreverente do sonho wagneriano da Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”). A investida contra a gramática e a sintaxe, a ênfase nas qualidades sonoras e pictóricas das palavras, recaia sobre o próprio livro enquanto tal, essas fileiras de palavras devidamente alinhadas pela página que haviam se tornado o modo de comunicação dominante na sociedade europeia”.[ii]

Um dos participantes do movimento, Serge Trétiakov, expressou sua recusa à “frívola humanização genérica da arte” e seus efeitos anestesiantes sobre o psiquismo dos trabalhadores: “a arte das etapas sociais passadas (o hipnotismo do romantismo + estética dos simbolistas e a arte do realismo + o naturalismo + descrição dos costumes) é hostil à transformação ditada pela revolução”.[iii]

O Futurismo, ao contrário, quer realizar a arte como “qualificação máxima dos métodos de tratamento produtivo dos materiais”[iv] para, assim, “reorganizar o psiquismo dos trabalhadores visando o máximo de produtividade, de espírito de invenção, de firmeza nos fins a atingir”. Daí a luta contra o passado, do incentivo à “demolição o mais rápido possível da arte burguesa, fetichista, autárquica, caótica e individualista”.[v]

De modo semelhante, o Futurismo investiu contra a linguagem cotidiana prosaica em nome da linguagem poética que atua sobre o aspecto sonoro da linguagem, buscando sonoridades significantes. A linguagem poética autonomizada, liberta da função simbólica, seguiu um caminho paralelo à pintura cubista. Para nomear essa junção entre palavra, som e imagem, os poetas concretistas brasileiros (Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari), herdeiros daquela corrente artística, criaram a expressão “verbivocovisual”.

A nova linguagem, era então convocada pelos futuristas russos para romper com o passado e agir sobre a consciência dos trabalhadores. Construção do socialismo = construção de uma nova arte conduzida por uma nova linguagem.

O caráter iconoclasta dos manifestos futuristas, rompendo radicalmente com o passado, estava, contudo, ancorado numa preocupação teórica rigorosa que aproximou os jovens artistas do célebre linguista Chakhmatov para juntos formarem o Círculo Linguístico de Moscou. O que à primeira vista parecia ser mais um inconsequente arroubo juvenil, passou a ter como suporte uma sofisticada teoria linguística preocupada em se firmar como uma ciência autônoma que, tempos depois, daria origem ao estruturalismo.

François Dosse, estudando o itinerário do movimento estruturalista, observou: “O êxito do estruturalismo na França é, entre outros fatores o resultado de um encontro particularmente fecundo em 1942, em Nova York, entre Claude Lévi-Strauss e Roman Jakobson. […]. A amizade entre eles “vai produzir seu máximo brilho na unidade de suas obras respectivas, as quais pertencem ao mesmo movimento de pensamento e de método. Se Jakobson se deixa enganar quando vê em Lévi-Strauss aquele com quem vai poder beber a noite inteira, em contrapartida, a cumplicidade de ambos nunca será desmentida. No entardecer da vida, Roman Jakobson envia uma separata de um artigo seu ao amigo, com a dedicatória: “A meu irão Claude”. Por um lado, Lévi-Strauss adota modelo fonológico em que Jakobson o iniciou; por outro, Jakobson abre a linguística para a antropologia”.[vi]

Os poetas juntaram-se assim aos estudiosos de uma corrente da linguística, que passou a ser chamada de formalista, cuja influência durante todo o século XX não ficou restrita à linguística, pois a partir dela expandiu-se para diversos campos das ciências sociais.

Foi frutífero o intercâmbio frutífero entre artísticas e estudiosos da linguagem: o Futurismo “fornecia slogans de seus poetas (Khlébnilov, Maiakóvski, Kruchennykh), para receber generosamente em troca explicação e justificação”.[vii] O objetivo visado era a construção de uma ciência literária autônoma que tinha como objeto não mais a literatura e sim, como disse Roman Jakobson, a “literariedade”. Desse modo, repudiava-se as antigas formas de interpretação do texto literário feitas tradicionalmente a partir da sociologia, da psicologia, da biografia do autor ou de qualquer outra explicação extra-linguística.

Tratava-se, doravante, de centrar a atenção nos recursos técnicos utilizados na fabricação da obra. O apego à técnica, por sua vez, ligava-se intimamente ao projeto da construção do socialismo. Libertada das relações de produção burguesas, as forças produtivas enfim poderiam se desenvolver livremente, tal como Marx prognosticara e tal como os futuristas pretendiam aplica-la à esfera artística.

Para libertar a palavra das convenções, os futuristas criaram uma linguagem, por eles chamada “transmental” para, através dela, revelar o valor autônomo da palavra, sua sonoridade, sua dimensão pictórica. A palavra assim libertou-se da obrigação de significar algo, de ser portadora de um sentido.

Esse ousado projeto, como era de se esperar, encontrou forte reação nas diversas tendências literárias que, de uma forma ou de outra, tinham como parâmetro o realismo. Além disso, o desprezo pelos fatores extra-linguísticos incluía também a antiga preocupação com o “conteúdo social” da arte. Nesse ponto, como veremos no próximo artigo, o Futurismo entrava em choque que com o marxismo.

As animosidades se exasperaram durante o Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos, em 1934. O poeta futurista S. Kirsanov desabafou durante o evento: “Não podemos tocar nos problemas da forma poética, nas metáforas, na rima ou no epíteto, sem provocarmos a réplica imediata: detenham os formalistas! Cada qual é ameaçado de ser acusado do crime formalista. Esse termo tornou-se um saco de pancada, para exercitar os bíceps da crítica. Toda menção das “figuras fônicas” ou da “semântica” é automaticamente seguida de uma expressão de repulsa: morte ao formalista! Alguns críticos canibais transformaram essa palavra de ordem em grito de guerra, para defenderem sua própria ignorância, na prática e na teoria, da arte poética para escalpelarem todo aquele que perturbar a maloca de seu obscurantismo”.[viii]

Produtivismo/Construtivismo

Um segundo movimento importante, agrupou inicialmente os Produtivistas que passaram a se chamar, posteriormente, Construtivistas. Esse grupo reuniu artistas como A. M. Ródtchenko, Boris Arvatov, Osip Brik, Boris Kusner e N. Barakubin. Todos eles, entusiasmados com a revolução, propunham dar um sentido à arte.

Debatendo-se contra a “pintura de cavalete”, imagem do artista solitário que fazia uma arte sem utilidade social, mero “enfeite”, defendiam a integração da arte à realidade – unindo, desse modo, a arte com o mundo produtivo (no caso: a construção do socialismo). A expressão “pintura de cavalete” teve o seu significado ampliado por eles para nomear as formas tradicionais de arte, desligadas da vida produtiva e praticadas por aqueles artistas que “sabem desenhar florinhas e não construir objetos”.[ix]

A “arte pura”, artesanal, deveria, assim, dar lugar à arte industrial, produtiva: o artista, deve se transformar num engenheiro integrado à produção. Antigamente, o artista permanecia fora e isolado da vida social. A estética da contemplação ensinava a admirar passivamente uma ilusão, a fugir da realidade. A arte de imitação, a “velha estética de arabescos e das florinhas”, em sua relação de exterioridade com a vida real, produtiva, deveria transformar-se numa atividade utilitária voltada para a reconstrução da realidade social, unindo-se aos demais esforços empenhados na edificação da nova ordem.

Integrando-se à vida produtiva a arte perde a sua autonomia, devendo autosuprimir-se enquanto tal. O manifesto dos Produtivistas, de 1920, encerrava-se com as seguintes palavras de ordem:

“1. Abaixo a arte, viva a técnica!

2. A religião é mentira, a arte é mentira!

3. Mata-se até os últimos restos do pensamento ao ligá-los a arte.

4. Abaixo a manutenção das tradições artísticas! Viva o técnico produtivista!

5. Abaixo a arte, que só mascara a impotência da humanidade!

6. A arte produtiva do presente é a vida construtiva!” [x]

Em 1923, os Construtivistas se unem ao Futurismo para formar a LEF (abreviatura de Frente esquerda das artes). Maiakóvski, redator do manifesto, reafirmou enfaticamente o compromisso de todos com a revolução. A fase iconoclasta do início do movimento futurista cedeu lugar à politização engajada após o movimento ter se dividido entre uma “direita” que se afastou da política e uma aguerrida “esquerda” com Maiakóvski, “o coração turbulento da revolução”, à frente.

Um dos mais destacados representantes da LEF, Boris Arvatov, em 1926, colocou como objetivo do grupo a “reeducação dos artistas de molde a fazer deles engenheiros” [xi]. Para “ensinar engenharia aos artistas, introduzir os seus métodos no interior da produção”, os Construtivistas criaram diversas oficinas técnico-artísticas.

A crença no poder libertador da técnica acompanhava o processo de industrialização e a introdução dos métodos tayloristas na indústria. A arte, como parte integrante desse contexto, deveria abandonar os procedimentos artesanais e lançar-se à produção de objetos úteis utilizando todos os recursos fornecidos pela técnica. Esta aproximação entre desenvolvimento tecnológico e arte reaparecerá mais tarde em Walter Benjamin no famoso texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. A dívida de Walter Benjamin com os Construtivistas transparece claramente no ensaio “O autor como produtor”.

Também para o teatro a LEF tinha propostas ousadas. Contra o procedimento artesanal que “opera fora da vida, porque não pode transfigurar criativamente a própria vida” [xii], Arvatov opunha “o teatro como produção, o teatro como fábrica de homens qualificados, eis o que escreverá na sua bandeira, mais tarde ou mais cedo a classe operária”, pois “a alta técnica e a mecanização fazem medo apenas aos artesãos do esteticismo”.

A vida moderna, contrariando os esteticistas, “traz consigo para o teatro, não apenas os próprios processos de ação, mas também uma técnica própria, moderna: o cinematógrafo, as máquinas, a eletricidade, o elevador, o avião” [xiii]. Os recursos tecnológicos são chamados assim para revolucionar um teatro voltado para a agitação e a propaganda.

 Esse entusiasmo com o progresso técnico influenciou diretamente o teatro de Piscator e Brecht que, na Alemanha, introduziram nas representações esteiras rolantes, palco giratório, projeção de filmes etc. Nos textos teóricos de Brecht são constantes expressões como montagem, máquina, processo, experimento, ciência, produção etc.

A apologia do progresso partia de uma afirmação de Marx segundo a qual as revoluções ocorrem quando o desenvolvimento das forças produtivas entrava em contradição com as relações de produção. De um lado, nos países socialistas, acreditava-se que as forças produtivas agora iriam se desenvolver, livres que estavam do bloqueio imposto pelas relações de produção (toda a propaganda soviética esteve sempre voltada para relatar os êxitos da agricultura, o novo recorde na produção de aço etc.).

De outro lado, nos países capitalistas desenvolvidos, disseminou-se a crença que o nível de desenvolvimento já atingido anunciava a inevitável revolução. A visão dualista, separando forças produtivas e relações de produção, daria lugar ao embate entre as interpretações historicistas e as althusserianas do marxismo. Num veio teórico diferente, os teóricos frankfurtianos farão a crítica do progresso e da racionalidade instrumental.

As propostas do Construtivismo russo reapareceram na Bauhaus durante a República de Weimar, especialmente na arquitetura. Tempos depois, o desejo de fundir arte e vida criando objetos uteis foi retomado pelo capital, que tudo absorve, neutraliza e desnatura. Assim, o empenho para construir objetos uteis para uma sociedade igualitária e desse modo suprimir a arte enquanto esfera separada do mundo produtivo, deu lugar à fusão entre arte e produção capitalista: a arte não se extinguiu, ela passou a embelezar a mercadoria ao se fazer presente no design, na embalagem etc.

Proletkult

O mais influente grupo artístico, o Proletkult, foi fundado oficialmente em 1917. Entre os participantes destacam-se Bogdánov, um dos dirigentes do partido bolchevique, médico psiquiatra, autor de livros de filosofia e romances de ficção científica [xiv], e seu cunhado Lunatchárski, respeitado intelectual, crítico literário e dramaturgo que foi nomeado por Lênin para ser o Comissário do Povo para a Educação (órgão responsável pela organização da educação e da cultura).

Após a derrota da revolução de 1905, boa parte da direção do partido seguiu para o exílio. Na ilha de Capri, Bogdánov, Lunatchárski e Máximo Gorki criaram uma escola para a formação de quadros partidários[xv], transferindo-se em 1910-1 para Bolonha. Essa experiência foi o embrião da luta por uma cultura proletária. Após a revolução, instaurou-se o Proletkult e Lunatchárski foi nomeado Comissário do Povo para a Educação.

O Proletkult teve um espantoso crescimento, chegando a ter 500 mil filiados enraizando-se em muitos locais onde o partido não existia. Num ativismo impressionante, criou centenas de clubes, ateliês de artes plásticas, teatro, equipes de criação literária, lançou jornais, criou editoras etc. Toda essa movimentação cultural acabou atraindo artistas de outras tendências artísticas como Maiakóvski, Meyerhold e Eisenstein, Tatlin e Rodchenko, entre outros.

Enfim, tornou-se um gigantesco movimento de massas com forte poder de atração que corria paralelamente ao partido, reivindicando plena autonomia em relação às instâncias partidárias e ao Estado. As tarefas deveriam ser assim distribuídas: a política é atribuição do partido, as questões econômicas ficam a cargo do sindicato e a cultura deve ser gerida pelo Proletkult.

A Primeira Conferência Pan-Russa das Organizações do Proletkcult, em setembro de 1918, declarava: “A cultura proletária deve ter a marca do socialismo revolucionário para que o proletariado possa assumir sua nova hierarquia, organizar seus sentimentos mediante a nova arte e configurar suas relações vitais com um novo espírito autenticamente proletário, isto é, coletivista”.[xvi]

O movimento pleiteava autonomia em relação ao Estado e ao partido configurando, assim, uma dualidade de poder, o que, evidentemente, incomodava Vladímir Lênin: além de atuar fora das instâncias governamentais, o Proletkult agia dentro do partido como uma fração organizada. As antigas divergências teóricas entre Lênin e Bogdánov, sobre a qual falaremos no próximo capítulo, agora, tornaram-se uma explosiva divergência política.

O Proletkult não parava de crescer irradiando um entusiasmo na classe operária. Comentando o entusiasmo então reinante, Henry Deluy observou: “Existe aqui uma originalidade do Proletkult que é a própria originalidade da revolução: um apelo à intervenção das massas, a atenção às necessidades e aos desejos das massas, o apelo à iniciativa da maioria, a vontade de ampliar a noção de cultura, de escapar (sortir) de suas armas e bagagens, de conceber uma função diferente e um papel que não seja aquele de guardião do templo”.[xvii]

A afirmação da cultura proletária e sua oposição à cultura burguesa foi tema que suscitou discussões desde o início do movimento. Os setores mais radicalizados pretendiam fazer tabula rasa da cultura burguesa, algo a ser destruído para em seu lugar se firmar a cultura proletária. E mais: exigiam todo o poder no campo cultural.

Lunatchárski, preocupado com o radicalismo, buscava preservar a antiga cultura, que ele tanto prezava, das investidas iconoclastas, preocupado sempre com a preservação dos museus. Instruído por Lênin, recusava-se a conceder monopólio a qualquer dos grupos artísticos. Assim, o antigo defensor da cultura proletária passou a ser visto como um trânsfuga a ser combatido.

Uma posição intermediária era defendida por Bogdánov. Para ele, o proletariado deveria manter uma posição crítica em relação à cultura anterior, passando-a pelo filtro da consciência de classe do proletariado. A consolidação da cultura proletária exigia a criação de instrumentos próprios, como a criação de uma Universidade Proletária, pois considerava perigoso enviar os operários para as universidades existentes onde seriam contaminados pela ideologia burguesa.[xviii]

A ideia central, desde a experiência em Capri e Bolonha, era formar uma intelligentsia proletária, em oposição aos intelectuais revolucionários para, com ela, exercer o trabalho pedagógico sobre o conjunto da classe.

Cultura proletária, para Bogdánov, não se confunde com a chamada “cultura popular”, pois ela é um produto do proletariado revolucionário, radicada nas experiências acumuladas no mundo do trabalho industrial. Os camponeses que formavam a grande maioria da população russa são, portanto, excluídos.

A glorificação do operário industrial e da grande indústria mecanizada configuram o que Dominique Lecourt chamou de “uma verdadeira mística do trabalho” que iria sobreviver ao Proletkult e fornecer, ironicamente, o cimento ideológico do stalinismo e de sua estética, o realismo socialista.[xix]

A “mística do trabalho”, o elogio da técnica, da produção foi a tônica comum que aproximou tendências artísticas tão diferentes entre si como os futuristas, construtivistas e o Proletkult.

No campo da literatura, a crença no progresso pelo progresso, teve consequências, gerando uma construção deformada das personagens literárias. O revolucionário Victor Serge, em 1932, tocou no ponto:

– “Um autor dramático afirma que o operário só tem vida verdadeira na fábrica. Um parêntese pessoal: nunca vi um operário desse tipo na URSS. É o triunfo da banalidade da banalidade. Mais ainda: de uma banalidade fundada sobre uma ideia falsa, que nada tem de socialista. A ideia do produtor a serviço da produção. A concepção proletária é diametralmente oposta. É a da produção a serviço do produtor. […].

O socialismo quer trabalhadores que sejam homens completos, bem vivos, tanto na fábrica como fora dela, tanto fora da fábrica quanto dentro dela. Isso parece óbvio. Mas então por que obras desse tipo? Quando um jovem operário “cansado de ideologia”, escreveu a Górki dizendo querer “distrair-se” (“eu queria que o camponês, ao invés de abraçar o trator abraça-se a camponesa). […]. O próprio escritor lhe respondeu: “Distrair-se é a mais antiga palavra-de-ordem dos parasitas: os outros que trabalhem, nós nos distraímos!”. Essa resposta desconcertante à solicitação mais natural revela que está subjacente a ideia de que o produtor deve estar a serviço da produção”.[xx]

O elogio da produção, a deificação do proletário e sua pureza de princípios forjados pela fraternidade e pelo espírito coletivista, bem como a sua inventividade capaz de criar uma cultura e uma ciência (!) próprias, estão em relação antagônica com o bolchevismo.

Logo após a revolução, Bogdánov escreveu uma carta ao seu antigo companheiro Lunatchárski, lamentando seu afastamento dos antigos ideais que os uniram no passado e a “tragédia” que significou ele aceitar o papel de Comissário. Bogdánov criticou duramente a revolução que, para ele, nada tinha de proletária ou socialista.

Tratava-se, isso sim, de “uma insurreição de soldados”, dirigida “pelo enxadrista grosseiro que é Lênin, pelo ator ególatra que é Trótski”. No final da carta, falou sobre a necessidade de se criar “um novo partido operário”, dizendo que “ficaria feliz se você voltasse ao socialismo operário. Temo que a ocasião tenha se perdido”.[xxi]

A “metafísica do trabalho”, enfim, chocou-se com a dura realidade. Bogdánov afastou-se da militância política e passou a atuar como médico. Num de seus experimentos, fez uma transfusão de sangue em si mesmo e acabou falecendo. Sob pressão, o Proletkult se dissolveu em 1923.[xxii]

Todas as correntes estéticas em disputa pretendiam a benção do Estado. Mas, os principais dirigentes bolcheviques – Lênin, Trótski e Lunatchárski – embora partidários do realismo, defendiam a neutralidade do Estado.

*Celso Frederico é professor titular aposentado da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Mórula) [https://amzn.to/3rR8n82]

Notas


[i] Todos os manifestos futuristas foram reunidos no livro Os futuristas russos (Campo de Santa Clara: Arcádia), 1973.

[ii] HEYDE, G, M. “O futurismo russo”, in BRADBURY, MALCOLM e MAcFARLANE, James (org.) O modernismo. Guia geral (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), p. 215.

[iii] TRÉTIAKOV, Serge. Dans le front guache de l´art (Paris: Maspero, 1977), p. 38.,

[iv] Idem, p. 44.

[v]  Idem, 56.

[vi] DOSSE, François. História do estruturalismo, Vol. 1 (São Paulo: Ensaio, 1993, segunda edição, 1993), p. 75.

[vii] TODOROV, Tzvetan, Teoria da literatura. Textos dos formalistas russos (São Paulo: Unesp, 2013), p. 13. Consulte-se também: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.), Teoria da literatura. Formalistas russos (Porto Alegre: Globo, 1971; POMOROSKA, Krystyna, Formalismo e futurismo (São Paulo: Perspectiva, 1972); CAVALIERI, Arlete. “Vanguardas russas: a arte revolucionária”, Revista de literatura e cultura russa, Vol. 8, número 10, 2017.

[viii] Apud JAKOBSON, Roman, “Prefácio. Rumo a uma ciência da arte poética”, in TODOROV, Tzvetan (org.), Teoria da literatura. Textos dos formalistas russos (São Paulo: Unesp, 2013), p. 11.

[ix] ARVATOV, Boris. Arte, Produção e Revolução Proletária (Lisboa: Moraes Editores, 1977), p. 59.

[x] “Programa del grupo productivista”, in MICHELI, Mario de. Las vanguardias artísticas del siglo XX” ,(Madrid: Alianza Editorial, 1983), p. 405

[xi] ARVATOV, Boris. Arte, Produção e revolução proletária, cit., p. 60.

[xii] Idem, p. 91.

[xiii] Idem, p. 92 e p. 96.

[xiv] Um deles traduzido no Brasil: Estrela vermelha (São Paulo: Boitempo, 2020).

[xv] Cf. CARUSO, Bruno. Lenin a Capri. Intellettuali, marxismo, religione (Bari: Dedalo Libri, 1978).

[xvi] Cf. GALLAS, Helga. Teoria marxista de la literatura (México: Siglo XXI, 1977), p. 62.

[xvii] DELUY, Henri. “A. A. Malinovski, aliás Verner, Riadovoi, Bakhmetev, Reinert, Maksinov, aliás Bogdpánov”, in BOGDÁNOV, A. La Science, L´Art et la classe ouvirière (Paris: François Maspero, 1977, p. 207.

[xviii][xviii] . BOGDÁNOV, A. “La universidad proletária”, in El arte y la cultura proletária (Madrid: Alberto Corazón Editor, 1979).

[xix] Cf. LECOURT, Dominique. “Bogdánov, miroir de l´íntelligensia soviétique”, in BOGDÁNOV, A. La Science, l`art et la classe ouvrière, cit.

[xx] SERGE, Victor. Literatura e revolução (São Paulo: Cadernos Ensaio, 1989), pp. 58-59.

[xxi] “Carta de Bogdánov a Lunatchárski”, in GOMIDE, Bruno Barretto (org.), Escritos de Outubro (São Paulo: Boitempo, 2017).

[xxii] Veja-se à propósito, PALMIER, Jean-Michel “A crítica de “Vperiod”: primeirio debate sobre o conceito de cultura proletária”, in Lenine. A arte e a revolução”, Vol. 2 (Lisboa: Moraes, 1976); STRADA, Vittorio, “Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”, in HOBSBAWN, Eric (org.), História do marxismo, Vol. 9 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987); ERMOLAEV, Herman, Soviet Literary theories. 1917-1934 (University of California Press, 1963), pp. 9-88; Action Poétique, número 59, 1974; PINTO, Tales dos Santos, Revolução, política e cultura em Alexander Bogdánov (Goiânia: Gárgula, 2018);


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