Covid-19: Fatos e mitos

Carlos Zilio, DILACERAMENTO, 1970, caneta hidrográfica sobre papel, 47x32,5cm
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Por MARCELO EDUARDO BIGAL*

A epidemia é grave, será longa, demandará esforços e resistência

Passados seis meses desde o início da pandemia do COVID-19, a situação nos Estados Unidos e no Brasil, os dois países mais afetados, continua a deteriorar-se. Frente a incapacidade de gerir a crise, Donald Trump e Jair M. Bolsonaro investem pesadamente na desinformação. Minimizam o perigo da epidemia (gripezinha), propagam medicamentos sem embasamento científico (cloroquina) e criam a falsa dicotomia de que ou se restaura a normalidade, ou as consequências para a economia serão pior que a epidemia, ignorando os prejuízos econômicos do abre/fecha que o fim prematuro do isolamento social causou e causará. Essa desinformação cuidadosamente planejada cria ambiente propício para o aparecimento de mitos que encontram terreno fértil em uma sociedade exausta e descrente. Vejamos alguns deles.

Mito: A mortalidade relacionada ao COVID tem diminuído

Tem-se espalhado na internet o conceito de que o vírus teria mutado para uma forma mais contagiosa e menos agressiva, o que explicaria maior número de casos com menor número de mortes. Embora saibamos que o material genético do COVID mute frequentemente, não há evidência alguma de que ele tenha se tornado menos perigoso. O senso de diminuição da mortalidade vem dos Estados Unidos, onde os casos aumentam há mais de um mês mas a mortalidade vinha mantendo-se ao redor de 400-600 mortes por dia. Dois fatos explicam isso. Em primeiro lugar, ao quebrar-se o isolamento social os jovens ocuparam as ruas  muito mais que os mais velhos A mortalidade em jovens é menor, mas eles transmitem para os mais velhos. Portanto, precisou-se de dois ciclos de transmissão (jovem para jovem e depois jovem para outros) com período “dobrado” entre aumento de casos e aumento de mortes (dois periodos contagiosos). Segundo, o primeiro grande pico de mortalidade atingiu poucos estados (Nova York, Nova Jersey) que ficaram rapidamente sobrecarregados. O atual pico atinge ao redor de 20 estados americanos, que somente agoram tem suas UTIs sobrecarregadas. Fenômeno semelhante verifica-se no Brasil.

Fato: a mortalidade nos EUA voltou a subir, como esperado, e aproxima-se novamente de mil por dia, com projeção para que, ao final de julho, aumente para cerca de cem mil casos novos diários. O vírus continua tão mortal como no começo da epidemia.

Mito: Vale a pena assumir o risco, pois a mortalidade é de apenas 1-2%

A infecção pelo COVID é erroneamente compreendida como doença pulmonar. É na verdade uma doença sistêmica, com profundo comprometimento vascular (tromboses, isquemia) e também pulmonar. É uma falácia profundamente enganosa enxergarmos o resultado final apenas como morrer ou sobreviver (2% de chance de morrer e 98% de sobreviver). Muitos dos que não morrem, incluindo os jovens, desenvolvem sequelas. Perdas pulmonares possivelmente irreversíveis mas, às vezes, não detectadas, ataques isquêmicos e amputações, entre outros, acontecem mais frequentemente que a morte, e não são capturadas ou temidas quando olhamos apenas a mortalidade. A síndrome da fadiga crônica pós COVID tem sido muito reportada, especialmente em jovens. Indivíduos sentem-se como tendo uma gripe que não passa ou melhora, e descrevem embotamento de sentidos, ou “neblina mental” que persiste após meses. Ainda, muitos sobrevivem após semanas na UTI e em ventiladores, com consequencias emocionais. Transplantes duplo de pulmão e técnicas heroicas têm salvado outros. Não morrem, mas ficam com as marcas.

Fato: Devemos temer não apenas a morte, mas as sequelas e complicações crônicas.

Mito: Melhor pegar logo e ficar imune

E quem garante que a imunidade será duradoura? Como a pandemia só tem 4-5 meses, ninguém está curado por mais que esses mesmos meses. Anthony Fauci, grande imunologista americano que, por demais sensato, é consistentemente ignorado por Trump, ao rever os dados declarou: “Podemos dizer que aqueles que se recuperam da infecção por COVID tem grande chance de estar protegido por reinfecção por um período de tempo finito, que pode variar de pessoa para pessoa. Nós não sabemos quão longo será esse período finito, um ano, muitos anos, ou alguns meses apenas.” Estudo publicado na prestigiosa revista Nature sugere que 50% dos indivíduos portadores assintomáticos perderam a imunidade em três meses apenas! Um segundo estudo mostrou que, embora entre  83% e 93% dos novaiorquinos que se recuperaram do COVID tinham anticorpos neutralizantes contra o vírus, a imunidade era modesta em 56% deles. Ainda pior: não sabemos as consequencias de uma segunda infeção no mesmo indivíduo. Continuaria modesta? Ou seria mais grave, como numa segunda infecção por dengue?

Fato: A epidemia é ainda muito recente para sabermos sobre a imunização prolongada e consequencias de multiplas infecções.

Mito: Após a aprovação de uma vacina, volta-se a normalidade

Com 120 vacinas em desenvolvimento e algumas claramente demonstrando potencial, há razão para otimismo. Portanto, aonde está o mito? Em primeiro lugar, não há garantia alguma que a promessa da vacina se concretizará. Quantos artigos científicos mostraram o progresso para o desenvolvimento de uma vacina para a AIDS, outra virose, que nunca se concretizou? Quantas décadas foram necessárias para o desenvolvimento da imperfeita vacina contra a gripe? Ainda, se a imunidade secundária ao COVID for transiente, qual a duração da imunidade gerada pela vacina? Meses? Anos? Sou otimista quanto ao sucesso desse desenvolvimento, o mito consiste em achar que acontecerá por certo, e que será efetivo com certeza.

Fato: As chances de uma vacina eficaz e que provê proteção temporária são boas mas não constituem uma certeza.

Mito: É seguro frequentar ambientes fechados desde que mantenhamos distância uns dos outros

Originalmente achava-se que o COVID liberado pela saliva, por exemplo, ao falarmos, não ficava em suspensão aérea (aerossol), mas rapidamente depositava-se, por gravidade, no chão ou em objetos. Já sabemos que não é assim, e que o vírus, em ambientes fechados, pode permanecer em suspensão aérea por mais de 15 minutos. Imagine um bar, com muitas pessoas falando e se movendo. Essa micropulverização da saliva fica aerossolizada no ar, e as pessoas, ao se moverem, entram em contato com essas pequenas gotículas de saliva de várias outras pessoas, o que cria oportunidade para os super-transmissores. Não coincidentemente eles foram identificados em bares, igrejas, casamentos e funerais. Não em eventos ao céu aberto.

Fato: O distanciamento social é protetor em ambientes abertos, mas não em ambientes fechados. Em ambiente aberto o vento impede os microaerossois, e a distância proteje. Em ambientes fechados a distância não protege. Acabamos invadindo o “espaço aéreo salivar” de muitas pessoas.

Mito: Como crianças não desenvolvem a doença, é seguro abrir as escolas

É fato que crianças pré-adolescentes têm chance muito menor de adquirir a doença, portanto há um argumento a ser feito de que devemos reabrir as escolas elementares. Mas essas crianças ainda podem transmitir a doença por contato (mãos), ou serem assintomáticas e transmiti-la por saliva. E desde quando escolas têm apenas crianças?  E os pais, que as transportam? Professores, funcionários, motoristas, guardas? Não entram na equação? Ainda, cerca de cem crianças em Nova Iorque desenvolveram a grave síndrome inflamatória multissistêmica após COVID, ou seja, existe risco para crianças também.

Fato: Muito embora as crianças sejam mais protegidas, não o são totalmente e os adultos que interagem com elas estão sob risco. Precisa-se pensar com mais profundidade no melhor curso de ação que atenda as necessidades da criança, mas não simplifique o problema.

Mito: Se tomar ivermectina, nitazoxamida, hidroxicloroquina, estarei protegido

Boa sorte. Mais uma vez o Brasil descobre a quadratura da roda.  E pensar que o mundo inteiro perdeu essa oportunidade…

Mito: Com tanta informação, não sabemos quem escutar

Hora de pararmos de fingir. Não precisa muita força para ver quem é mal intencionado nessa história. Ou fazemos nossa parte, nos informando, não repassando má informação, ficando em casa, usando máscara,  mantendo isolamento social, ou devemos ser considerados parte do problema. A epidemia é grave, será longa, demandará esforços e resistência.

*Marcelo Eduardo Bigal, é médico neurologista e pesquisador, com doutorado em neurociências pela USP. Possui 320 artigos publicados em revistas científicas internacionais, e publicou cinco livros médicos. É CEO de uma companhia de biotecnologia, com sede em Boston, dedicada ao desenvolvimento médico na área de imunologia.

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