Por ANGELINA PERALVA*
Comentário sobre o livro recém-lançado, organizado por Nadejda Marques e Helena Lucas de Oliveira
São 46 relatos e 22 países de destino. Exílios múltiplos, formadores de uma verdadeira diáspora que a ditadura impulsionou, entre 1964 e 1985. Dois países, principalmente, Chile e Cuba, foram os primeiros onde aportaram as famílias exiladas. O golpe contra Allende diversificou os percursos e a descolonização portuguesa levou à África uma parte desses brasileiros.
O livro foi inicialmente imaginado no interior do coletivo Viva Chile, criado em 2023 por homens e mulheres que tinham vivido sob o governo da Unidade Popular quando jovens adultos, e por muitos de seus filhos, crianças à época. Mas ele é também devedor do Projeto Clínicas do Testemunho que foi, para alguns, um espaço de elaboração de memórias por vezes profundamente traumáticas.[i]
Duplo trauma. Há aquele causado pela brutalidade das ditaduras, que ameaçaram, prenderam, estupraram, torturaram, mataram e negaram sepultura a muitos corpos, hoje desaparecidos. Mas há um segundo, menos frequentemente evocado. Trauma causado por escolhas dos pais, eles próprios “filhos de uma época romântica, violenta e idealista”, hoje “um mundo remoto, capítulo de um documentário sobre a Guerra Fria”.[ii]
Em condições tão extremas, sobressai a precocidade da socialização política. Crianças pequenas, em situações de risco, ajudam a destruir documentos, aprendem a manter-se em silêncio na iminência da chegada da polícia, a não lembrar os nomes dos “tios” e “tias” com que conviveram (“se fôssemos pegos e torturados, não seríamos os traidores”).
A experiência do exílio é marcada pelo esforço de adaptação. Infindáveis são as rupturas afetivas: pedaços de família, amigos, cachorros que vão ficando para trás. Reiterado é o esforço de reconhecimento do legado dos pais, não obstante a defasagem face à realidade política do presente, que é a desses hoje adultos. Há o trânsito linguístico: do português ao espanhol, depois ao sueco, ao alemão ou ao francês.
As línguas aprendidas têm uso contingenciado, cada uma servindo a um grupo de comunicação: os pais, os irmãos, os colegas de escola. E apesar dos esforços unânimes das famílias, a apropriação necessariamente empobrecida do português, língua obrigatória na comunicação doméstica entre pais e filhos.
Muitos viveram durante anos em Cuba. Alguns nasceram lá. E a imagem que de lá nos trazem destoa da ideia de uma ilha reduzida à função de berçário de “PeGueTreCu”.[iii] Na experiência infantil e adolescente, a escola ocupa um lugar especial. Vários foram “becados” – passavam a semana na escola e o fim de semana em casa, o que facilitava o trabalho dos pais.
Mas todos, mesmo os que não eram internos, se beneficiavam de uma educação totalmente gratuita e integral: ao lado das disciplinas habituais, a educação artística e esportiva e diversas formas de participação no trabalho.
Nas escolas “Vietnã Heroico” ou “Presencia de Lenin”, cujos nomes prestam tributo ao imaginário revolucionário, crianças estudavam “mitologia greco-romana a partir dos 8 anos”. “Conheci a literatura indiana, os trágicos gregos.” Do mesmo modo, Jorge Amado, Drummond ou Guimarães Rosa.
Acesso ao cinema e aos festivais de música popular, onde artistas brasileiros eram muito presentes: Caetano, Gal, João Bosco, Chico, Sergio Mendes, Djavan, MPB-4, Clara Nunes eram referências para os cubanos. E mesmo novelas – as da TV Globo e as da TV Manchete: A Escrava Isaura, Dona Beija ou Malu Mulher – também por lá andaram.“Em Cuba se respira cultura por todos os poros”. Longe do controle estatal e da imposição de uma estética particular, que marcaram de forma dramática a história do socialismo europeu, a abertura para o mundo e sua diversidade cultural.
Há no livro descrições antológicas. Como a chegada a pé à Población Lo Hermida[iv], na região metropolitana de Santiago, de uma menina portando traje branco de marinheiro, transmutado ao fim do dia na cor tijolo da fina poeira da estrada. Ou a de um pai brasileiro, que acompanhado da diretora retira de classe a filha, obrigada a uma despedida sumária de seu internato cubano para voltar ao Brasil.
A volta, possibilitada pela Lei da Anistia de 1979, não foi menos complicada. Muitos, que se anteciparam a ela, viveram o terror da interpelação policial nos aeroportos. A cidadania havia sido sistematicamente negada pelas embaixadas brasileiras aos filhos de exilados. Mas ela era reconhecida, de fato, por essas crianças como herança dos pais.
O exílio produziu, no entanto, uma distância cultural inarredável e um pertencimento problemático – e problematizado no livro. As crianças retornadas não tinham “um passado” no País. Consideravam “uma honra” ser brasileiras. Mas não tinham vivido a própria infância no Brasil. Muitas dizem que o exílio as constituiu.
O retorno trouxe a descoberta das famílias ampliadas – tantos primos e primas, tantos tios e tias, “foi uma explosão”! Mas já durante o exílio, para além das rupturas e dos deslocamentos sucessivos, para além também dos laços de sangue, famílias exiladas formaram “flutuantes de amor” – lares móveis como aqueles que, na Amazonia, explica um deles, podem ser levados de um rio a outro.
Há muito a descobrir nesses relatos – contribuição preciosa para a história brasileira recente.
*Angelina Peralva é professora sênior Universidade de Toulouse.
Referência

Nadejda Marques e Helena Lucas de Oliveira (orgs.). Crianças e exílio: memórias de infâncias marcadas pela ditadura militar. São Leopoldo, Carta Editora, 2025. [https://encurtador.com.br/KLZGR]
Notas
[i] As Clínicas do Testemunho, programa de reparação psíquica destinado às vítimas da ditadura militar, foram criadas em 2013, no âmbito da Comissão de Anistia, em diferentes Estados do Brasil. Não obstante a importância e a abrangência do projeto, ele foi descontinuado pelo governo Temer após a cassação do mandato da Presidente Dilma Rousseff.
[ii] As passagens citadas apenas apoiam uma leitura transversal do livro; por isso sua autoria não será identificada aqui.
[iii] Perigosos Guerrilheiros Treinados em Cuba.
[iv] Lo Hermida é uma das ocupações urbanas mais emblemáticas, na região metropolitana de Santiago. Como outras, similares, desenvolveu-se nos anos 70 em resposta ao déficit de moradias populares capazes de acolher migrantes vindos de todos os cantos do país.
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