Crise energética e transições na China

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ELIAS JABBOUR*

Para os dirigentes chineses, no momento, é mais importante a mudança nos esquemas de propriedade no país do que garantir uma determinada taxa de crescimento

Tenho sido muito procurado para opinar sobre a atual “crise energética” na China. Tenho conversado bastante sobre isso com Marco Fernandes, editor da Dongs heng News. Morador da China, ele tem me passado informações e opiniões. Estou em fase de elaboração de uma opinião mais de fundo. Quando falo de “mais de fundo”, penso que devemos fugir dos esquemas de oferta/demanda/preços que nos impõem para analisar situações deste tipo. “Tudo se relaciona com tudo”. A China passa por um momento especial e decisivo de sua história que se espelha no aparecimento contradições de múltiplas determinações.

Existe, sim, uma crise de oferta de energia na China. Essa crise tem relação direta com a retomada pós-pandemia e a alta impressionante dos preços de carvão. De acordo com a Morgan Stanley, a demanda chinesa cresceu 15% esse ano e oferta somente 5%. A solução imediata passaria pela permissão de aumento dos preços dos custos de energia por parte do governo. Deverá ser de 10%, resolvendo assim boa parte do problema – já pensando no estoque ao inverno próximo. Mas está aí somente a ponta de um iceberg, a cada dois anos a China precisa acrescentar o equivalente a toda capacidade de geração de energia do Brasil. O refúgio ao carvão deve ser evitado diante da crise ambiental internacional.

Temos que tomar cuidado com a tentativa de justificativa da falência neoliberal no mundo e no Brasil que tem utilizado desta crise na China e na Grã-Bretanha para justificar a crise energética diferente. São três problemas totalmente diferentes. Os investimentos no Brasil só caem desde 2016, enquanto a China não para de investir. Resultado disso foi a descoberta de imensos campos de gás na Mongólia Interior (em um momento de crise de oferta de gás) e ontem de um imenso campo de petróleo em Dongbei.

A questão é que também o governo chinês impôs às províncias do país metas draconianas de redução de emissão de carbono, anunciou o fechamento de minas de carvão fora do país e cancelou importações da Austrália (a China responde por 90% de sua própria oferta). É aí que mora o nó. Honestamente acredito que em questão de semanas essa questão se resolve na China. Aliás, o governo já anunciou que “pagará o preço que for” para garantir o suprimento de energia. Os meios para solucionar esse fim são imensos. O leque de opções não é pequeno. Mas devemos observar isso tudo como parte de um todo.

A China está nesse exato momento passando por uma série de transições simultâneas, entre tais: (1) transição energética; (2) transição de esquemas internos de propriedade e (3) transição de dinâmica de acumulação. Tais transições ocorrem em meio a uma crescente pressão imperialista sobre o país, impondo um ritmo e um tempo político a essas transições que não estavam nos planos dos policy makers chineses há dez anos, por exemplo.

A transição energética é sintetizada na meta de reduzir a zero a emissão de dióxido de carbono para o ano de 2060, alcançando em 2030 o pico de 2030. O governo chinês tem trabalhado sério nesta tarefa. Os dados são abundantes na internet. A China investe mais do que os Estados Unidos e a Europa juntos, na busca por fontes de energia renováveis. Cidades-piloto “inteligentes” têm sido construídas e movidas por fontes renováveis de energia. Nos últimos 20 anos 40.000 km de trens de alta velocidade foram construídas no país. Mas a dependência do carvão ainda é imensa (60% da fonte primária de energia do país). Uma transição dessa não é tranquila.

Um novo ciclo de crescimento econômico no país não será mediado mais por ondas de inovações institucionais que recolocam, ciclicamente, o lugar do Estado e do setor privado na economia – com privatizações seguidas por estatizações. Já não existe mais uma fronteira entre as diferentes formas de propriedade no país, mas o setor privado da economia, ainda poderoso em setores fundamentais da vida chinesa (vide o setor imobiliário) já não responde mais às suas próprias demandas históricas. O que está ocorrendo na China neste momento, aliás desde o final do ano passado, é um novo ciclo de inovações institucionais no país onde formas novas e superiores de estatização estão ocorrendo, o caso da Evergrande e a regulação dos monopólios privados (bigtechs e fintechs) são angulares.

Trata-se de uma operação com alto custo político com impactos ainda a serem verificados. Na verdade, o momento em que a China vive é mais importante a mudança nos esquemas de propriedade no país do que garantir uma determinada taxa de crescimento.

Já a transição na dinâmica de acumulação é algo já em andamento. Os esquemas keynesianos de “demanda agregada” (consumo, investimento e setor externo) apenas nubla, e separa em partes, algo que é uma totalidade. Como Michael Roberts tem apontado, a principal contradição da economia chinesa não é entre mais consumo e menos investimento. A relação entre investimento e consumo não é um jogo de soma zero. Segundo relatórios da Organização Internacional do Trabalho, os salários médios na China aumentaram em média 280% nos últimos dez anos. Isso não ocorreu às expensas da queda da taxa de investimentos.

A grande contradição da economia chinesa reside na necessidade de elevação da produtividade do trabalho, alcançar os países capitalistas neste ponto. Para isso a manutenção de altas taxas de investimentos é fundamental. Entra nesse cálculo o desafio imposto pelo imperialismo que decidiu cancelar a China do mercado internacional de insumos de semicondutores – sabidamente o calcanhar de Aquiles da economia chinesa.

O concreto é expressão de múltiplas determinações. Acredito que cada uma dessas dimensões enseja, em cada momento, um ponto de desequilíbrio à governança chinesa com necessidade de rápida capacidade de intervenção e solução. Até aqui tudo tem sido bem administrado. Com um atraso de dez anos os economistas do mercado financeiro no Brasil anunciam que a China manda um recado de “menos crescimento” (ver a “live do Valor” de comandada pela competente Olivia Bulla).

O recado que a China nos manda e que poucos percebem é que o país está passando por verdadeiras dores do parto de não somente uma transição, mas de múltiplas, ocorrendo de forma simultânea.

*Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China Hoje – Projeto Nacional Desenvolvimento e Socialismo de Mercado (Anita Garibaldi).

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michael Löwy Luiz Marques João Carlos Salles Flávio Aguiar Marcos Aurélio da Silva Bento Prado Jr. Boaventura de Sousa Santos Anderson Alves Esteves Paulo Nogueira Batista Jr Ari Marcelo Solon João Sette Whitaker Ferreira Francisco de Oliveira Barros Júnior José Raimundo Trindade Lorenzo Vitral Eleonora Albano Gilberto Lopes Caio Bugiato Leda Maria Paulani Tarso Genro Antonio Martins Marcos Silva Vladimir Safatle Flávio R. Kothe Leonardo Sacramento Sergio Amadeu da Silveira Gabriel Cohn Luís Fernando Vitagliano Armando Boito Claudio Katz Celso Favaretto Tales Ab'Sáber Paulo Capel Narvai Milton Pinheiro Yuri Martins-Fontes Afrânio Catani Eugênio Trivinho Fernão Pessoa Ramos José Luís Fiori Ricardo Abramovay Paulo Sérgio Pinheiro Walnice Nogueira Galvão Lincoln Secco Rafael R. Ioris Mariarosaria Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque Gilberto Maringoni Antonino Infranca Julian Rodrigues Luiz Renato Martins Kátia Gerab Baggio Érico Andrade Henry Burnett Gerson Almeida Ricardo Musse Maria Rita Kehl Ronaldo Tadeu de Souza José Machado Moita Neto Vinício Carrilho Martinez Daniel Brazil Osvaldo Coggiola Ricardo Antunes João Feres Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Manuel Domingos Neto Bruno Machado Eugênio Bucci Anselm Jappe Juarez Guimarães Annateresa Fabris Carla Teixeira Manchetômetro Chico Alencar Vanderlei Tenório Atilio A. Boron Luis Felipe Miguel Berenice Bento Benicio Viero Schmidt Celso Frederico Marilena Chauí José Micaelson Lacerda Morais Rubens Pinto Lyra Eliziário Andrade Ronald León Núñez Matheus Silveira de Souza Marjorie C. Marona Andrew Korybko Francisco Pereira de Farias Roberto Bueno Fernando Nogueira da Costa Daniel Afonso da Silva Valerio Arcary Alexandre de Freitas Barbosa Bernardo Ricupero Denilson Cordeiro Ricardo Fabbrini José Geraldo Couto Luiz Eduardo Soares Paulo Fernandes Silveira Jean Marc Von Der Weid Salem Nasser Sandra Bitencourt Thomas Piketty Igor Felippe Santos Samuel Kilsztajn Jorge Branco Jean Pierre Chauvin Dênis de Moraes Francisco Fernandes Ladeira Chico Whitaker Jorge Luiz Souto Maior Marcelo Módolo Paulo Martins Slavoj Žižek Elias Jabbour Eduardo Borges José Dirceu Remy José Fontana Antônio Sales Rios Neto Renato Dagnino Leonardo Avritzer Lucas Fiaschetti Estevez Daniel Costa Michael Roberts Mário Maestri Luiz Bernardo Pericás André Márcio Neves Soares Priscila Figueiredo Heraldo Campos Dennis Oliveira Fábio Konder Comparato Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luciano Nascimento João Adolfo Hansen Henri Acselrad Liszt Vieira Everaldo de Oliveira Andrade Airton Paschoa João Carlos Loebens João Lanari Bo Leonardo Boff Valerio Arcary Rodrigo de Faria Luiz Carlos Bresser-Pereira André Singer Alexandre de Lima Castro Tranjan Ronald Rocha Carlos Tautz Luiz Werneck Vianna José Costa Júnior Marcus Ianoni Marilia Pacheco Fiorillo Roberto Noritomi Otaviano Helene Ladislau Dowbor João Paulo Ayub Fonseca Eleutério F. S. Prado Tadeu Valadares Alysson Leandro Mascaro Luiz Roberto Alves Marcelo Guimarães Lima

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada