Cultura e filosofia da práxis

Samia Halaby, Land, 1988
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Por EDUARDO GRANJA COUTINHO*

Prefácio do organizador da coletânea recém-lançada

1.

Sabe-se que a expressão “filosofia da práxis” foi utilizada por Antonio Gramsci nos Cadernos do cárcere, no lugar de “materialismo histórico” ou “marxismo”, para driblar a censura fascista. Com esse propósito ele se referia a Karl Marx como o “corifeu da filosofia da práxis”; e a Vladímir Lênin como “o maior teórico moderno da filosofia da práxis”.

Mas além dessa função prática de enganar os censores, que não costumam ser muito versados em filosofia, o termo tem um sentido teórico muito importante e nos fala da leitura gramsciana do marxismo. Com ele Antonio Gramsci explicita algo que o marxismo vulgar havia deixado para trás: o caráter eminentemente dialético do pensamento de Marx.

É com essa categoria fundamentalque Karl Marx superaa tradição filosófica especulativa que ele chamou de “ideologia alemã”. Quando apreende a unidade dialética entre sujeito e objeto no desenvolvimento da história – a relação de determinação recíproca entre o homem e seu mundo, teoria e prática, consciência e ser social – Marx contrapõe-se tanto ao idealismo hegeliano, que supõe a existência de uma consciência absoluta que governa o mundo e determina a realidade humana, quanto ao materialismo ainda abstrato de Ludwig Feuerbach, assim chamado por abstrair a realidade material, objetiva, do processo histórico.

É a noção de práxis, portanto, que lhe permite fazer a crítica das perspectivas “subjetivistas” e “objetivistas”, a partir das quais o pensamento metafísico compreende de forma mistificada a história, a cultura, as relações sociais.

A partir das Teses sobre Feuerbach, onde, nas palavras de Friedrich Engels (1975, p. 91), estaria depositado “o germe genial da nova concepção de mundo”, o pensamento, a teoria, a filosofia, a consciência passam a ser compreendidos como algo determinado pelo real histórico e, ao mesmo tempo, como um momento constitutivoda totalidade social. A ideia central das Teses é o papel decisivo do conhecimento como realidade prática na vida da sociedade. Essa ideia está presente de forma inequívoca na Tese XI: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.

Se até então, o pensamento era tido como algo separado da realidade objetiva (por isso meramente especulativo, metafísico), agora ele é concebido como uma força material que age na transformação do mundo, orientando a práxis dos homens. Movidos por ideias, os homens fazem a sua própria história, mas essas ideias não nascem espontaneamente de sua cabeça: são condicionadas por circunstâncias objetivas. O que significa dizer que a consciência dos homens é condicionada pelo mundo que eles próprios criaram. Ao transformar a realidade objetiva, os sujeitos se autotransformam: eis, em síntese, o germe genial da nova concepção de mundo.

Na perspectiva da filosofia da práxis, trata-se, portanto, de colocar em relevo a conexão entre a realidade objetivae as formas de subjetividade, entre o modo de produção material da existência e a esfera social e política ou ainda, na forma consagrada e nem sempre compreendida pela tradição marxista, entre a estrutura econômica e a superestrutura ideológica. De fato, sempre houve no marxismo, desde os tempos de Marx, uma clara tendência a se desconsiderar a relação dialética entre essas esferas, o que, como se sabe, levou o próprio Marx a dizer, referindo-se aos “marxistas” franceses do fim dos anos 1870: “Tout ce que je sais, c’est que je ne suis pas Marxiste”.[i]

Assimilado por diferentes correntes do marxismo, o pensamento de Marx e Engels sofreu, como observou Antonio Gramsci, “uma dupla revisão, isto é, deu lugar a uma dupla combinação, materialista [abstrata] e idealista” (1975, v.1. p. 421-2). De um lado foi vulgarizado por teóricos de inspiração positivista, segundo os quais o fator econômico determina mecânica e unilateralmente as formas de subjetividade; de outro, por revisionistas neo-hegelianos, que, ao contrário, superestimam o papel da consciência nos processos históricos, desconsiderando que as ideias – a consciência ético-política que age sobre o mundo – possuem uma base real, não podendo ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano. Elas devem ser explicadas, pelo contrário, a partir das condições materiais de existência. Sobre esses “marxistas” disse Engels (1975, p. 194): “O que falta a todos esses senhores é a dialética”.

2.

Antonio Gramsci é tido como um dos grandes renovadores do marxismo, justamente porque ele foi capaz de restaurar aquela unidade dialética desconsiderada pela corrente positivista, objetivista (da qual Karl Kautsky foi, certamente, a principal expressão) e declarada impossível pelo irracionalismo subjetivista. O autor dos Cadernos do cárcere recuperou a noção de práxis, apoiando-se em autores que se reivindicam herdeiros da tradição metodológica marxiana: notadamente em Vladímir Lênin, mas também em seu conterrâneo Antonio Labriola (1843-1904), responsável pela introdução do pensamento de Marx e Engels no movimento socialista italiano.

Antonio Labriola, apesar de num primeiro momento ter se aproximado dos principais arautos da “crise do marxismo” – Bernstein, Sorel, Croce –, manteve-se fora do revisionismo, rejeitando toda tentativa de desqualificar cientificamente o materialismo histórico. Sabe-se que Georges Sorel reclamou a Antonio Labriola um complemento metafisico do marxismo. Antonio Labriola lhe respondeu, propondo o que chamou, sugestivamente, de “filosofia da práxis”, expressão que Antonio Gramsci mais tarde adotaria. Com essa expressão, Antonio Labriola explicitava o nexo fundamental entre o pensamento revolucionário e o ritmo objetivo do movimento histórico.

Na esteira de Antonio Labriola, Antonio Gramsci foi defensor de uma versão não fatalista, não objetivista do materialismo. Em contraposição ao determinismo economicista predominante no socialismo italiano, Antonio Gramsci foi capaz de compreender a relação de determinação recíproca entre a vida material dos homens e a maneira como eles pensam, sentem e representam a sua realidade.

Sem negar, portanto, a determinação “em última instância” (Engels) da superestrutura ideológica pela base econômica, criticou o marxismo reducionista da II Internacional, notadamente o Ensaio popular de sociologia marxista de Nikolai Bukharin, que compreendia essa determinação como algo unilateral, mecânico.

Como pensador dialético, Antonio Gramsci distinguia as mediações entre a chamada base econômica e a superestrutura ideológica; entendia que a unidade entre economia e política é mediada pela sociedade civil, a esfera da cultura, onde são organizadas as formas de consciência adequadas ao desenvolvimento de um determinado modo de produção e, portanto, aos interesses de uma classe social. É nessa esfera intermediária, portanto, que se desenvolvem relações de direção político-ideológica, de hegemonia; é nela que os grupos dominantes forjam a ideologia historicamente necessária a uma determinada estrutura.

Antonio Gramsci compreendeu que a superestrutura ideológica não é monolítica: ela é constituída por diferentes esferas: uma esfera política e jurídica (das objetivações do Estado) e outra que ele chamou de “sociedade civil”, na qual os sujeitos criam e difundem suas ideologias, isto é, lutam pela hegemonia político-cultural. A sociedade civil, que se materializa nos aparelhos privados de hegemonia, é, de alguma forma, condicionada pela estrutura, na medida em que ela tem como função a reprodução (ou a transformação) do modo de produção dominante.

Um sindicato, por exemplo, é um aparelho de hegemonia, cuja função é a de organizar a visão de mundo de uma classe social. Nesse sentido, ele é determinado pelas relações materiais de produção. O mesmo se pode dizer dos demais instrumentos que constituem a sociedade civil: são condicionados pela estrutura econômica da sociedade.

Portanto, as ideias políticas e jurídicas de uma classe não são expressão imediata da economia, como quer o marxismo vulgar: a ideologia se desenvolve nessa esfera material da cultura, diretamente ligada à estrutura econômica. Isso significa que “a economia determina a política não mediante a imposição mecânica de resultados unívocos, fatais, mas condicionando o âmbito das alternativas que se colocam à ação do sujeito” (Coutinho, 1992, p. 57).

Ao contrário do que sugere uma leitura pós-moderna, culturalista, de Antonio Gramsci, o pensador comunista considera que a realidade objetiva dos homens determina suas formas de subjetividade (é inegável, para ele, a prioridade ontológica do ser em relação à consciência), mas compreende também que o sujeito possui um certo grau de autonomia em relação às determinações econômicas, quelimitam (mas sem anular) o momento da liberdade. Afinal, diria Marx, os homens fazem sua própria história.

Como mediação entre as relações de produção e as ideias necessárias à sua reprodução, a cultura aparece, assim, como uma instância da luta política, de conformação do consenso e da hegemonia; e a sociedade civil, como um lugar de embate cultural – um espaço de construção de identidades e subjetividades. É na sociedade civil, compreendida como o conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias – mídia, escola, Igreja, partidos, sindicatos, instituições culturais, etc. -, que se legitima (ou se contesta) a dominação.

É lá que as classes dominantes criam, junto à massa da população, o nível cultural e moral que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas. E é lá também que as camadas subalternas elaboram “o seu modo de conceber o mundo e a vida em contraste com a sociedade oficial” (Gramsci, 2002, v.6, p.181). Trata-se, portanto, de pensar não apenas a maneira como os grupos dirigentes exercem a sua hegemonia política, mas também, dialeticamente, os processos culturais de contestação, pressão e resistência.

3.

A cultura é, para Antonio Gramsci – assim como o signo para Mikhail Bakhtin (1997, p. 46) – a “arena onde se desenvolve a luta de classes”. Nessa arena semiótica, os diferentes sujeitos reelaboram os signos do passado, as antigas formas culturais sedimentadas a partir de uma perspectiva histórica articulada a seus interesses. De sua capacidade de determinar o sentido da realidade depende a sua liderança político-cultural, isto é a sua hegemonia. Ouvem-se aqui os ecos da formulação de Marx, tantas vezes retomada por Antonio Gramsci (2001, v. 1, p. 237): as ideologias “formam o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam”.

A luta pela hegemonia aparece, assim, como um embate entre diferentes formas de consciência. Nesse confronto, a classe economicamente dominante, que é também a classe ideologicamente dirigente, impõe sua visão de mundo, como uma religião laica, às camadas subalternas. Entre essas classes há uma diferença fundamental no que diz respeito à elaboração e à sistematização do conhecimento.

Segundo Antonio Gramsci, a consciência das massas é fragmentária, desagregada, contraditória, ideologicamente servil, atravessada por superstições, crendices, ainda que possa possuir um “núcleo sadio” – o “bom senso” – a sabedoria popular – que fornece à ação uma direção consciente, contrapondo-se implicitamente à concepção de mundo oficial ou hegemônica. Nas palavras de Marilena Chaui (1986), a cultura popular aparece assim como um misto de “conformismo e resistência”, enquanto que a cultura hegemônica tende à unidade e à organicidade: é uma “filosofia” nos termos de Antonio Gramsci. Não um sistema filosófico, mas uma concepção de mundo elaborada e coerente, isto é, uma ideologia orgânica.

Assim, em oposição à ideologia hegemônica, cabe às massas desenvolver a sua própria filosofia. Sua tarefa é justamente a de combater o mosaico de tradições conservadoras presentes em sua visão de mundo e organizar uma outra cultura, tendo como base os estratos criadores, críticos e progressistas que se encontram no “senso comum”. A organização da cultura é, nesse sentido, um trabalho que se desenvolve sobre as formas de consciência presentes na vida cultural das massas. Trabalho de seleção e interpretação das formas culturais orgânicas e de desmistificação e rejeição do conteúdo fossilizado e reacionário da consciência popular.

Não se trata, portanto, de uma simples negação ou eliminação do folclore enquanto forma de conhecimento, mas de uma superação dialética (aufhebung), que elimina, conserva e eleva a nível superior a consciência ético-política das classes subalternas. Trata-se, na perspectiva da filosofia da práxis, de criar uma nova cultura, compreendida como “uma coerente, unitária e nacionalmente difundida ‘concepção da vida e do homem’, uma ‘religião laica’, uma filosofia que tenha se transformado precisamente em ‘cultura’, isto é, que tenha gerado uma ética, um modo de viver, um comportamento cívico e individual” (Gramsci, 2002, pp. 63-4).

A luta pela hegemonia aparece, assim, como um confronto entre ideias que orientam a ação dos homens, ideias que se tornam força material, teorias postas em prática, projetos de transformação consciente do mundo. Trata-se, portanto, de um embate entre filosofias que conformam os interesses dos grupos sociais e concorrem para a direção moral e intelectual dos indivíduos. Hegemonia é, em suma, filosofia em ato, práxis filosófica.

4.

A presente coletânea reúne ensaios que desenvolvem uma reflexão sobre a cultura a partir da perspectiva da filosofia da práxis, o que significa compreendê-la como um terreno da luta política. Os textos aqui reunidos foram organizados segundo três eixos temáticos principais: (i) cultura “nacional-popular”; (ii) comunicação e hegemonia; (iii) intelectuais e engajamento político.

Após o artigo introdutório de Ivete Simionato e Mirele Hashimoto Siqueira, “A filosofia da práxis como ‘filologia vivente'”, que busca nas notas carcerárias de Gramsci uma exposição sistemática acerca do materialismo histórico nos termos da filosofia da práxis, revelando o nexo orgânico existente nessa concepção de mundo entre filosofia, política e cultura, Celso Frederico, em seu ensaio “Cultura: notas sobre Gramsci”, inicia uma discussão sobre “o lugar solitário ocupado por Gramsci nas reflexões marxistas sobre a cultura”.

Ao invés de lutar por uma nova arte, como György Lukács, Theodor Adorno e Bertold Brecht, o pensador sardo, diz Celso Frederico, propõe a formulação de uma nova cultura capaz de reconciliar os artistas com o povo. A literatura e as questões estéticas são vistas a partir dessa preocupação educacional, desse desejo de elevar a consciência das massas, pois o que interessa verdadeiramente a Antonio Gramsci é o valor cultural e não apenas o valor estético da obra literária.

Esse projeto de renovação da cultura apoia-se na defesa de uma visão de mundo nacional-popular, tendo em vista um projeto de reforma intelectual e moral indispensável ao desenvolvimento de novas relações sociais. A proposta do “nacional-popular”, núcleo da política cultural defendida por Gramsci, significa a possibilidade das camadas populares reinterpretarem o passado nacional sob uma perspectiva conveniente a seus interesses de classe.

Contrapondo-se, por um lado, ao cosmopolitismo abstrato e, por outro, ao nacionalismo chauvinista – “pelo alto” – das classes dirigentes, o termo nacional-popular se refere, nos textos gramscianos, ora a uma expressão da cultura, ora a uma vontade coletiva, ora a uma estratégia político-cultural contra-hegemônica.

O artigo “Nacional-popular» versus cosmopolitismo”, de Gianni Fresu, fornece o enquadramento histórico conceitual para esse debate. O autor mostra como essa categoria, inseparável das noções de Estado, hegemonia, sociedade civil, revolução passiva, transformismo, nasce no bojo da reflexão gramsciana sobre as contradições intrínsecas à formação econômica e social da Itália que originaram o fascismo.

Em suas anotações do cárcere, Antonio Gramsci observou que o processo de modernização passiva, que obstaculizou a ampliação das bases sociais do Estado italiano, aprofundou a fratura entre intelectuais e massas, determinando a ausência de uma identidade de concepção do mundo entre os intelectuais e o povo, e limitando o desenvolvimento de uma cultura nacional-popular.

Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), responsável pela introdução de Gramsci no Brasil nos anos 1960, foi, certamente, um dos primeiros pensadores brasileiros a se valerem da categoria de “nacional-popular” para pensar a questão cultural no Brasil. Em seu artigo “No samba o veneno popular contra o regime”, ele parte do reconhecimento de que a vida intelectual brasileira foi condicionada por um processo de “revolução passiva”, análogo ao italiano, que sacrificou o elemento nacional-popular.

Aqui também, as transformações sociais pelo alto, por meio de acordos entre as velhas e novas classes dominantes, tiveram como consequência a debilidade da sociedade civil, medium próprio da cultura, restringindo o âmbito das alternativas que se colocavam à ação do intelectual. Tais processos criaram uma carência na vida espiritual de nosso povo, notadamente no início do século XX, quando, desligados das questões sociais, os artistas e intelectuais, com raras exceções, não propuseram uma imagem alternativa de Brasil, colocando-se contra a corrente dominante.

Contudo, a cultura brasileira apresenta esforços para superar essa carência de uma produção intelectual, literária e artística identificada ao universo popular. Segundo Carlos Nelson Coutinho, a música popular brasileira assumiu a função sócio-cultural de criação e expressão de uma consciência nacional-popular, aparecendo, objetivamente, como oposição democrática, no plano da cultura, às várias configurações concretas assumidas pela cultura hegemônica. Publicado no exílio italiano em 1976, sob o pseudônimo de Jorge Gonçalves, esse texto permaneceu inédito em língua portuguesa e desconhecido do público brasileiro durante muitos anos, sendo somente agora divulgado em nosso país.

Na linha desenvolvida por Carlos Nelson Coutinho em seu artigo e, de um modo geral, em seus textos sobre cultura e sociedade no Brasil, o meu ensaio “Música popular e vida nacional: a imagem do povo em Noel Rosa” pretende mostrar que o canto popular, notadamente o samba de Noel Rosa aparece como uma forma alternativa de representação da nação que nada tem a ver com o verde-amarelismo recorrente em nossa história política e cultural; uma forma que, como diria Antonio Gramsci, se distingue pelo seu modo de compreender o mundo e a vida em contraste com a sociedade oficial. No Brasil que surge com a Revolução de 1930, o samba moderno de Noel Rosa é, como se pretende mostrar, um samba contra-hegemônico, nacional-popular.

Também tributário do artigo seminal de Carlos Nelson Coutinho é o ensaio de Marcelo Braz “A ‘questão social’ e a questão cultural no Brasil”. Segundo o autor, o nacional-popular, que tem no samba uma de suas expressões culturais mais importantes, é impensável sem a consideração das lutas sociais que estão no âmago da “questão social” no Brasil. Nessa perspectiva, destaca-se a importância dos sambistas como “intelectuais orgânicos” do povo brasileiro, organizadores da cultura junto às camadas populares.

Cunca Bocayuva em “Gramsci e o declínio do consenso no século XXI” nos fala sobre a crise do nacional-popular no mundo contemporâneo. Segundo o autor, a vontade coletiva organizada que travava as “guerras de posição” que marcaram os deslocamentos progressistas entre 1945 e 1973 foi impactada pelas mutações da sociedade civil, sem perder inteiramente, entretanto, a sua importância como estratégia político-cultural. Em um mundo marcado pelo retorno do fascismo e pela desestabilização dos consensos sociais, a leitura de Antonio Gramsci nos convida, diz ele, a reimaginar as formas de resistência e a construção de uma nova política capaz de enfrentar os desafios de nossa época.

Ronaldo do Livramento Coutinho (1937-2017), embora não fosse um gramsciano, foi marxista e leninista ao longo de toda a sua trajetória política e tinha em comum com o pensador sardo o fato de levar a sério a cultura popular e compreendê-la como forma de subjetividade proletária. No artigo inédito “Algumas observações sobre a cultura do povo”, Ronaldo do Livramento Coutinho discute, entre outras questões, a relação entre cultura do povo e indústria cultural, defendendo o ponto de vista de que não há uma aceitação passiva pelas classes populares dos elementos que a “cultura de massa” e a ideologia dominante de forma mais abrangente apresentam, porém, uma manipulação própria, e bastante criativa, de elementos culturais que passam a definir a condição proletária.

Não se trata, segundo ele, de consumir passivamente uma cultura que é estranha a seus interesses e condições objetivas de vida, mas de reinterpretar e mesmo criar (na medida em que a própria reinterpretação implica na atribuição de novo sentido simbólico) formas peculiares de expressão cultural que envolvam um sentido de rejeição e resistência.

5.

Os artigos do segundo bloco temático, tendo como eixo a relação entre comunicação e hegemonia, analisam a importância dos meios e das mediações culturais nos processos políticos contemporâneos. Leila Leal, em seu belo artigo “Ser barulho no silêncio: comunicação e hegemonia na Palestina ocupada”, nos fala sobre o papel da mídia ocidental no brutal processo de opressão e genocídio do povo palestino.

Segundo a autora, o jornalismo fortificado pela máquina de guerra israelense se presta a construir ativamente as condições para que o genocídio aconteça, criando o “clima cultural” (Gramsci) que pavimenta o caminho para o avanço dos tanques de Benjamin Netanyahu. A esses processos hegemônicos contrapõem-se, no entanto, esforços permanentes da comunicação alternativa, da luta pela cultura na busca pela produção de sentido associada a um projeto de emancipação.

Em “Disputa de ideias no neoliberalismo”, Claudia Santiago retoma a crítica ao poder avassalador das corporações midiáticas que se colocam a serviço do grande capital, mostrando como, no período neoliberal, elas são responsáveis pelo consenso necessário ao domínio absoluto do mercado, varrendo os direitos conquistados pela classe trabalhadora nos séculos XIX e XX e apagando os resquícios do Estado de bem-estar social.

Histórica militante da comunicação popular, a autora reafirma que, no mundo atual, o poder praticamente ilimitado das big techs sobre a opinião pública, provocando ondas e tsunamis de desinformação, deve ser confrontado por veículos de comunicação vinculados ao movimento social.

Bom exemplo de comunicação alternativa, contra-hegemônica é aquela realizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. É o que nos mostra Leonardo Campos Martins em “Da práxis ao prato: mística e hegemonia no MST”. Em sintonia com as ideias de Mariátegui, que compreendeu a importância do mito como forma de ressaltar a dimensão passional do combate revolucionário, o artigo discorre sobre a mística revolucionária do MST, uma estratégia cultural e comunicacional que impulsiona e alimenta a luta cotidiana dos camponeses, impelindo à ação e garantindo-lhes a extrema tensão da vontade necessária à realização do projeto de transformação da estrutura agrária brasileira. Sendo da ordem da paixão, como diria Antonio Gramsci, a mística pode estar materializada numa peça teatral, no canto dos trabalhadores, numa refeição coletiva ou numa inquietante poesia.

O terceiro bloco de artigos, que tem como eixo a relação entre os intelectuais e a política, tema caro a Antonio Gramsci, inicia com o ensaio de Luciana Goiana “Juan Gelman: poesia e política na América Latina”. Partindo do reconhecimento de que “não existe verdadeira poesia que não seja política” (Florestan Fernandes), a autora compreende que para o poeta e guerrilheiro argentino Juan Gelman, como para Antonio Gramsci, a arte tem autonomia em relação à política, pois embora ela possa e deva ser utilizada politicamente, ela não se resume a mera propaganda ideológica: há “uma dimensão inalienável” da poesia que não se submete às exigências imediatas da política: essa esfera propriamente estética diz respeito à forma poética.

Ícone da resistência à ditadura civil-militar argentina, Juan Gelman levou tanto para a poesia, quanto para o jornalismo sua militância pelo direito à verdade, memória e justiça social em seu país. Seus poemas dizem dos anseios e dores de uma Argentina oprimida e espoliada pelo neocolonialismo, sem deixar de ser solidário com a luta de outros povos: Argélia, Panamá, Senegal, Vietnã, Cuba e Palestina.

Anita Helena Schlesener, em “Intelectuais e educação”, reafirma a importância dos intelectuais orgânicos e da mobilização coletiva na luta contra a barbárie capitalista. “Retomando as sendas do pensamento de Gramsci”, a autora entende que a criação de uma nova cultura é um processo educativo. “Somente de um trabalho comum e solidário de esclarecimento, de persuasão e de educação recíproca nascerá a ação concreta de construção” (Gramsci).

Esse processo não se limita à educação formal, escolar: ele se efetiva nas relações sociais e políticas; nos meios alternativos, nas tradições populares, nas iniciativas de resistência dos sindicatos, dos partidos, das associações de cultura, instâncias nas quais se criam as condições para o desenvolvimento de uma vontade coletiva nacional-popular em direção a uma forma superior de civilização moderna.

Na luta pela cultura, os processos educativos revolucionários têm como contrapartida a permanente assimilação e o esvaziamento do pensamento crítico por parte dos grupos hegemônicos. É o que nos sugere Pablo Nabarrete em seu instigante ensaio “Engajamento na berlinda”, mostrando que a hegemonia burguesa promove um certo tipo de engajamento na medida em que incorpora o povo ao seu projeto de dominação, coopta os intelectuais de esquerda, ressignifica as próprias ideias e práticas de resistência, inclusive o próprio conceito de engajamento, originalmente associado ao pensamento transformador.

Segundo o autor, esse conceito de origem eminentemente política ganhou hegemonicamente nas últimas décadas o sentido de alinhamento ideológico entre as empresas, suas marcas e seus públicos, tanto no nível da comunicação corporativa como na comunicação mediada por plataformas de mídias sociais. Como faz com todas as ideias que possam ameaçar o sistema simbólico dominante, o capital se apropriou do engajamento como vinculação ideológica em proveito da acumulação e da sua reprodução material e simbólica. Contra essa perspectiva hegemônica, trata-se de recuperar o sentido revolucionário do engajamento, como condição de uma práxis transformadora.

6.

O fato de que, dos tempos de Antonio Gramsci até hoje, as elites tenham aumentado vertiginosamente sua capacidade de organizar a vontade política das massas por meio de poderosos instrumentos de hegemonia não tira a atualidade da teoria e da estratégia gramsciana. Pelo contrário: essa teoria permanece como explicação da extrema dificuldade de se criarem as condições subjetivas para a realização de uma revolução socialista nos países de tipo “ocidental”.

Hoje, a tarefa dos intelectuais populares na luta pela hegemonia política continua sendo a de criar e difundir uma visão de mundo crítica capaz de se apoderar das massas, tornando-se força material. No espírito gramsciano, espera-se que, nesse momento crucial em que vive a humanidade, esses ensaios teóricos contribuam praticamente para a transformação consciente do mundo.

*Eduardo Granja Coutinho é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor, entre outros livros, de A paixão segundo Antonio Gramsci (Mórula).

Referência


Eduardo Granja Coutinho (org.). Cultura e filosofia da práxis. Rio de Janeiro, Editorial Mórula, 202), 268 págs. [https://amzn.to/42GFjP1]

Bibliografia


BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. Torino: Einaudi, 1975.

________. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, v. 1, 6.

MARK, Karl; ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã e outros textos filosóficos. Lisboa: Editorial Estampa, 1975.

Nota


[i] A famosa frase de Marx “Tudo o que eu sei é que eu não sou marxista” se encontra em uma carta a Conrad Smith de 5 de agosto de 1890.

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