Dahomey

Frame de "Dahomey"/ Divulgação
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Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o documentário dirigido por Mati Diop

A restituição de obras de arte de povos colonizados é assunto que insiste em retornar, um incômodo que perambula pelos museus ocidentais, sobretudo Europa e Estados Unidos, como signo de fratura – histórica e civilizacional. O assunto é, também, signo da violência colonialista que habitou o planeta nos últimos séculos, e continua a habitar, travestido de novas formas e estratégias. Pois Dahomey, o documentário que a cineasta franco-senegalesa Mati Diop completou em 2024, danifica as percepções que se reúnem em torno desse incômodo, propondo-se, de certa forma, como um incômodo do incômodo.

Em novembro de 2021, 61 anos após o Benim conquistar a independência do império francês, 26 das milhares de antiguidades nacionais saqueadas foram devolvidas pela França ao seu lar africano: 26 entre 7 mil, para ser mais preciso, como informa o filme. Foi um gesto soi-disant altruísta e magnânimo do presidente Emmanuel Macron.

Dahomey começa com sequências assépticas e lentas da remoção dessas estátuas, que habitavam o Museu do Quai Branly, dedicado às “artes primeiras” – projeto ambicioso executado por Jacques Chirac e realizado pelo arquiteto Jean Nouvel, inaugurado em 20 de junho de 2006. São 40.600 m², acervo de 300.000 obras, das quais 3.500 em exposição.

Não é pouca coisa: anos e anos de colonialismo implacável que os franceses – logo os franceses, o berço do iluminismo – engajaram-se sem tréguas, e que sobrevive hoje, espalhado em pequenas posses pelo mundo, quase como uma caricatura. A maior fronteira da França (Guiana francesa), hélas, é com o Brasil. Não se sabe quantos desses 300 mil artefatos são resultado de pilhagens.

Um pouco antes da inauguração do Branly, o jornal Le Monde revelou que inúmeras peças eram provenientes de roubos na Nigéria, compradas em mercado clandestino. Isso não abalou Jacques Chirac, eufórico com a obra (governantes franceses valorizam muito serem lembrados por landmarks culturais).

A primeira narração do filme é uma dublagem soturna na língua Fon do rei Guezô (ou Guézo), que mandou no Daomé de 1818 até 1859. Indignado e perplexo pelo rótulo de “26”, ele se lamenta da longa noite do cativeiro nas cavernas do mundo civilizado – e deixa-se embalar, cercado de cuidados museológicos, para seu retorno à terra natal. Guezô é conhecido pela riqueza que acumulou negociando escravizados que capturava.

Dois próceres reais se juntam a Guezô para a viagem, ambos seus descendentes: Glelê, rei de 1858 e 1889, esculpido com cabeça de leão, e Beanzim, que liderou a resistência contra a invasão francesa de 1892 – representado como meio homem, meio tubarão.

O êxtase estético que Jacques Chirac e os milhões de visitantes experimentam ao contemplar a estatutária “primeira” provavelmente tem pouco ou nada a ver com o significado das peças na sua origem. Uma maneira de situar esse deslocamento seria pensar o sujeito-espectador dos museus ancorado numa espécie de metafísica popular vigente no Ocidente, como sugere o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro – metafísica que enxerga todo saber “outro” como uma versão precária de si mesmo.

É o “perspectivismo”, de acordo com o qual “segundo diferentes etnias, os porcos, por exemplo, se viam uns aos outros como gente. E enxergavam os humanos, seus predadores, como onça. As onças, por sua vez, viam a si mesmas e às outras onças como gente. Para elas, contudo, os índios eram tapires ou pecaris – eram presa. Essa lógica não se restringia aos animais. Aplicava-se aos espíritos, que veem os homens como caça, e também aos deuses e aos mortos”.

Dahomey, nessa ótica, seria um documentário “perspectivista”: as estátuas se veem umas às outras como humanos, e enxergam os humanos como predadores. O percurso da volta, no contrafluxo das pilhagens originárias, dos escravizados desterrados da África, dos emigrantes que buscam trabalho nos países industrializados – é um percurso que se organiza em torno desse mundo agora descentrado, sem o sujeito do conhecimento organizador do olhar que estamos acostumados a ver nos documentários.

Mati Diop não livra ninguém da virada de mesa que documenta: ou melhor, Guezô e companheiros é que não livram ninguém. A recepção das estátuas no Benim, dos festejos na rua à frieza da exibição no palácio – tudo concorre para deixar as estátuas ainda mais perplexas. Uma assembleia estudantil na Universidade de Abomey-Calavi, a principal no oeste africano do país, é o terço final de Dahomey: contradições, heranças culturais, saturação de argumentos – a história, afinal, é o “presente em construção”, constata Guezô.

“Os colonizadores roubaram nossa alma”, afirmou um dos presentes.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência


Dahomey
França, 2024, Documentário, 67 minutos.
Direção: Mati Diop


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