Por ANDRÉ LEMOS*
Darcy Ribeiro, um ícone do ‘fazimento’ no Brasil, deixou um legado indelével na educação e na luta por uma sociedade mais justa, integrando pensamento e prática em prol da transformação social
1.
Darcy Ribeiro, um homem literato e de fazimento, como poucos, conseguiu unir o pensamento à prática social e vice-versa. E como o próprio dizia, o termo “fazimento” está para o sentido de unir o pensamento à ação.
Nascido em Montes Claros, Minas Gerais, no ano da praticamente revolução cultural brasileira, em 1922, a partir da Semana da Arte Moderna. Baluarte encontro que reuniu as/os mais avançadas e avançados intelectuais e artistas do Brasil nos meandros da República Velha. Morreu no dia 17 de fevereiro de 1997, 17 de fevereiro, que também coincide com o dia de encerramento da referida semana derradeira para a Arte Moderna. Filho de um pequeno industrial e uma destacada alfabetizadora em sua cidadezinha, respectivamente Reginaldo Ribeiro dos Santos e Josefina Augusta da Silveira Ribeiro.
Em 1939 foi para Belo Horizonte estudar Medicina, mas, se apaixonou pelas Ciências Sociais. Se graduou na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), em 1946, com especialização em Etnologia. Se tornando um exímio indigenista, atuando no pantanal por uma década. Ainda nos anos iniciais de 1940, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB)[i], por onde começaria sua trajetória política.
O “fazimento” começa a surgir quando em 1947 ingressa no Serviço de Proteção ao Índio (SPI) do Conselho Nacional do Índio, que tinha como presidente, Marechal Rondon. A partir dos resultados de suas pesquisas publica seu primeiro livro intitulado Religião e mitologia Kadiweu, rendendo o prêmio Fábio Prada, da União de Literatura de São Paulo. Surgia o literato.
Em 1953 inaugurou o Museu do Índio via Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Formulou o projeto do Parque Indígena do Xingu, implantado pelos irmãos Villas-Boas em 1961. Lecionou etnologia na Fundação Getúlio Vargas, de 1953 a 1955.
Entre pesquisas e gestões, aos poucos se afastou do PCB. E com suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, se aproximou do trabalhismo se filiando ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Sendo convidado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), sediada em Genebra-Suíça, para um projeto de estudos indígenas de todo o mundo. Retornando ao Brasil foi convidado pelo presidente Juscelino Kubitschek, eleito em outubro de 1955, para o conselho de elaboração das diretrizes educacionais do respectivo governo, onde estreitou relações com o educador Anísio Teixeira.
E, passou a integrar o corpo docente da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
2.
Surgia o fazedor-literato na educação, em 1957 foi designado por Anísio Teixeira a dirigir a divisão de estudos sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Onde construiu a Revista de Educação e Ciências Sociais, e passou a fazer a defesa mais contundente da educação pública e da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação. Em 1959 foi incumbido de planejar a implementação da Universidade de Brasília (UnB), convocando para parceria na empreitada a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Tornando-se o primeiro Reitor da UnB, em 1961.
O ano de 1961 também foi ano da promulgação da primeira LDB de fato, sendo batizada de Anísio Teixeira, pelo protagonismo do educador. No governo parlamentarista (transitório) de João Goulart, 1961-1963, Darcy Ribeiro foi nomeado Ministro da Educação, por onde implementou o primeiro Plano Nacional de Educação (PNE/1962), criando o Fundo Nacional de Educação e determinando o investimento na educação pública dos entes federados (união, estados e municípios), os percentuais de 12% no caso da União e 20% no caso dos municípios.
Em 1963, após vitória eleitoral de João Goulart, para presidência (1963-1964), Darcy Ribeiro é empossado ministro da Casa Civil, sendo substituído por Paulo de Tarso no Ministério de Educação e Cultura.
Neste cenário, a educação popular entendia como prioridade a superação do analfabetismo e adquire dimensão inédita. O contemporâneo, filósofo Paulo Freire, já estava realizando suas primeiras experiências de alfabetização de adultos no Nordeste. Suas reflexões sobre modos de superação do analfabetismo literário, mas também político, levaram-no a desenvolver a categoria de educação libertadora em contraposição à educação bancária. E às consequentes observações sobre as relações de dominação (entre opressores e oprimidos) tanto no campo educacional, como na sociedade em geral.
A metodologia e aspirações freirianas foram incorporadas ao Plano Nacional de Alfabetização (PNA), no respectivo governo, com meta de alcançar 5 milhões de pessoas, se utilizando de círculos culturais. Projeto este também abraçado pela União Nacional do Estudantes (UNE), através do Centros Popular de Cultura (CPC).
Com o Golpe de 1964, Darcy Ribeiro é exilado no Uruguai, passagem pela qual se reascende o literato ao ser contratado pela Universidade da República, onde leciona Antropologia da Civilização e escreve o livro Processo Civilizatório, publicado em 1968. Depois deste, veio As Américas e a civilização (1969); Os índios e a civilização (1970); O dilema da América Latina (1971); O abominável homem novo (1972); Venutopias 2003 (1973); Utopia selvagem (1982); A nação latino-americana (1982); A civilização emergente (1984); O Povo Brasileiro (1995); e outros.
Numa literatura marcadamente pela linha antropológica, com centralidade na civilização, mas com intensa interdisciplinaridade com a sociologia. Principalmente consubstanciado na última de suas obras, e talvez a mais conhecida, O Povo Brasileiro, legitima seu pensamento entre os principais intérpretes do Brasil. Com um dado muito peculiar, o de transpassar os pensamentos de viés estritamente culturalistas e/ou estruturalistas, e implementar no pensamento brasileiro a relação dialética entre cultura e estrutura. Base a que se apoiam os mais responsáveis intérpretes brasileiros contemporâneos.
Na iminência, de fazedor, como vice-governador do estado do Rio de Janeiro, 1983-1987, ainda publicou o livro Nossa escola é uma calamidade, em 1984, uma denúncia crítica estrutural e da política-pedagógica das reminiscências do sistema de ensino advindo da ditadura militar e da desigualdade social.
Projeta o Programa Especial de Educação – Centros Integrados de Educação Pública (PEE-CIEP), inaugurado em 08 de maio de 1985, portanto, completando 40 anos neste ano de 2025. Eram voltados para as camadas populares, com plano orçamentário e político-pedagógico audaciosos. Porém, foi duramente criticado pelo campo conservador, pelo fato da referida prioridade, e também por parte do campo progressista, que o via desarticulado com a rede de ensino tida como oficial.
Contudo, o caráter de um modelo de ensino avesso ao neoliberalismo, tendo em vista seu potencial público e de perspectiva estatal, foi consagrado nas duas experiências, ou seja, no I PEE-CIEP (1985-1987) e no II PEE-CIEP (1991-1994).
Rompidos por governos que não aderiram, o Projeto CIEP se enfraquecia ao fim dos governos Brizola (1983-1987/1991-1995), e entrava em declínio, ficando sua presença física, que foi desenhada pelo arquiteto Oscar Niemeyer.
Em 1990 Darcy Ribeiro foi eleito Senador da República, 1991-1997, exercendo por completo até a sua morte por câncer. A doença o acometia quando resolveu assumir sua última empreitada no campo educacional, a promulgação da LDB/1996. Aprovou o projeto que tinha oposição de setores do campo progressista, incluindo os que outrora se opunham ao Projeto CIEP.
A LDB/96 apontou para algumas políticas universais com caráter de aprofundamento de políticas públicas, como a autonomia universitária, a exigência e estímulo de ensino superior do professorado, a merenda escolar e outras. No entanto, no cerne trazia elementos da conjuntura política do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que na educação era materializado num modelo pedagógico gerencialista, seguindo diretrizes de gestão sem a preocupação com a qualidade do ensino.
Por fim, adjetivar Darcy Ribeiro de “Literato do Fazimento” é por ter feito jus em ser um grande brasileiro. Lembrado em diversas dimensões da vida intelectual e política do Brasil. Estando legitimado e reconhecido em diversas instâncias, como, em especial: o de assumir a cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras, em 1992, mesmo ano que votou pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor; e o da sua inscrição no Livro dos Herois e Heroínas da Pátria, em 2024, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2023-2024), que em mais de uma ocasião o pediu desculpas publicamente (in memorian) por comportamentos no âmbito de divergências político-partidárias.
Foi o homem, fica a memória, tendo como principal luta uma educação pública, laica, integral e de qualidade, enfrentando as mazelas do conservadorismo e da desigualdade social, fruto da opressão de classe.
*André Lemos é sociólogo e mestre em educação.
Referências
FARIA, L. CIEP, a utopia possível. São Paulo: Livros Tatu, 1991.
GOMES, A. Darcy Ribeiro. Recife: Massangana, 2010.
LEMOS, A. Globo versus CIEP: o embate! Campinas (SP): Apparte, 2024
Nota
[i] Até 1962 o registro de nomenclatura e respectiva sigla se dava dessa forma.
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