O Reino Unido mais uma vez é chamado a ser palco do desafio recorrente de ser vanguarda e ter olhos e mentes voltados para a memória quase-insuportável do próprio passado humano, branco, machista e imperial
Por Gilson Schwartz*
“As ideias são sucedâneas do
sofrimento” (Marcel Proust, O Tempo Reencontrado, publicado postumamente em 1927).
“Não seria a indigestão mais rica em ideias que um desfile de conceitos?” (E.M. Cioran, em Breviário de Decomposição, 1949).
“Eu gostaria de tornar público que eu nunca fui capaz de desgostar de
Hitler. Desde que ele chegou ao poder – até então, como quase todo mundo, eu me
iludi achando que ele era irrelevante – considero que eu certamente o mataria
se eu pudesse chegar perto o suficiente dele, mas que ainda assim não sinto
nenhuma animosidade pessoal. Agora que estamos lutando contra o homem (…)
melhor não subestimar seu apelo emocional”. (George
Orwell, Resenha de Mein Kampf, New English Weekly, 21 de março de 1940).
“Este Parlamento é um Parlamento morto!” (Geoffrey Cox, Procurador-Geral da Inglaterra e Membro do
Parlamento alinhado aos conservadores, segundo relato de John Bercow dos
momentos dramáticos que levaram à convocação das eleições que em dezembro de
2019 levaram Boris Johnson a consolidar a vitória conservadora pela
implementação imediata do Brexit (https://www.theguardian.com/books/2020/jan/25/john-bercow-speaker-house-commons-memoir).
O sofrimento que se traduz em ideias perde algo
de sua mortífera eficácia emocional e até mesmo o primeiro instante dessa
transformação torna-se ele mesmo o disparador de um sentimento de euforia,
detalhava o investigador do tempo perdido. Cioran, retomando o fio da meada
existencialista no tempo do genocídio industrializado, insiste nessa
esterilidade da conceitualização tão somente abstrata, fruto apenas do
pensamento e da abstração. No lugar do “penso, logo existo”, “meu corpo sofre,
logo penso”.
Somente um corpo doente ou estressado ao ponto
de duvidar da própria existência pode produzir ideias vivas. O intelectual que
se prostra investigando as estrelas à espera de uma ideia redentora não vale
meio poeta. E todo pensador é na realidade um mercador de produtos de segunda
mão, pois a ideia antes de ser conceito é dor.
A celebração da libertação de Auschwitz pelo
Exército Vermelho há 75 anos dá vitalidade surpreendente a tais conceitos-vivos
de Proust, Cioran e Orwell. Da industrialização da morte em Auschwitz à mortificação
social no Brexit há uma reverberação que lembra, também, a celebérrima imagem
do anjo de Klee que se imortaliza na metáfora visual cunhada por Walter
Benjamin para representar o “progresso”.
Um anjo que forja o futuro enquanto contempla a
acumulação sempre primitiva e renovada de cadáveres, vítimas de guerras,
inundações e desmoronamentos, recessões e atentados terroristas, invasões
neocoloniais e epidemias, incêndios criminosos e outros males amplamente distribuídos
entre os mais pobres.
Entre as inúmeras e complexas avaliações de
cada crise capitalista (de 1929 ao Holocausto, de 2008 ao Brexit), de longe a
mais convincente (senão apenas óbvia) é a associação entre paralisia da máquina
de produzir e concentrar riqueza e a imediata aplicação da vanguarda
tecnológica em processos violentos de destruição em massa de recursos materiais
e imateriais.
Não se trata apenas de “austeridade” fiscal
(que aprofunda a destruição e decomposição de materiais, corpos e mentes) mas
de conversão “produtiva” da fronteira tecnológica para fins “necropolíticos”.
Nos dois casos vibra uma economia necropolítica
em que a força das ideias é diretamente proporcional à intensidade da morte
cívica ou social provocada pelas formas mais avançadas de inovação tecnológica:
a indústria fordista no início do século XX, a midiatização iconômica no início
do século XXI.
O principal campo de batalha é resultado da
mercantilização dos corpos cujo valor é determinado pela individuação
industrializada, processo avançado que foi preparado pela racionalização
técnica (mapeada por Max Weber), pela massificação do consumo sem cuidado de si
(emergência biopolítica diagnosticada por Michel Foucault) que culmina com a
guerra santa pela cultura da esperança numa época sem espírito (denunciada
contemporaneamente por filósofos como Bernard Stiegler).
Tanto no ciclo que leva à Segunda Guerra
Mundial como no Brexit a guinada conservadora é fruto de uma preparação
relativamente longa que se inicia com a crise financeira e industrial que se
projeta internacionalmente, levando à reafirmação do nacionalismo, da xenofobia
e do anti-semitismo. O erro maior dos trabalhistas britânicos foi a aproximação
mimética da esquerda mais extrema aos valores conservadores (apesar de toda a
retórica contra a austeridade e pela socialização da saúde e das
telecomunicações, o trabalhismo inglês de Corbyn ficou perigosamente próximo de
aceitar o próprio Brexit).
Vale ainda lembrar que o referendo sobre o
Brexit foi convocado por David Cameron, um conservador, mas já em 2016 o líder
trabalhista Corbyn adotava um discurso ambíguo sobre o Brexit frente à perda de
mais de um terço do seu eleitorado nas áreas mais desindustrializadas do país.
Afinal, Corbyn sempre foi anti-União Européia, anti-EUA, anti-Israel. Tony
Blair validou a guerra do Iraque. A conquista do controle partidário por uma
ala esquerdista que na prática endossava taticamente posições conservadoras
minou sua potência.
Na prática, tanto conservadores quanto
trabalhistas vieram a público apresentar ideias que parecem ancoradas com firmeza
no sentimento de dor, perda e medo da perda de identidade que se apoderou dos
corpos dos indivíduos e da própria materialidade social de uma economia em
crise.
Holocausto no Museu da Guerra Imperial
(https://www.iwm.org.uk/events/the-holocaust-exhibition)
Do Brexit retorno, em mergulho multimídia, a
Auschwitz. A maquete está montada em branco, no momento mais emocionante da
exposição sobre o Holocausto em cartaz no Imperial
War Museum de Londres. https://www.iwm.org.uk/sites/default/files/styles/text_with_media_large_desktop_1x/public/2018-01/Rag%20doll%20of%20female%20concentration%20camp%20prisoner%20%C2%A9%20EPH%2010142.jpg?itok=E_Ath9ZT
Auschwitz foi libertado pelos soviéticos,
Bergen-Belsen pelos ingleses.
A experiência do olhar é dissecada pela
curadoria do Imperial War Museum, que
oferece uma experiência em VR (Realidade Virtual) dos ícones da barbárie
nazista. https://www.iwm.org.uk/events/the-eye-as-witness-through-whose-eyes-vr-experience
A visita à exposição tem a opção com guia. São
noventa minutos de aprendizagem mesmo para quem, como eu, ouve e lê histórias
do Holocausto desde criancinha. E de pura emoção: entre chorar, sentir ânsia de
vômito, ficar perplexo, envergonhado de ser humano, estupefato diante da
banalidade visual do mal, mendigando esperança no simples fato indiscutível de
que tudo isso ficou enterrado sob milhões de cadáveres no passado, há quase um
século…
Só que não. Depois de noventa minutos de
imersão corporal, visual, intelectual, política e ideológica sobre o
Holocausto, ao sair daquele labirinto histórico e espiritual mais repugnante, o
visitante dá de cara com a Little Boy,
a bomba atômica. E logo adiante, ocupando vertiginosamente o saguão principal,
uma bomba V2. Mais adiante, um veículo que carregava jornalistas quando foi
atacado na Guerra do Iraque. O espetáculo da guerra imperial e seus artefatos
mortíferos colocam o cérebro do visitante que vem da Colônia em estado de
pasmo, o espírito em espasmo.
A contração física, mental e emocional
provocada pela experiência da guerra imperial ao longo da história humana
coloca o indivíduo numa perspectiva à qual parece faltar conceito, pois é a
solução pela violência recorrente de todos os desafios humanos apesar das
sucessivas revoluções tecnológicas, culturais e espirituais. O futuro vai
acontecendo, mas a cada ciclo parecem retornar os atavismos mais perturbadores,
as emoções mais doentias e as ameaças mais violentas como sinais de que não há
ideias sem sofrimento e que o crescimento do PIB pode ser apenas o resultado de
insondáveis sacrifícios na praça do mercado. Que sejam sacrifícios humanos que
se tornam progressivamente mais desumanos é outra característica desses
momentos em que o avanço da técnica acaba servindo aos desígnios de seleção a
mais perversa e autoritária de quem pode viver, quem deve ser enviado às
câmaras de gás e ao crematório.
Santo de Casa Não Faz Milagre
A crise no sistema nacional de saúde (NHS) que
se arrasta há anos como resultado indiscutível de cortes orçamentários,
terceirização de serviços e contenção dos gastos com recursos humanos é apenas
a ponta do iceberg.
A transformação de banheiros em solitárias para
castigar alunos de rendimento ou comportamento “fora da curva” é apenas um
sintoma da mobilização em escala crescente de crianças e adolescentes para
atuar nas county lines de
distribuição de drogas por todo o território britânico. São centenas de
“aviõezinhos” recrutados no sistema de encarceramento educacional que virou nos
últimos anos, na Inglaterra, uma verdadeira rede pública de escolas do crime. O
recorde no número de mortes por esfaqueamento em Londres é assustador.
A retórica liberal e a idolatria das forças do
mercado, tão a gosto das portentosas casas financeiras estabelecidas na “City”,
mostra sua verdadeira e nua face no escândalo dos investimentos no “trem bala”
na Inglaterra. É coisa para deixar o “mensalão” e o “petrolão” como notas de
rodapé na história das relações incestuosas entre capital, Estado e partidos
políticos. Por enquanto, a simples ameaça de corte imediato das despesas com o
projeto de trem bala coloca no horizonte um prejuízo aos cofres públicos de 12
bilhões de pounds (mais de R$ 70 bilhões). Há milhares de empresas em
praticamente todos os setores ameaçados pelo corte (caso o Brexit pudesse
contar com programas de “austeridade” para tornar-se crível).
Na prática, a desregulamentação financeira
associada ao uso estratégico das compras governamentais e dos grandes projetos
(da infra-estrutura à economia criativa) tornou-se uma lógica de reprodução da
economia britânica que simplesmente não tem como dobrar-se aos requisitos
tradicionais (ortodoxos) de geração de confiança em mais emprego, investimento
e renda.
O altar mercantil onde se invocam as graças dos
céus para validar uma nova autonomia frente aos mercados europeus via Brexit
seria viável apenas provocando uma destruição social, humana e física comparável
à combinação de Auschwitz com Nagasaki e Hiroshima. Acreditar que a criação de
barreiras à geração de empregos no exterior é a saída para evitar a
desindustrialização com perda acelerada de empregos doméstica é subestimar o
tamanho da contradição em que se meteu a elite conservadora e suas milícias de
extrema-direita.
Cabe à inteligência coletiva das coalizões
sociais e democratas preparar-se para o day
after dessa hecatombe suicida do neoconservadorismo racista que novamente
dará lugar a um novo ciclo de recomposição de parcerias onde a destruição,
quando inevitável, seja criativa e geradora de horizontes autênticos de
emancipação do ser humano em harmonia com os seres e coisas desse planeta. As
rachaduras nos pactos mais extremos do conservadorismo humano, como foram
Auschwitz no passado e o Brexit no presente, são resultado de contradições
vivas, produzidas por corpos em confronto, não por ideias ou desfiles de
ideias, com mais ou menos fanfarra acadêmica, política ou cultural.
A necessidade de avanços acelerados rumo à nova
onda de telecomunicações cujo custo será menor apenas se a máquina produtiva
chinesa estiver integrada às redes mundiais, os efeitos autonomistas e
complementares das formas culturais de resistência ao consumismo e retomada dos
cuidados de si, do Outro e do meio-ambiente, a realidade dramática dos eventos
antropocênicos de magnitude metanacional como as queimadas, as epidemias, a
poluição por radioatividade e a mortificação do emprego pela precarização da
ocupação em nome de uma suposta ativação espontânea do empreendedorismo e da
inovação disruptiva… tudo isso é intenso, complexo e urgente demais para que
funcionem as cortinas de fumaça habitualmente criadas por quem tem apenas
“ideias”, mas não a capacidade intelectual orgânica de produzir novos pactos
pela vida, pela liberdade e pela emancipação social.
Ao viver no corpo dos indivíduos e da sociedade
o caráter radical das contradições entre o nacionalismo, o racismo, o
liberalismo econômico e as forças mais dinâmicas do próprio capitalismo, da
sociedade global e da cultura digital, o Reino Unido mais uma vez é chamado a
ser palco do desafio recorrente a ser vanguarda e ter olhos e mentes voltados
para a memória quase-insuportável do próprio passado humano, branco, machista e
imperial.
Como no anjo de Paul Klee, como no alerta de
George Orwell ou nas memórias filosóficas de Proust e Cioran, é preciso ir além
de Auschwitz, além do Brexit sem abrir mão de discernir democraticamente o Bem
e o Mal. Apelos emocionais exploram a necessidade humana de transformar a dor
em conceito, o sofrimento em aprendizado, conhecimento e esperança. Exploram,
mas produzem apenas ideologia que espelha as contradições de uma exploração da oportunidade
dos afetos, uma mais-valia emocional.
É inevitável que a lógica dos ícones confirme apenas a relação entre corpo e conceito que de fato leva à superação da dor e a uma nova euforia, ainda que provisória e frágil como sempre. A memória dos espasmos autoritários é também a demonstração empírica de que os assassinos sempre perdem para os poetas.
*Gilson Schwartz é Visiting Fellow do Departamento de Humanidades Digitais do King´s College de Londres, professor da ECA-USP e autor, entre outros, de Iconomia, Introdução à Crítica Digital da Economia Industrial e Financeira (Editora da UFBA), disponível em https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/30949
