Democracias desabitadas

Imagem: Los Muertos Crew
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Por EMILIO CAFASSI*

O voto em branco deixou de ser um gesto excêntrico ou um luxo reservado aos mais requintadamente conscientes. Tornou-se um fenômeno massivo

1.

As urnas fecharam, mas os sonhos não se levantaram: apenas as cortinas das urnas foram abaixadas. O entusiasmo foi silenciado, exceto para os contadores do cinismo: calculadora na mão e passaporte direto para as poltronas macias do privilégio. As urnas, outrora palco de pactos coletivos e sonhos disputados, encheram-se desta vez com mais ausentes, votos em branco e anulações silenciosas ou ruidosas.

Embora em proporções muito diferentes, em Montevidéu, Caracas e Buenos Aires, a disputa eleitoral no mês de maio foi menos uma eleição do que um espelho embaçado. Há algo em comum que se possa suspeitar nesses três cenários tão díspares e heterogêneos? O que refletem esses números, dispostos em colunas e porcentagens? Refletem, talvez, um cansaço que não grita mais; expressa-se na linguagem da retirada.

De um desgosto íntimo. De uma ruptura com o ritual. De um vínculo que se esvai não com a fúria, mas com um suspiro. No Uruguai, a geada do desencanto cobriu os velhos bastiões do progressismo: o voto em branco ou nulo subiu para 11,2% em Canelones e 7,8% na capital, Montevidéu, onde a participação permanece alta por obrigação, mas apresenta tendência de queda por convicção.

Em quase todos os departamentos, os votos na Frente Ampla caíram em comparação com 2024. No entanto, o fato mais perturbador não é o quanto se perdeu, mas o quanto e o que desapareceu. Como se o compromisso cívico tivesse se tornado uma névoa: presente na forma, ausente na substância. Na cidade de Buenos Aires, a abstenção se infiltrou pelas frestas de uma cidadania desiludida, onde o absenteísmo é maior entre os setores da classe trabalhadora. Eles não disputam mais eleições: simplesmente retiram a assistência.

Entre a falta de militância, a resignação ao poder econômico externo e o enfraquecimento do peronismo, a Capital Federal expôs mais uma vez sua orfandade representativa, como um terreno baldio sem lar ou abrigo político.

A Venezuela, com seu teatro eleitoral vazio, levou a metáfora ao extremo. O chavismo conquistou 23 dos 24 governos estaduais com uma participação oficial de 42,6%, embora a oposição estime que a abstenção real tenha ultrapassado 85%. Lá, o ato eleitoral não é mais exercido: é simulado. As imagens de urnas sem público e seções eleitorais desertas são eloquentes. Em um país com voto voluntário, cujo auge chavista chegou a ultrapassar 90% de participação, hoje a maioria não vai mais às urnas. Não porque não se importe, mas porque não acredita mais. E nessa descrença, a ausência se torna, paradoxalmente, seu último gesto de fé.

2.

Este não é um acontecimento isolado nem recente. O desencanto multiplica-se por todo o Ocidente, amplificado pela ascensão da extrema direita. As suas raízes são pelo menos duplas: uma persistente, estrutural; a outra mais temporária, mas imediatamente efetiva. A apatia política de vastos setores não nasce do desinteresse, mas de um regime que os aliena institucionalmente: a democracia representativa não incentiva a participação. Em vez disso, desencoraja-a.

As repetidas tentativas de participação e seus estéreis resultados político-institucionais produzem frustração e passividade na sociedade civil. As mobilizações sociais nunca conseguem transcender o protesto ou a pressão, uma vez que o regime político as proíbe de qualquer intervenção institucionalizada na tomada de decisões, condenando-as a meras “reclamações”, a gritos ao ar livre, sem voz efetiva.

Ao mesmo tempo, nesta situação particular, as políticas monetaristas de ajuste e recessão apenas deterioram as condições de vida de amplas camadas sociais. Elas se dissipam como geadas tardias: murcham as condições de vida onde eram mais frágeis. A erosão cívica nem sempre ruge: às vezes, mal sussurra, como um desgaste que se infiltra em gestos indiferentes.

O enfraquecimento da democracia representativa em nossa região não exige mais golpes de Estado ou proscrições categóricas. Basta-lhe o bocejo, a renúncia, o deslocamento silencioso do cidadão à margem do quarto secreto no Uruguai, chamado quarto escuro na margem oposta do rio. Essa resignação não é simples apatia; é um sinal, um sintoma, um alerta. Nem é desinteresse: é um gesto que arde em silêncio. Quando a política não convoca nem ultraja, o que resta? Apenas o vazio disfarçado de normalidade.

O voto em branco tão desconsiderado pelo partido governista quanto temido pelos estrategistas – deixou de ser um gesto excêntrico ou um luxo reservado aos mais requintadamente conscientes. Tornou-se um fenômeno massivo. No Uruguai, como na Argentina, ele prospera onde as tensões sociais são mais agudas, onde promessas de mudança encalharam repetidamente na rocha fossilizada da desigualdade. E quando até mesmo o gesto simbólico do voto deixa de ser satisfatório, surge o vazio absoluto da abstenção: uma espécie de secessão silenciosa, um exílio doméstico, sem qualquer saída.

Votar já não basta e, na verdade, nunca bastou. O que está em crise não é apenas o ato de votar, mas o seu significado. Na Venezuela, o ritual tornou-se uma simulação: um teatro de números recitados como dogmas, sem possibilidade de verificação, num cenário em que o principal inimigo é a anomia, esse esgarçamento invisível do pacto cívico. Os cidadãos permanecem em silêncio, não porque não saibam, mas porque já não têm esperança. O silêncio nas urnas não é medo: é descrença. É a política reduzida a protocolo: uma coreografia oca, sem alma, desprovida de consentimento ou legitimidade.

Na Argentina, o absenteísmo não grita: ele se infiltra. Ele se disfarça de cansaço sereno. Não há fraude nem proscrição, mas sim um abismo cada vez mais profundo entre a representação política e as decisões determinantes da vida cotidiana. A ideia de que “nada vai mudar” torna-se um princípio que não é gritado: corrói em silêncio.

O efeito é duplamente devastador: primeiro, o compromisso é retirado, depois a saúde cívica coletiva sofre. Como Mark Fisher alertou em seu livro Realismo capitalista: não há alternativa?, quando o sistema falha, o dano é invisível: aloja-se profundamente, como uma culpa implantada que parece natural e inescapável. E, portanto, o absenteísmo não é apenas aquele que não vota: é aquele que não se reconhece mais no bem comum.

Diante desse cenário, tanto os partidos governistas quanto a oposição reagem com a mesma miopia: promessas recicladas, campanhas sem brilho, candidaturas sem alma. Mas o problema não é tático. É existencial. Não é um problema de estratégia: é uma crise de sentido. O que está desaparecendo não é o eleitorado, mas a ilusão de que há um futuro a ser conquistado.

A democracia, portanto, torna-se gestão, e a política, espetáculo. Onde antes havia conflito, há deserção. E essa deserção não é neutra: ela favorece aqueles que melhor controlam a situação, aqueles que podem governar sozinhos, mesmo sem testemunhas ou supervisão.

Onde a participação declina, prevalece a ordem do silêncio. Não uma ordem fundada no consenso, mas na disciplina: policial, fiscal, cultural. Na Argentina, o esvaziamento simbólico do voto abre caminho para uma experiência que se proclama libertária, mas exige submissão. À medida que o voto popular declina, as perguntas são regulamentadas, o protesto é criminalizado e as operações de inteligência se multiplicam.

Um clima de hostilidade é fomentado onde qualquer pessoa que discorde é execrada, incluindo os aliados mais leais. A liberdade é um significante desequilibrado lá: o mercado é libertado enquanto a palavra é aprisionada, os cidadãos são expulsos das ruas e qualquer forma de dissidência expressiva ou pluralidade é reprimida.

Neste clima, a abstenção não é apenas um efeito: é também o prelúdio. Quando a democracia se reduz a uma eleição sem opções reais, a um ritual em que o cardápio repete sempre os mesmos pratos frios, quando toda dissidência é rotulada como casta ou conspiração, que espaço resta para a representação?

Não há espaço para representar a diversidade: apenas para ratificar o que foi imposto. Governos autoritários não temem o voto: temem cidadãos ativos. É por isso que celebram cada ponto de participação que desaparece, cada jovem que não comparece, cada bairro que se fecha como um animal ferido. Nessa desmobilização, eles veem sua oportunidade de permanecer. Nesse vácuo, eles se consolidam.

O preocupante é que essa tendência não é privilégio de regimes autoritários, onde a abstenção pode, por vezes, levar a insurreições, como em 2001 na Argentina ou como a desgastada oposição venezuelana sonhou inutilmente.

Tampouco é privilégio de democracias liberais intervencionadas, onde o FMI dita e a soberania impera, como na Argentina, onde votar parece cada vez mais um gesto de resignação. Também no Uruguai — onde a participação permanece elevada por mandato legal — começa a emergir uma fratura mais sutil, mas não menos grave: o ato de votar persiste, sim, mas esvaziado de significado. O voto que realiza, mas carece de crença. O voto sem fervor. O voto sem decisão.

A retração não desmantela apenas estruturas: ela solapa significados, costumes e linguagens. Seus efeitos não se medem apenas em posições ou regulamentos: infiltram-se também no imaginário, na língua pública, no espírito coletivo. Na Venezuela, o desengajamento eleitoral reforça a narrativa do regime, que transforma a apatia em obediência tácita, em consentimento aparente.

Na Argentina, o desengajamento se transforma em votos quebrados, em corpos ausentes, que rasgam ainda mais o fio que entra no tear social. E no Uruguai, a despolitização que começa a crescer embrionariamente nas margens ameaça erodir até os fundamentos simbólicos mais arraigados do progressismo, que vê seus bastiões esfriando silenciosamente, ao ritmo de uma cidadania que não se sente mais tão desafiada.

O que fazer diante desse fluxo e refluxo, que varre certezas e deixa promessas à deriva? Como reacender a chama da política em tempos de desencanto? Não basta invocar a epopeia do voto ou apontar os dentes do autoritarismo: é preciso algo mais profundo, mais vital. É preciso uma regeneração emocional do laço social. Uma reconstrução de um horizonte comum.

Reconstituir um horizonte comum baseado no desejo, na eficiência, na certeza de que ninguém se salva sozinho, de que a luta é coletiva, porque a democracia não se reduz às urnas, mas à construção coletiva do próprio destino. Hoje, as urnas não faltam; falta a convicção de que outro mundo pode nascer.

O paradoxo é cruel: votar nunca foi tão fácil, escolher nunca foi tão difícil. Telas e listas repletas de candidatos, com ruas anoréxicas de convicções. E nesse interstício, o cinismo cresce, os poderosos se agarram, o futuro se esvai. Portanto, a maior ameaça à democracia é que essa forma fiduciária de representação, baseada na autonomia do representante, na desconexão entre líderes e liderados, se apresente como única, gerando essa lenta evaporação do desejo coletivo.

Não é fraude. Nem mesmo ditadura explícita. É a lenta agonia de uma chama que bruxuleia, quase sem oxigênio, na atmosfera ideológica rarefeita pelo individualismo.

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Artur Scavone.

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