Por MARIO LUIS GRANGEIA*
Camões além-mar, um simbolismo para a diáspora portuguesa
1.
Indivíduos e famílias de todos os quadrantes imigraram neste país sul-americano mestiço de longa data, sobretudo cidadãos europeus após o fim tardio da escravatura formal em 1888 – tanto que o censo captou em 1900 que os estrangeiros eram 6,2% da população. Enquanto essa fração caía – para menos de 0,5% nos últimos censos –, houve movimentos para lembrar as sagas desses grupos a partir de Dias municipais, estaduais e até nacionais.
Italianos, japoneses e judeus conquistaram em Brasília datas pelas suas imigrações: 21 de fevereiro, pela chegada de 380 famílias italianas a Vitória em 1874; 18 de junho, pelo desembarque de 781 japoneses em Santos em 1908; e 18 de março, pela reinauguração da primeira sinagoga nas Américas, em Recife em 2002.[1]
Outros estrangeiros têm dias subnacionais e, na falta de um genérico Dia do Imigrante na agenda do país, eles têm 18 de dezembro, que as Nações Unidas fixaram como Dia Internacional do Migrante. Essa escolha alude à assinatura da convenção dos direitos de trabalhadores migrantes e de suas famílias, em 1990.
É fato que esses dias nem sempre são celebrados, mas eles têm valor ao menos simbólico por (re)valorizarem as raízes e os frutos de tantas árvores genealógicas. Historicamente, o maior grupo imigrante em solo brasileiro remonta ao país dos outrora colonizadores. No censo de 2000, por exemplo, um de cada três estrangeiros tinha origem em Portugal.
E se houvesse um dia do imigrante português… qual escolher? Três dias viriam à mente: (i) 7 de março… pela “imigração” da corte no Rio de Janeiro, destino da frota de 1808? (ii) 6 de fevereiro… pela fundação da emblemática colônia de Nova Lousã em 1867? (iii) 10 de junho… do feriado luso do Dia de Portugal, Camões e Comunidades Portuguesas?
A transferência da corte à colônia, por força do avanço das tropas de Napoleão, marcou a busca de portugueses por vida nova noutros territórios, mas essa escolha seria imprecisa, afinal, o Brasil seguiu sob domínio português até 1822.
Aliás, na contramão de autores que difundiram que 15 mil pessoas (8% da população de Lisboa) estavam na frota com a rainha D. Maria I e o príncipe regente D. João – versão lida nas memórias do oficial da Marinha inglesa Thomas O’Neil, que não assistiu ao embarque –, o historiador Nireu Cavalcanti levantou os nomes dos acompanhantes em oito acervos em Lisboa e Rio de Janeiro e concluiu haver 420 civis, religiosos e militares e 101 oficiais da Marinha.[2] Os 14 membros da família real e mais de 400 acompanhantes seriam talvez “pré-migrantes”.
2.
O exercício de imaginar um dia assim não precisa, aliás, se ater a pioneiros. Pode remeter à chegada de um grupo representativo, como as 380 famílias italianas que desceram do vapor Sofia em Vitória, no verão de 1874, rumo à fazenda Tabacchi, no Espírito Santo, marco do dia nacional do imigrante italiano. Daí nossa cogitação pelo 6 de fevereiro, dia da chegada, em 1867, dos primeiros 29 imigrantes à Colônia Portuguesa de Nova Lousã, criada no atual município paulista de Pinhal e um modelo da adoção de trabalho livre em tempos de escravidão.[3]
O núcleo colonial foi concebido por João Elisário de Carvalho Montenegro, o comendador Montenegro, nascido em Lousã, perto de Coimbra, e que emigrou para o Rio de Janeiro no início dos anos 1840, prosperou como caixeiro-viajante e em 1867 adquiriu sua fazenda de café em Pinhal. Em vez de ter escravos ou lavradores com contratos de parceria ou empreitada, ele recrutava lousanenses conhecidos e lhes pagava mês a mês.
O governo imperial dava subsídio à passagem, por serem migrantes já contratados, e os salários permitiam quitar dívidas da viagem em cinco meses, pelos cálculos do empregador. Ele ligava o êxito de sua fazenda ao fato de que “o sistema, pois, adotado no estabelecimento, para a retribuição do serviço, é o salário mensal, o único sistema que deixa de produzir descontentamentos nos colonos, causar ou dar azo a queixas e até a sérios motins, como tem sido exemplo vivo algumas colônias desta bela província”.[4]
Embora singular e emblemático da imigração lusa (e do ideário antiescravagista), o caso de Nova Lousã seria, a meu ver, preterido como seu marco simbólico em prol de 10 de junho – este o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. O feriado luso criado em 1978 alude à morte do poeta Luís de Camões em 1580 e o dia foi chamado pelo regime ditatorial do Estado Novo (1933-1974) como Dia de Camões, de Portugal e da Raça.
A semelhança de datas oficiais nas duas margens do Atlântico iria ao encontro da buscada valorização do português tanto lá como cá. Remeteria igualmente ao autor do clássico Os Lusíadas que, às vésperas de morrer e de a Espanha anexar Portugal, escreveu numa carta que “enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei de morrer nela, mas com ela”.[5]
Ecoando Camões e outros autores notáveis, imigrantes portugueses entrevistados numa das pesquisas na raiz de meu livro Irmãos de além-mar? Portugueses e a imigração no Brasil, deram muitas demonstrações de afeição à pátria mesmo sem viver nela há tantos anos (demonstraram outros sentimentos sobre a vida nos dois países lusófonos, mas não cabe reconstituir também neste presente artigo).
Na defesa deste Dia de Portugal como marco hipotético de um eventual dia do imigrante português, recorro à palavra sensível da cantora brasileira Adriana Calcanhotto, que após fazer shows ao longo de tantos anos em cidades portuguesas, foi viver na pátria de grandes poetas: “O dia de Portugal não é o dia de um general, de um estrategista, de um descobridor, de um desbravador, de um rei, um golpista, um conquistador, um ditador autoritário, um lunático, nem mesmo de um metalúrgico. É o dia de um poeta. Que outro país é assim?”.[6] Nada mais justificaria melhor essa escolha para aquela data imaginária.
*Mario Luis Grangeia, analista do Ministério Público, é doutor em sociologia pela UFRJ. Autor, entre outros livros, de Irmãos de além-mar? Portugueses e a imigração no Brasil (Editora UFRJ).
Notas
[1] Leis 11.687/2008, 11.142/2005 e 12.124/2009.
[2] Cavalcanti, N. A reordenação urbanística da nova sede da Corte. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. n. 436. jul./set. 2007. p. 149-199.
[3] Truzzi, O.; Scott, A. S. V. Pioneirismo, disciplina e paternalismo nas relações de trabalho entre proprietário e imigrantes no século XIX: o caso da colónia de Nova Lousã, em São Paulo. História: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. III, v. 6. 2005. p. 339-354.
[4] Monte-Negro, J. E. de C. Opúsculo sobre a Colônia Nova-Louzã fundada por João Elisário de Carvalho Monte-Negro em 1867. Campinas: Typographia da Gazeta de Campinas, 1872. p. 2.
[5] Camões, 1850 apud Machado Filho, Aires da M. Nossos clássicos: Camões Épico. v. 14. 4 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1966. p. 3
[6] Calcanhotto, A. Saga Lusa: o relato de uma viagem. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008. p. 125.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA