Por NILO BATISTA*
Prefácio ao livro recém-lançado, organizado por Marco Mondaini
Antes de mais nada é preciso enfatizar a proeza que Marco Mondaini realizou com este volume, nele reunindo alguns dos mais destacados representantes do pensamento criminológico crítico brasileiro e latino-americano e também, como a garantir a continuidade dessa corrente, três jovens talentosas pesquisadoras.
Essa proeza não pode ser explicada apenas pela densa formação acadêmica do organizador do livro, que transita entre a história e o serviço social; afinal, muitos historiadores e assistentes sociais competentes parecem desinteressados pela sangrenta contribuição do sistema penal à tragédia social brasileira. Talvez a sensibilidade de Marco Mondaini para a questão criminal, para além de muita leitura de criminologia que suas perguntas desvelam, tenha sido estimulada por sua caminhada semanal pelas trilhas da democracia, ao observar curvas e pedras bem pouco democráticas.
A primeira entrevistada, Vera Malaguti, expõe – com a habitual clarividência de suas análises político-criminais – as raízes históricas de sua influente reflexão criminológica: o aparentemente inexaurível legado escravista, que faz a polícia enxergar o quilombo de Manoel Congo em qualquer favela e farejar “atitude suspeita” em qualquer garoto preto andando por um bairro rico.
A indiferença de setores políticos do campo progressista à brutalidade policial é por ela vista como extemporânea desqualificação do lumpesinato, numa quadra histórica na qual a própria classe trabalhadora vê-se deformada por modelos de exploração ainda mais perversos.
A criminalização das economias populares, especialmente do comércio de drogas tornadas ilícitas, é por ela abordada com crítica contundente à recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que “não entra no cerne do problema” e, cá para nós, seria um avanço nos anos setenta do século passado, e hoje é – também a história não socorre os dorminhocos – um retrocesso que não altera nada do fracassado e mortífero proibicionismo.
Rectius: é um fracasso para suas finalidades ostensivas, mas é um sucesso para manter o empoderamento das polícias, conferir pretexto legal para invadir domicílios pobres, extorquir lucros e legitimar execuções policiais (basta dizer que o morto era traficante, mesmo sem exibir a condenação). Essa polícia “capturada pelo paradigma bélico” não tem reforma possível, e Vera Malaguti acaba de organizar um livro cujo título é Sem Polícia: temos que deixar o discurso “odeio polícia” e refletir sobre sua superação por algo institucionalmente muito diferente e melhor.
Marília Montenegro, autoridade acadêmica em violência de gênero, expõe sua pedagógica fórmula para denunciar a esquizofrenia dos sistemas penais contemporâneos, fraturados entre prisão (“para os mesmos”) e penas alternativas à prisão (“para os outros”), sendo certo que o advento das segundas não reduziu minimamente a utilização da primeira (mas certamente aumentou o controle do sistema penal sobre a população).
Essa mesma esquizofrenia se reapresenta na ambiguidade dessa expressão tão desgastada e talvez inaproveitável: segurança pública, que na forma do policiamento urbano produz simultaneamente “bairros beneficiados” e “bairros oprimidos”. Marília Montenegro registra a resistência de muitos juízes e tribunais à audiência de custódia, e poderia ter mencionado o sono trienal do juiz de garantias numa gaveta do Supremo Tribunal Federal.
A relevância de um adequado exame técnico-jurídico da absoluta necessidade da prisão cautelar, por ocasião da audiência de custódia, deriva da constatação de que réus presos são estatisticamente muito mais condenados que réus soltos.
Indo para a violência doméstica, é curioso recordar que, quando se quis agravar o sofrimento penal de condenados impedindo a aplicação de sanções meramente patrimoniais, a expressão “cesta-base” era usada depreciativamente (no sentido de algo pouco valioso como retribuição) pelos partidários da agravação, seres que vivem nas nuvens. Na realidade brasileira a mulher-vítima era revitimizada orçamentariamente sempre que a economia familiar era golpeada pela compra de uma cesta básica que o companheiro-ofensor devia oferecer a Têmis.
Entre as tantas observações sobre os Juizados de violência doméstica seleciono aquela da qual tantas outras derivam: estão tais Juizados “apropriados pela lógica do direito penal”. Não encerro este tópico sem mencionar duas lembranças do próprio organizador do livro em sua conversa com Marília: o figurino do estereótipo utilizado nas aulas sobre abordagem da polícia militar e a relevância do álcool em comparação com as drogas ilícitas; Marco Mondaini está com o olhar do criminólogo crítico.
A entrevista com a grande mestra da Criminologia brasileira Vera Andrade (que é também exímia penalista) é repleta de lições, a começar pela advertência de que a contraface do(s) abolicionismo(s) é o “eficientismo penal, o punitivismo populista em expansão”, e não o garantismo, a despeito de algumas turras teóricas.
O leitor ganha de presente uma fundamentada menção aos diversos abolicionismos como introdução a um amplo painel do estado de arte da justiça restaurativa no Brasil, a despeito da feroz resistência do sistema penal. Realmente, passar do modelo autoritário – quase arrogante – empregado por algumas das agências do sistema penal para um regime horizontalizado, no qual ofensor e ofendido refletem sobre seu conflito e sobre formas de superá-lo, parece impossível: a isto se opõe nossa “cultura punitiva fossilizada”.
Será indispensável “desempoderar o Judiciário”, que com argumentos muito flexíveis provindos do neoconstitucionalismo não apenas consegue driblar a Constituição (recorde-se a Corte Suprema perante a presunção de inocência), como às vezes legisla e outras vezes decreta.
É difícil categorizar Cecília Coimbra. Esta heroica brasileira, presa e torturada por resistir à ditadura, dispõe de uma têmpera revolucionária que transparece de uma frase de sua entrevista: “quem espera nunca alcança”. Esta grande militante foi fundadora e dirigente do grupo “Tortura Nunca Mais”. Mas esta professora doutora de psicologia trouxe notável contribuição ao mostrar como o punitivismo molda subjetividades.
Seu percurso na direção do pensamento criminológico crítico, por ela relatado, teve o sentido de uma renúncia ao ódio do torturador que nos odiou, pela razão intransponível de não sermos iguais, de não nos alimentarmos do sofrimento alheio. Cecília Coimbra sabe tudo: “a prisão é sempre política”, e “o punitivismo quer que todos nós sejamos policiais de todos nós”.
Cecília Coimbra trabalha com desenvoltura entre “os dois braços do biopoder: medicalização e criminalização”; no campo das drogas ilícitas, o primeiro braço atende aos ricos compradores e o segundo aos pobres vendedores. A incompreensão de quadros políticos do campo progressista da questão criminal é por ela resolvida com apoio de Gilles Deleuze: “não existe governo de esquerda”.
Raúl Zaffaroni é, sem favor, um dos maiores penalistas latino-americanos de todos os tempos. Para além de suas criativas contribuições à teoria do delito foi ele a liderança intelectual de nosso penalismo crítico, construído sobre a constatação de que os saberes criminológico e político-criminal são capazes de irrigar a dogmática jurídico-penal e converter desertos conceituais ressequidos em campos de flores.
Sua entrevista, como sempre, é uma aula magistral sobre a seletividade estrutural dos sistemas penais (“o poder punitivo é representado segundo a vulnerabilidade das pessoas […] mediante estereótipos”), com oportuna menção à seletividade dirigida (lawfare), que atingiu em nosso continente quadros políticos à esquerda (Lula, Cristina Kirchner, Rafael Correa, Evo Morales).
Tenho no entanto dificuldades para aderir a sua opinião segundo a qual as democracias representativas formais mais ou menos dominadas pelo poder punitivo (expansão do sistema penal, presença relevante de policiais no Legislativo e no Executivo, Judiciário policizado, Forças Armadas orientados para a execução de tarefas policiais, repressão a manifestações civis, crença na pena como solução de todos os problemas etc.) de nosso continente (pense-se por exemplo em El Salvador) não seriam propriamente Estados de polícia (conceito por ele restrito ao modelo old-fashioned do século XX, como o nazismo) mas tão somente “Estados fracos”, assim predispostos a se verem colonizados pelo capital financeiro.
Minha discordância reside na origem dessa fragilização, que para Raúl residiria na “destruição” de suas polícias, que teriam sofrido um processo de deterioração ao contacto de grupos mafiosos, com a emergência de justiceiros e milícias; por isso, o Estado teria perdido o famoso monopólio da violência legítima.
Desde logo tenho dificuldades de trabalhar com o conceito weberiano porque em meu país – pense-se no escravismo (na colônia e no Império) primeiro e no coronelismo da República velha depois – nunca o poder punitivo foi exclusivamente público: senhores de escravizados e coronéis o exerceram com maior protagonismo do que qualquer funcionário público.
Só no século XX a pena pública supera no Brasil as penas privadas, ainda permitindo, contudo, alguma concorrência colaborativa. Por outro lado, desde Vidigal até os assassinos de Marielle Franco, a polícia brasileira é muito mais destruidora do que destrutível, e ultimamente constitui base eleitoral militante da extrema direita; no golpe contra Evo Morales e no tentado contra Lula não teve a polícia um papel fundamental?
A lapidar definição de Raúl Zaffaroni – “genocídio é um poder punitivo sem contenção” – aponta, no Brasil, para a polícia, frequentemente (pense-se nas chacinas) exercendo poder punitivo sem qualquer contenção, muito menos aquelas prescritas em lei. Mas confluo inteiramente com Raúl Zaffaroni quanto ao invisível maestro que rege essa orquestra: ao contrário da célebre ária do Fausto, não é Satã e sim o capital vídeo-financeiro transnacionalque conduz o baile.
Na linha explorada por Cecília Coimbra temos a projeção da experiência penitenciária na subjetividade do infrator, na fórmula genial de Raúl Zaffaroni: ao entrar, “eu roubei” ou “eu furtei”; ao sair, “eu sou ladrão”.
Ana Luisa Barreto, Glauciene Farias e Clara Albuquerque, jovens e alentosas criminólogas que ao início de sua promissora carreira acadêmica sabem coisas que eu levei algumas décadas para aprender, complementam harmoniosamente este livro e nos enchem de alegria e esperança, porque sentimos que não predicamos em vão e que todas as nossas lutas terão no futuro combatentes mais preparadas e mais fortes.
*Nilo Batista é advogado e professor Emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor, entre outros livros, de Introdução crítica ao direito penal brasileiro (Revan).
Referência

Marco Mondaini (org.). Diálogos Antipunitivistas. São Paulo, Editora Alameda, 2025, 166 págs. [https://amzn.to/4mepY1d]
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