Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
Há problemas políticos e institucionais capazes de limitar ou potencializar a autonomia estratégica da América Latina no novo cenário multipolar
1.
Inserir o papel dos países latino-americanos na disputa por autonomia estratégica exige compreender sua posição histórica e estrutural no sistema internacional e suas potencialidades geoeconômicas. Há problemas políticos e institucionais capazes de limitar ou potencializar essa autonomia estratégica no novo cenário multipolar.
É possível organizar a análise em três eixos principais. O primeiro diz respeito à inserção estrutural da América Latina no Sistema-Mundo.
O padrão periférico-exportador da América Latina se configurou por ter sido colonizada e historicamente ter ocupado a posição de fornecedora de recursos naturais e, depois da revolução industrial, importadora de bens industriais. Sua economia é marcada por primarização produtiva (commodities agrícolas, minerais e energéticas) e desindustrialização precoce. Esse padrão reforça uma dependência tecnológica e financeira, embora no caso brasileiro esta última tenha sido ultrapassada: o endividamento externo é apenas 18% do crédito ampliado de 156% do PIB e muito composto por empréstimos intercompanhia transnacional.
Infelizmente, há um baixo grau de integração produtiva intra-regional. Os países latino-americanos comercializam mais com EUA, China e Europa em lugar de ser entre si. A ausência de cadeias globais de valor regionais (exceto a automobilística entre Argentina e Brasil) limita a autonomia estratégica coletiva.
Por tudo isso, sofre de alta vulnerabilidade às flutuações globais. Seus termos de troca são voláteis, há pressão de ciclos de dívida externa (exceto Brasil), além de dependência de investimentos estrangeiros e financiamento externo.
Apesar de sua vulnerabilidade histórica, a América Latina possui ativos geoestratégicos centrais para o novo ciclo de transição mundial para a multipolaridade. Por exemplo, tem riquezas naturais críticas como minerais estratégicos (lítio, cobre, níquel, nióbio), biodiversidade (Amazônia, Cerrado), potencial energético renovável (solar no Chile, eólico no Brasil e Argentina), além de grande estoque de água doce e terras agricultáveis.
Oferece espaço para a reindustrialização verde, ou seja, potencial para instalar cadeias industriais sustentáveis com base em energia limpa. É um espaço para implementar políticas industriais neodesenvolvimentistas com viés ambiental.
Seu poder de barganha geopolítica se dá pela possibilidade de negociar com múltiplos polos (China, EUA, Europa, Rússia, BRICS+). Deve fomentar a formação de alianças sul-sul (CELAC, UNASUL, ALBA, BRICS+) como alternativa ao alinhamento unipolar.
2.
Os obstáculos e dilemas da autonomia estratégica regional diz respeito à falta de coordenação regional eficaz. A fragmentação política entre governos progressistas e conservadores enfraquece iniciativas comuns. Tentativas como a UNASUL e o MERCOSUL enfrentam estagnação e disputas internas. Governos de extrema direita como o argentino e o anterior brasileiro são submissos ao governo imperial norte-americano.
Enfrenta limitações institucionais e tecnológicas pelo baixo investimento em ciência, tecnologia e inovação. Há fragilidade dos sistemas educacionais e produtivos.
A disputa por modelos de desenvolvimento ocorre entre o Neodesenvolvimentismo verde contra o Neoextrativismo de curto prazo, outrora denominado como a Vocação Agrária. Tem ainda tensões entre soberania ambiental, justiça social e exigências de crescimento.
Esquema comparativo: Inserção da América Latina na Nova Multipolaridade
Dimensão | Posição Atual | Potencial Estratégico | Obstáculos |
Produtiva | Primário-exportadora | Industrialização verde, cadeias regionais | Baixa integração, dependência externa |
Energética | Exportadora de energia fóssil e elétrica | Transição para matriz renovável estratégica | Lobby fóssil, ausência de planejamento de longo prazo |
Tecnológica | Dependente de importações | Cooperação sul-sul e nacionalização de inovação | Subfinanciamento da ciência e tecnologia |
Geopolítica | Alinhamento oscilante | Capacidade de barganha entre polos | Fragmentação e pressão externa |
Ambiental | Pressionada como “sumidouro de carbono” | Liderança em soluções ecológicas tropicais | Conflito entre conservação e extrativismo |
A América Latina está no limiar entre repetir o papel histórico periférico ou assumir uma nova postura de autonomia estratégica – ambiental, tecnológica, produtiva e geopolítica – dentro de uma ordem mundial multipolar. A construção dessa autonomia exige: coordenação regional efetiva e soberana; um projeto de transição ecológica com justiça social; resistência ao novo extrativismo verde, em busca apenas reposicionar a região na divisão internacional do trabalho.
No caso do Brasil, o país tem uma economia baseada em serviços urbanos (69% do valor adicionado), com indústria de transformação desnacionalizada em retração e a extrativa em expansão, a indústria geral representa 25%. A agricultura de exportação é relevante para o balanço comercial, mas tem menor valor adicionado (6%) nas Contas Nacionais.
Esse perfil setorial mostra não só como o valor é gerado internamente, mas também o grau de sofisticação e complexidade produtiva. Tudo isso é essencial para pensar a soberania econômica e a autonomia estratégica brasileira.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]
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