Por FLÁVIO R. KOTHE*
Nem propaganda, nem conceito, nem devoção: a arte pura é um salto no vazio que só se completa quando alguém ousa cair junto
1.
Arquitetura e retórica são gêneros estratégicos para ver se a arte tem finalidade ou não, pois aquela precisa atender a um plano de necessidades, um conjunto de funções, de maneira que possam ser desempenhadas, enquanto a retórica procura convencer ouvintes, quer que pensem como o orador, sua função é convencer.
A teoria arquitetônica foi criada por Vitrúvio à base de princípios retóricos. Os arquitetos brasileiros perderam a noção disso. Para a maioria, a profissão sequer é, sobretudo, exercício de arte, mas planejar espaços construídos para o uso de seus vazios: estão preocupados em resolver problemas práticos, como conseguir azulejos ou cimento mais barato.
A arquitetura que acaba lembrada, porém, por ser artística. Ela tem funções práticas – como local de governo, prédio de ensino, biblioteca –, mas elas servem de base para a projeção do estético.
Oradores não parecem preocupados em exercer arte, mas em passar outros na conversa. Falar bonito serve para esconder o desejo de convencer. O propósito não é buscar a verdade, mas manipular vontades. A oratória é a verdade da arte sacra, da arte de propaganda, de legitimação da monarquia e da aristocracia. Dizer que algo é “arte” serve para esconder essas funções não estéticas.
É possível distinguir, na arquitetura, obras que se destacam por sua imponência, sua graça, sua configuração inesquecível. O sujeito pode não ser cristão para apreciar templos como A Sagrada Família em Barcelona, a Catedral de Florença, a Igreja Ortodoxa na Praça Vermelha de Moscou, a Catedral de Brasília. São obras que estão além do horizonte do padrão católico ou ortodoxo russo.
Oscar Niemeyer era comunista e ateu: seu prédio mais bonito é, porém, a Catedral (que era para ser um templo ecumênico, de cujo se interior se tem a visão dos espaços infinitos, não encobertos pela abóbada dos templos comuns).
Gaudí conseguiu gerar no interior da Sagrada Família tal atmosfera mística que ela propicia passear no que gerações e gerações sonharam que fosse o céu. Não importa que nunca ninguém chegou lá, não importa que exista ou não, o que se tem no templo é algo único, insubstituível, não apenas católico como o autor. Um não católico pode até apreciar melhor o artístico, pois não o reduz à crença.
Um arquiteto ateu, embora auxiliado pelo conhecimento técnico, pode vivenciar a obra como “sublime”, no além do limiar. O prédio pode ser até mal-usado pelo Opus Dei ou pela ajuda que dá para manter a monarquia na Espanha e impedir que a Catalunha se torne independente, mas, mesmo assim, ele transcende tais usos. Está além das crenças do autor. O que o identifica como arte é algo que está além desse horizonte utilitário, mesmo que seja uma utilidade de tipo “espiritual”.
2.
Para apreciar a obra “sacra” como arte, é melhor não ser crente da religião nela consagrada, pois, se não, se vai ver na obra apenas o testemunho e documento da fé, não uma obra que presentifica algo verdadeiro com o primado do belo.
Para apreciar com mais isenção uma obra que consagre a realeza ou a aristocracia, é melhor não ser monarquista ou aristocrata, pois, se não, o interesse político vai se sobrepor à neutralidade necessária para deixar que se mostre a grandeza da obra como arte, não como peça de propaganda.
Quem aprecia as obras do seu país por ser patriota sobrepõe o valor político ao valor artístico: para ele a qualidade estética é pouco relevante, pois promove a obra por uma expectativa patriótica.
Grupos de opinião não aceitam que se questione o que sequer consideram como expressão do pio, honesto, decoroso, pois acham que seja “pura verdade”. A obra é aí reforço a um sentimento anterior e externo à obra. O mesmo vale para a “arte engajada” e para a “arte conceitual”: uma quer promover determinada concepção do que considera justo e correto, a outra quer demonstrar um conceito, ambas ficam fora do que deve ser o principal na arte, sua validação estética.
A percepção da grande arte é algo mágico, uma resultante que vai além do que se consegue ver, um reforço de compreensão conjugado a intuições da sensibilidade: é algo que constitui um horizonte além do cotidiano e daquilo que cabe em definições.
É como se algo acima da linearidade do tempo e do espaço se abrisse, desvelando verdades do ser além do estante. Há, no entanto, métodos bastante objetivos de comparar obras para distinguir aquelas que foram mais longe no que propunham e aquelas que ficaram aquém do horizonte alcançado por outras.
É o que se desenvolveu como literatura comparada, mas pode ser ampliado também para o âmbito da arte comparada.[i]
Diversas escolas da comparatística – francesa, eslava, russa, americana – desenvolveram metodologias que permitem confrontos entre obras que guardem semelhança profunda ou tenham desenvolvido diferenças que sejam sintomáticas.
São modos de entender melhor as obras, independente da biografia dos autores, para que se saiba de modo mais objetivo até onde cada uma foi e qual seria um percurso que ela deixou de trilhar. Assim se pode ver, pelo confronto, o que cada uma alcançou. Todas ajudam a entender cada uma, cada uma ajuda a entender as demais.
Esse procedimento, basicamente analítico, torna-se também sintetizador, é intelectivo, mas se deixa acompanhar por intuições, por projeções imaginativas, por vivências da sensibilidade. Mobiliza a pessoa toda, em seus conhecimentos, suas vivências e captações inconscientes. Não é apenas ôntico nem apenas ontológico e sim a conjunção de ambos numa unidade significativa. Trata-se da intuição do “Seyn” num ente. O ente é aí mais que um ente, e o ser não é apenas abstrato.
Embora esse processo seja como andaimes para escalar nas obras e ver como estão construídas, ele não prescinde de um mergulho na constituição interna, peculiar, da obra mais complexa, de maneira que se pode ingressar nela e alcançar maior amplitude de horizonte.
A grande obra é insubstituível, há um momento em que ela não se compara a nenhuma outra, pois é distinta de todas: esse é o peculiar do que ela tem a dizer. Ela não pode ser substituída por um conjunto de juízos analíticos ou pela síntese de uma mensagem final que tudo esclareça.
*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc].
Nota
[i] Kothe, Flávio R. Arte comparada, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 896 páginas, 2016. Prêmio ABEU 2017.
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