Por NUNO TELES*
A forma mais eficaz de combater o poder fascizante de Donald Trump: não chorando pela ordem liberal em risco, mas propondo a mobilização nacional dos trabalhadores contra as frações de capital agora no poder
Introdução
Com o anúncio tarifário de Donald Trump, talvez estejamos assistindo ao maior choque politicamente desferido ao capitalismo global das últimas décadas, com paralelo histórico apenas no choque Volcker, do início dos anos 1980, quando as taxas de juros norte-americanas quase atingiram 20%. É certo que o aumento das tarifas anunciado em 2 de abril foi parcialmente revertido uma semana depois.
A turbulência que tomou conta dos mercados financeiros — particularmente o dos títulos do tesouro norte-americanos, espinha dorsal dos mercados financeiros globais — assim o exigiu. No entanto, a versão atenuada das tarifas continuará a implicar uma mudança estrutural na economia internacional. O mínimo agora mantido de 10% aplicado a todos os países, em quase todos os produtos, combinado com os novos 125% de tarifa aplicados aos produtos chineses — com exceções, cujo número inevitavelmente aumentará — produz uma alteração nos termos de troca norte-americanos não muito diferente da inicialmente apresentada.
As reações à esquerda a este aumento tarifário denotam a desorientação intelectual e política reinante. A versão mais comum é a da “loucura” de Donald Trump e, por associação, da “burrice” de seus eleitores “deploráveis” nos EUA. As tarifas estariam no domínio político do irracional econômico, causadoras de custos adicionais e ineficiência, como mostrado nos principais manuais de economia internacional.
Olhando apenas para o efeito das tarifas como aumento de preços das importações, o choque seria traduzido em inflação e recessão. Sobraria a oposição de todas as mentes “sãs”, numa aliança internacional, da direita à esquerda, contra as barreiras ao comércio internacional que tornam nosso consumo barato, combinada com a defesa de estratégias nacionais de diversificação de mercados externos.
Quase sem voz no debate público, uma visão mais sofisticada, que vê as tarifas como um instrumento econômico de proteção e desenvolvimento nacional contra os desmandos do capital internacional, aponta para a ineficácia de tarifas genéricas, que não discriminam setores. Sem o acompanhamento de outros instrumentos de política industrial, as tarifas estarão condenadas a falhar no propósito de reindustrialização. Além disso, sem uma estratégia tarifária clara e consistente, a incerteza toma conta das decisões de investimento e consumo, com consequências necessariamente negativas para o crescimento econômico.
O ensaio de política industrial tentado pela administração de Joe Biden parece estar agora condenado. Pelo contrário, junto à política comercial agressiva, assistimos a uma ofensiva de austeridade sobre a administração pública, liderada por Elon Musk, que inevitavelmente terá efeitos macroeconômicos negativos na despesa pública, no consumo e no investimento. O plano consiste, portanto, em fechar ao máximo a economia norte-americana da concorrência externa e, através da combinação entre austeridade, impostos mais baixos e re-regulação conforme ao mercado, possibilitar uma ofensiva interna do capital sobre o trabalho.
O custo de uma recessão será o preço a pagar por uma reconfiguração da economia norte-americana, tal como aconteceu com a recessão que se seguiu ao choque Volcker. Esse foi então o preço do fluxo de capital atraído pelas elevadas taxas de juros. O dólar restabeleceu-se como quase “moeda mundial”, no contexto do fim da conversibilidade em ouro. O comércio e os fluxos de capital entre países são feitos primordialmente nesta moeda.
Hoje vivemos um momento parecido. O objetivo explícito da administração de Donald Trump é a redução do crônico déficit externo, um objetivo sensato, com o qual poucos discordarão. As tarifas buscam mudanças de preços relativos para tornar as importações menos competitivas, ao mesmo tempo que se espera que a receita gerada sirva para financiar uma redução de impostos sobre o capital. No entanto, como aponta o presidente do influente “Conselho de Conselheiros Econômicos”, Stephen Marin, em artigo publicado em 2024, o grande problema para os EUA é seu dólar forte.
Seu papel de “quase moeda mundial” garante demanda permanente, o que se traduz em fluxos de capital (barato) para os EUA, sobrevalorizando sua moeda e minando sua competitividade externa. Claramente, os EUA não estão dispostos a abdicar do “privilégio exorbitante” da máquina que produz a quase “moeda mundial”. As recorrentes ameaças aos países emergentes que experimentam alternativas ao dólar em suas transações estão aí para confirmar.
Através do anúncio tarifário, os EUA buscam negociar tarifas comerciais e, sobretudo, um acordo monetário com os bancos centrais de outros países que leve à desvalorização do dólar, sem colocar em questão seu papel na economia mundial. Não seria algo inédito. Foi o que aconteceu com os acordos de Plaza de 1985, quando as principais potências do mundo capitalista se reuniram no hotel Plaza de Nova York e concordaram com um esforço coordenado de desvalorização do dólar. A atual tentativa de novo acordo, não por acaso, tem sido chamada de acordo de Mar-a-Lago, resort e residência de Donald Trump.
Se a política econômica norte-americana está longe de ser resultado de um louco, também não devemos exagerar sua coerência. O recuo das tarifas foi resultado da reação inesperada dos mercados financeiros, e não de uma estratégia genial de negociação. A estratégia acima descrita está longe de ser consensual dentro da própria administração, começando pelo setor financeiro, que seria um dos perdedores em um cenário de dólar desvalorizado e menores fluxos de capital estrangeiro.
No entanto, existem dois fatores políticos que podem ajudar na execução desta estratégia econômica nos próximos tempos, já mencionados no artigo anterior aqui publicado. O primeiro diz respeito ao que escrevi em janeiro: a concorrência que as frações do capital norte-americano, particularmente o chamado setor tecnológico, enfrentam do capital chinês, realinhando-se com seu Estado em uma ofensiva que tem as tarifas de 125% como símbolo máximo.
O segundo, mais significativo para a esquerda, é a popularidade desta ofensiva comercial em vastos setores da classe trabalhadora norte-americana. Não por acaso, um dos sindicatos mais militantes da atualidade, o UAW, do setor automotivo, manifestou apoio às tarifas de Donald Trump, embora não o apoie, nem mesmo o modelo “genérico” de tais tarifas. Dois livros nos ajudam a refletir sobre o porquê deste alinhamento e como agir a partir daqui: os recentemente publicados Trade Wars Are Class Wars, de Michael Pettis e Matthew Klein, e Sinews of War and Trade, de Laleh Khalili.
Guerra comercial é guerra de classes
O argumento do primeiro livro de Michael Pettis e Matthew Klein ganhou destaque nas últimas semanas, com Pettis sendo frequentemente citado e convidado na imprensa econômica anglo-saxônica. O argumento do livro é relativamente simples. O aumento da desigualdade interna nas grandes economias mundiais resultou em desequilíbrios macroeconômicos. Estes, por sua vez, desembocaram na crise financeira de 2008 e na atual guerra comercial.
O que é interpretado como guerra entre países é, na verdade, resultado de tensões sociais internas. Três grandes blocos são analisados: China, EUA e União Europeia. Focarei aqui nos dois primeiros, já que os desequilíbrios macroeconômicos europeus são amplamente estudados e denunciados.
Começando pela China, sem negar o salto na qualidade de vida de centenas de milhões de trabalhadores chineses, resultado da gestão política da questão social, os autores argumentam que os salários e a evolução das condições de trabalho estiveram sempre longe do ritmo espetacular do crescimento econômico. Repressão de movimentos independentes de trabalhadores, negligência com as consequências ambientais e humanas do processo de industrialização e taxa de câmbio propositadamente desvalorizada conduziram a economia chinesa a taxas de investimento extraordinárias, sempre acima de 40%.
O consumo, por sua vez, diminuiu em termos relativos desde o início dos anos 1980, denunciando a desvalorização relativa do trabalho. Este foi, portanto, um modelo de crescimento baseado na competitividade exportadora e na acumulação de excedentes externos. Tal processo só foi possível devido às inovações tecnológicas (por exemplo, a containerização do comércio internacional) e políticas dos últimos 40 anos (liberalização comercial) que levaram ao surgimento das cadeias globais de valor, com a produção industrial fragmentada, dividida entre vários países, mas concentrada na Ásia.
Com forte política industrial, crédito dirigido pelo Estado e uma vasta classe trabalhadora, a China conseguiu uma das transformações econômicas mais espetaculares da história da humanidade, hoje com capitais nacionais na liderança internacional de diversos setores.
Os EUA viveram uma situação simétrica. Se, por um lado, o processo de desindustrialização levou a uma crise social nos antigos centros industriais, o capital norte-americano beneficiou-se, e promoveu, esta reorganização da economia internacional, especializando-se nos setores de serviços, finanças e tecnologias de ponta, do software ao armamento. Na verdade, a ofensiva contra o trabalho nos EUA deveria ter levado, assim como na China ou na Alemanha, a uma situação similar de maior competitividade externa.
No entanto, o papel do dólar como quase moeda mundial e o consequente influxo de capital excedente da China e outros países levaram à lucratividade desmedida de seu setor financeiro e ao aumento do endividamento interno dos trabalhadores. Este endividamento anima setores como o imobiliário e permite a manutenção de padrões de consumo em um cenário de estagnação ou degradação salarial. O resultado é um dólar sobrevalorizado e um déficit comercial permanente.
O aumento da desigualdade e os desequilíbrios macroeconômicos internacionais resultaram, segundo os autores, em excesso de capital concentrado em poucas mãos. Em um mundo com reduzidas oportunidades de investimento produtivo, este excesso de capital levou, por um lado, ao barateamento dos bens de capital e, logo, dos preços dos produtos industrializados, e, por outro, a um aumento do investimento “não produtivo”, desperdiçado, por exemplo, no imobiliário chinês ou na especulação financeira de Wall Street. Neste quadro, a antipatia popular com o comércio internacional é resultado de anos de estagnação econômica e social.
Se os autores são céticos em relação à atual estrutura do comércio internacional, também criticam a abordagem de uma das figuras mais influentes na administração Donald Trump, Peter Navarro. Para Navarro, o que importa são as relações bilaterais de comércio e suas ramificações financeiras. As tarifas discriminatórias aparecem, assim, como instrumento preferencial de política bilateral.
Pettis e Klein mostram como a contabilidade do comércio internacional é uma ficção, viciada pela fragmentação das cadeias globais de valor, pela localização de portos de entrada de mercadorias e, cada vez mais, pela evasão fiscal via subfaturamento ou sobrefaturamento de mercadorias, conforme o regime tributário de cada país.
Se é certo que os fluxos financeiros internacionais têm, em sua base, os fluxos produtivos, déficits e excedentes bilaterais têm pouco significado em um mundo de fluxos de capital liberalizados, onde estes respondem sobretudo à organização do sistema financeiro internacional. Qualquer intervenção corretiva deve, portanto, olhar para este último. Parece ser esse o objetivo do acordo de “Mar-a-Lago”, onde as tarifas assumem um papel secundário.
Queremos salvar este comércio internacional?
Se Pettis e Klein focam nas consequências distributivas e macroeconômicas da atual organização da economia internacional, o livro de Laleh Khalili oferece uma visão exaustiva daquilo que é a “esfera oculta” do comércio marítimo internacional. Esta forma de comércio concentra 90% de todo o comércio global.
Embora o livro se concentre na realidade da Península Arábica, Laleh Khalili oferece um exemplo da melhor investigação em ciências sociais possível, combinando história com seu testemunho pessoal, como tripulante de navios mercantes, e o estudo cuidadoso dos mercados de transporte marítimo, articulados com os mercados financeiros, terminando na organização do trabalho deste setor. O livro mostra como os baixos preços das mercadorias que consumimos têm um alto custo social e ambiental.
Laleh Khalili começa lembrando o imperialismo e a guerra como condições históricas para as novas rotas abertas, sempre entrelaçadas na evolução tecnológica — o contêiner marítimo com a Guerra do Vietnã, os grandes cargueiros com a Guerra de 1967 de Israel contra o Egito e o consequente fechamento do Canal de Suez.
Atualmente, o comércio marítimo está concentrado em algumas grandes multinacionais que não se dedicam apenas ao transporte, mas acumulam infraestruturas associadas a seus hinterlands (zonas de influência geográfica), portos, estradas, ferrovias e zonas econômicas especiais, concentrados no continente asiático. Roterdã, maior porto europeu, ocupava apenas o 12º lugar mundial em capacidade de tonelagem em 2027.
O tráfego marítimo é internacional, mas os preços do transporte são determinados nos centros financeiros, como Londres, assim como os seguros e crédito para a construção de navios e infraestruturas. O comércio depende dos centros tradicionais do poder colonial, hoje convertidos em cidades “globais” de serviços especializados e mão de obra qualificada. Ele foi, e continua a ser, estruturado em uma hierarquia geográfica bem definida, favorável às grandes potências econômicas (surpreendentemente, a portuguesa Lisnave, agora desaparecida, chegou a ser o único estaleiro de construção de navios petroleiros de grande porte).
Laleh Khalili mostra historicamente o que agora se tornou evidente. O direito internacional aplicado ao comércio é simplesmente o direito dos mais poderosos, sejam Estados como os EUA, sejam suas multinacionais. O direito internacional e os tribunais arbitrais dos “mundos planos” sempre protegem o sacrossanto direito à propriedade, ao mesmo tempo que despolitizam uma importante arena de disputa econômica e política.
Toda esta infraestrutura global é construída e operada às custas de uma enorme força de trabalho, migrante e racializada em hierarquias salariais e de poder, numa continuidade histórica com origens no imperialismo e escravismo europeu. O transporte marítimo continua a ser o “faroeste” do direito trabalhista, com navios adotando bandeiras de países onde o direito do trabalho praticamente não existe, da Libéria ao Panamá.
Este é um trabalho árduo, perigoso e muito mal remunerado (com exceção de oficiais e outros trabalhadores especializados, normalmente vindos da Europa e dos EUA). Antes da pandemia, estimava-se o número de marinheiros mercantes em 1,6 milhão de pessoas. Curiosamente, ou talvez não, 14% são de nacionalidade filipina, sem acesso à proteção social.
Conclusão
Quando ouvimos lamentações sobre o fim de uma ordem econômica internacional de produtos baratos vindos de outros países, convém ter em mente as causas, consequências e processos que acompanharam e acompanham a famosa “globalização”.
Talvez não tenhamos muito a lamentar. Efeitos na inflação serão inevitáveis, embora não tão grandes quanto se proclama, pois o preço das importações é apenas um componente do preço final das mercadorias, geralmente cerca de metade, e vivemos em um mundo onde as cestas de consumo, mesmo envolvendo trocas internacionais, incluem cada vez mais serviços, do turismo à Netflix, fora do âmbito tarifário.
Pelo contrário, dada a pressão para a manutenção de seus excedentes externos como forma de superar a crise interna, a queda dos preços de mercadorias chinesas para o resto do mundo está longe de ser um cenário remoto.
Ainda assim, o consumo dos trabalhadores não pode ser negligenciado ou desprezado como custo inevitável de uma nova ordem internacional. No entanto, a abordagem política ao consumo deve ser articulada com a produção, sua organização nacional e internacional, seus processos de trabalho e impactos nostrabalhadores e ambiente. Devemos ser mais exigentes com a política, indo além da gestão macroeconômica e integrando a intervenção nos locais de trabalho, nos sindicatos, na administração local e central na forma como nos organizamos produtivamente.
Com o trabalho no centro, as mudanças nos objetivos da produção, sua organização e distribuição primária de renda corresponderão necessariamente a uma mudança no padrão de consumo, não dependente da exploração do trabalho. Trata-se de construir um modelo de produção que demonstre, socialmente, que “abundância” não significa apenas calças baratas, mas o acesso a uma vasta gama de serviços e produtos, da alimentação à cultura, orientada para a qualidade e satisfação cidadã.
Esta é a forma mais eficaz de combater o poder fascizante de Donald Trump: não chorando pela ordem liberal em risco, mas propondo a mobilização nacional dos trabalhadores contra as frações de capital agora no poder e um programa verdadeiramente alternativo, aproveitando as brechas abertas. A competição entre frações de capital norte-americanas e chinesas é uma oportunidade de mobilização internacionalista, que rejeita a demonização dos trabalhadores de outros países enquanto se mobiliza na luta contra o capital nacional e internacional por outra forma de viver.
*Nuno Teles é professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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