Donald Trump, democracia e guerra

Imagem: Helen Alp
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Por LISZT VIEIRA*

O governo de Israel não vive sem guerra. Benjamin Netanyahu sabe que vai cair se e quando a guerra acabar. Vai continuar guerreando até dominar o Oriente Médio como braço armado dos EUA

1.

No dia 14 de junho de 2025, em mais de duas mil cidades dos EUA, ocorreram manifestações de protesto contra Donald Trump, levantando a palavra de ordem “No Kings” (Sem Reis). Os protestos foram realizados em oposição ao desfile militar realizado em Washington no dia do aniversário de Donald Trump, no velho estilo de ditadura militar sul americana, sob o pretexto de comemorar os 250 anos do Exército americano. É o primeiro desfile militar em Washington em 34 anos.

A ofensiva de Donald Trump contra as instituições e regras democráticas existentes nos EUA não respeita o “the rule of law”. Atropela e passa por cima das leis, violando a sagrada autonomia dos Estados, garantida por decisões da Suprema Corte. O projeto político de Donald Trump é transformar os EUA numa tirania e tornar-se um ditador.

Mas a popularidade de Donald Trump entre seus eleitores começa a sofrer fissuras importantes. Donald Trump prometeu na campanha eleitoral o que se tornou seu slogan principal, o famoso MAGA, “Make America Great Again” (Tornar a América Grande Novamente), acabando com “guerras sem fim” e priorizando a “America First” (Primeiro os EUA).

Agora enfrenta uma onda de descontentamento entre seus aliados por apoiar militarmente Israel e suas guerras e não conseguir a paz prometida entre a Rússia e a Ucrânia. E continua manipulado por Benjamin Netanyahu, que pauta Donald Trump como antes pautava Joe Biden. O governo de Israel conta com o apoio militar dos EUA em sua política de massacre e genocídio do povo palestino, e agora quer atrair os EUA para sua guerra contra o Irã.

2.

Tudo isso nos leva a uma pequena reflexão sobre democracia e sobre as guerras em curso. Não basta ter sido eleito para um governo ser considerado democrático. Há governos eleitos que se tornaram ditaduras porque não respeitam um critério fundamental de uma democracia: a divisão de poderes.

Em alguns países, como Hungria, Turquia, Argentina e agora os EUA, por exemplo, o Poder Executivo engole o Legislativo e mesmo o Judiciário. Os EUA hoje podem ser considerados um regime de exceção, na melhor das hipóteses. Donald Trump tem maioria submissa no Legislativo e conta com o apoio de parte do Judiciário. Este é um confronto que está em curso.

Um dos grandes pensadores clássicos sobre a democracia foi o francês Montesquieu (1689 a 1755) que conferia papel central à divisão de poderes. Segundo ele escreveu em seu famoso livro O Espírito das Leis, “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não possui uma Constituição”.

O caso do Brasil é sui generis. É o Legislativo que está engolindo o Executivo, numa espécie de semi presidencialismo ou semi parlamentarismo. Mas o Judiciário tem mantido sua independência.

Com o avanço da extrema direita em quase toda a parte, a democracia está ameaçada pela pressão política em favor de um regime de força, tirânico, ditatorial. Na realidade, seria necessário um estudo aprofundado para estabelecer os diferentes graus entre uma democracia e uma ditadura.

O professor e escritor português Boaventura de Sousa Santos se aproximou dessa preocupação ao definir uma democracia como de baixa ou de alta intensidade. Mas isso é insuficiente, seria necessária uma pesquisa em profundidade para designar os diversos graus de uma democracia em comparação com um regime autoritário.

Claro que esse seria um estudo que se dá no plano institucional. Para ir mais fundo, seria importante analisar as classes dominantes dos países pesquisados, o poder do neoliberalismo e do mercado e onde e em que condições eles apoiam a democracia ou já trabalham para a implantação de uma ditadura que atenda mais facilmente os seus interesses. Pode ser o caso hoje nos EUA, com Donald Trump atropelando o Judiciário e os Governos Estaduais.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, os EUA participaram, direta ou indiretamente, de várias dezenas de guerras. Diretamente, na Coréia, Vietnã, Iraque, Afeganistão, República Dominicana, Granada, Panamá etc. Indiretamente, na Síria, Líbano, Yemen, Sérvia etc., fazendo guerras “por procuração”, como é agora o caso da Ucrânia e o genocídio em Gaza.

O complexo industrial-militar nos EUA é muito poderoso. A indústria bélica quer vender armas, os militares querem poder. A promessa de Donald Trump de afastar os EUA de guerras externas, resumida em seus slogans MAGA e America First, está encontrando dificuldades internas. Afinal, há décadas que os EUA vêm apoiando ou mesmo criando guerras, sendo considerados em todo o mundo como um país Warmonger (fabricante de guerras).

3.

Sempre foram obscuras as relações do Presidente dos EUA com suas Forças Armadas. Não se sabe bem até onde vai o poder do Presidente. Quando Elon Musk foi nomeado por Donald Trump como Chefe da Agência de Eficiência Governamental para reduzir a burocracia estatal, os militares e a CIA ignoraram as ordens de Elon Musk. Não é implausível imaginar que agora existam militares boicotando o America First, ou seja, as promessas de Donald Trump de abandonar a participação militar dos EUA em guerras longe de seu território.

O fato é que até agora Benjamin Netanyahu continua recebendo apoio militar norte-americano para massacrar o povo palestino em Gaza. A bem da verdade, recebe também armas da França, Alemanha e Reino Unido, o que não resolve o problema econômico da Europa, mas agrava consideravelmente sua decadência moral. Benjamin Netanyahu quer agora arrastar os EUA para sua guerra com o Irã.

O aval norte-americano à guerra de Israel contra o Irã vem dividindo a base do presidente Donald Trump, que começa a receber críticas de apoiadores históricos ligados ao Partido Republicano. O apoio de Donald Trump à guerra descumpre uma promessa de campanha. Conservadores nos EUA afirmam que o apoio incondicional do presidente dos EUA ao primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu contraria sua famosa promessa de America First.

O governo de Israel não vive sem guerra. Benjamin Netanyahu sabe que vai cair se e quando a guerra acabar. Vai continuar guerreando até dominar o Oriente Médio como braço armado dos EUA. E Donald Trump tenta se equilibrar entre seu apoio às guerras promovidas por Israel e sua promessa de abandonar guerras para se concentrar apenas nos EUA para Make America Great Again.

Não é prudente especular sobre o futuro, Donald Trump pode tentar algum acordo para tentar superar essa contradição, mas até agora o establishment industrial-militar norte-americano está predominando. Poderíamos especular possibilidades, mas a prudência manda aguardar para ver o que vai acontecer.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]


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