Donald Trump e a supremacia branca

Imagem: cottonbro studio
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por PETRÔNIO DOMINGUES*

Donald Trump revitaliza o racismo estrutural dos EUA, transformando ansiedades econômicas e demográficas em uma cruzada supremacista que desafia a ordem multicultural e alimenta tensões globais

1.

O advento do fenômeno Donald Trump, em sua complexidade, denota uma dimensão racializada, que mobiliza narrativas e representações historicamente constituídas da cultura política racista estadunidense, atualizando-as para os debates e embates político-ideológicos do tempo presente. Em última instância, o trumpismo vocaliza um projeto de nação fundado nos postulados da supremacia branca.

Desde a campanha eleitoral em 2016, que redundou no seu primeiro mandato como presidente e foi coordenada pelo supremacista Steve Bannon, Donald Trump tem utilizado motes racistas que catalisam vários grupos supremacistas dos Estados Unidos, entre eles a tradicional Ku Klux Klan.

O slogan “Fazer a América Grande Novamente”, que se popularizou por meio dos bonés com a sigla MAGA, não convocava somente a sociedade para aderir a uma nova agenda para recuperar economicamente a nação, mas também comunicava aos segmentos da população branca que o projeto de Donald Trump para o país desafiava a “América multicultural” de Barack Obama, que representava uma nação inclusiva que incorporava as “minorias étnicas” como sujeitos históricos das narrativas que organizam o excepcionalismo estadunidense.

Isto é, “parte da interpretação dos problemas econômicos e sociais dos Estados Unidos foram enquadrados pelo discurso de Donald Trump como problemas raciais, em discursos que afirmavam que as elites passaram a negligenciar as condições dos segmentos populares da população branca”.[1]

Na campanha eleitoral em 2024, Donald Trump voltou a explorar o espantalho da racialização. Em um contexto de aumento da população não branca e de percepção de declínio das populações brancas, os arautos da supremacia, que estavam militando especialmente em fóruns subterrâneos, sobretudo da internet, revitalizaram sua retórica racial na gestão Joe Biden (2021-2025) e se lançaram à esfera pública motivados pelo discurso codificado da campanha presidencial de Donald Trump.

2.

A raça, como marcador estruturante da sociedade estadunidense, foi um dispositivo acionado em vários momentos para respaldar as narrativas dos supremacistas. Basta dizer que o filme Nascimento de uma nação (1915), que celebrava a ascensão da Ku Klux Klan e o papel dessa organização na remissão dos brancos do Sul, teve uma exibição na Casa Branca, com a presença do diretor David Griffith. O então presidente da República, Woodrow Wilson, teceu loas à produção e ainda prometeu apoiá-la, contrapondo-se à militância negra, que havia feito campanha para proibir a sua circulação.

A raça também foi um marcador agenciado para legitimar as ações no plano externo dos Estados Unidos. Em diversos momentos, a projeção do país na agenda internacional não teve somente um sentido econômico, mas também se valeu de argumentos e justificativas de uma superioridade como nação branca, atuando em uma ordem global com uma maioria de populações “inferiores” que deveria ser governada e tutelada pelas “nações civilizadas”.

Essa lógica reeditou-se no “intervencionismo de Theodore Roosevelt e também na agenda liberal de autodeterminação dos povos de Woodrow Wilson, que não se estendia necessariamente para as nações não brancas”. [2]

No entanto, o compromisso de difundir os valores liberais internacionalmente era subvertido pelas práticas racistas da supremacia branca no plano interno. Esse quadro só sofreu mudanças a partir da década de 1960, quando as organizações negras e suas lideranças – como Martin Luther King Jr. E Malcom X – desafiaram o regime de segregacionismo racial do Sul do país, o que levou aos presidentes democratas John Kennedy e Lyndon B. Jonhson a encamparem leis que promoviam a igualdade racial no campo dos direitos civis.

Em que pese visões supremacistas terem perdido espaço no imaginário político e, por conseguinte, na concepção sobre a democracia estadunidense, os supremacistas continuaram a se articular, disseminando teorias conspiratórias sobre as relações raciais e um discurso virulento contra negros e imigrantes. Mesmo no período mais recente do governo Barack Obama (2009-2017), no qual se acreditou estabelecer uma ordem pós-racial, expressões culturais da supremacia branca continuaram a ser reproduzidas e a alimentar o imaginário popular em diferentes partes do território.

Os setores liberais da sociedade estadunidense interpretaram a mensagem de Obama como uma adesão à profecia pós-racial, porém, “entre parcela dos conservadores e a maioria dos supremacistas a mensagem foi entendida como uma ameaça à população branca e, principalmente, à ideia da branquitude como traço definidor do excepcionalismo estadunidense”.[3]

É nesse contexto que se projetou a figura de Donald Trump, com um discurso agressivo antissistema, de ataques às elites do país – de alternativa aos democratas e republicanos moderados –, ao politicamente correto e às minorias, capitalizando os descontentamentos, para não falar ressentimentos, da população branca.

O discurso extremista e performático de Donald Trump, que se arvora o salvador da pátria alheio às dinâmicas políticas das elites e capaz de recuperar a pujança econômica da nação, incorporou o léxico de supremacistas brancos, abrindo espaço para uma reação à ordem social liberal e multicultural nos Estados Unidos.

Com Donald Trump no poder e o seu histórico de afinidades com a Ku Klux Klan, os neonazistas e outros grupos racistas, os supremacistas encontraram um cenário fértil para potencializarem a cruzada em prol da redenção da população branca.

Neste segundo mandato, iniciado em janeiro de 2025, o trumpismo, em seu caráter racial, tem revelado a capacidade mutante de recompor categorias e representações da cultura racista estadunidense e reconfigurá-las conforme os embates domésticos e internacionais.

Esse processo não se restringe às tensões raciais que afetam os negros, mulçumanos, imigrantes latino-americanos, pois, atualmente, os chineses travestem-se de ser o “bode expiatório”. Como alguns especialistas indicam, o protagonismo da China suscita o sentimento de insegurança nos ocidentais e faz florescer a ideia do “perigo amarelo”, que ameaça a supremacia branca.

Embora haja uma tendência de se imaginar as relações raciais nos Estados Unidos a partir da bipolaridade entre pessoas euro e afrodescendentes, a supremacia racial opera com a lógica de que as populações brancas têm a prerrogativa de arbitrar as relações sociais ou interestatais e evitar que os sujeitos estigmatizados desequilibrem os arranjos institucionais que garantem as assimetrias simbólicas e materiais.

Em um momento em que os Estados Unidos enfrentam a ameaça chinesa à sua hegemonia e procuram repactuar o sistema da geopolítica global, Donald Trump aciona a gramática supremacista, jogando pá de cal sobre o discurso de direitos humanos que foram instituídos pelas organizações internacionais após a Segunda Guerra Mundial.

A conjuntura de crise econômica, a mudança na correlação de forças étnico-raciais de acordo com o censo demográfico e a instabilidade na vida dos segmentos populares brancos contribuem para o recrudescimento da ideologia supremacista, que mina com o paradigma pós-racial, a ordem liberal retoricamente inclusiva e, no limite, com a própria democracia estadunidense que, em sua dimensão racial, sempre reservou espaço para narrativas de superioridade branca por meio do projeto de uma “America for the Americans”.

*Petrônio Domingues é professor de história na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autor, entre outros livros, de Protagonismo negro em São Paulo (Edições Sesc). [https://amzn.to/4biVT9T]

Notas


[1] FRANCISCO, F. T. R. O velho Cadillac: raça, nação e supremacia branca na era Trump. Sankofa: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana,São Paulo, v. 13, no. 24, p. 8-34, nov. 2020, p. 9.

[2] Idem, ibidem, p. 15.

[3] Idem, ibidem, p. 22.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
A cúpula dos BRICS de 2025
Por JONNAS VASCONCELOS: O Brasil da presidência dos BRICS: prioridades, limitações e resultados diante de um cenário global turbulento
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES