Donald Trump e o Estado norte-americano

Imagem: Judita Ju
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Por PEDRO MATTOS*

Donald Trump foi obrigado a sucessivos recuos, indicando que a autonomia relativa do Estado para buscar seu objetivo estratégico se encontra fragilizada após décadas de neoliberalismo

Desde sua volta à presidência, Donald Trump tem sido presença cativa no noticiário: perdão a golpistas, declarações de teor expansionista, deportações midiáticas, negociações para o fim da guerra na Ucrânia, intervenção em universidades e por aí vai. Foi o seu “tarifaço”, contudo, que atraiu a maior parte da atenção, pela sua abrangência e impacto econômico a nível mundial. Desde então, há um grande debate sobre a questão.

Aqui buscaremos tratar de dois aspectos principais. O primeiro é compreender o sentido do “tarifaço”, incluindo os objetivos a que ele se volta e as perspectivas de que venha a ser eficaz em alcançá-los. O segundo aspecto diz respeito à análise política da medida, em especial do debate sobre quem seriam os setores que impulsionaram tal medida. Nesse caso, apresentamos uma pequena divergência com aqueles que buscam identificar no “tarifaço” uma fração da grande burguesia favorecida e uma prejudicada.

No lugar dessa perspectiva, defendemos que a medida expressa um objetivo estratégico do Estado americano, se autonomizando relativamente das frações do grande capital estadunidense para assumir uma posição que as prejudica economicamente.

Objetivos e eficácia do “tarifaço”

Ao decretar o “tarifaço”, Donald Trump indicou um primeiro objetivo, que seria recuperar a indústria (e os empregos) nos EUA. Ele também indicou um segundo objetivo, que seria a redução do déficit comercial. Por isso a fórmula do que chamou de tarifas recíprocas (metade da razão entre volume de importações e déficit comercial entre os EUA e cada país) se baseia no déficit e não nas tarifas efetivamente cobradas por cada país. Um terceiro objetivo também foi sugerido por Donald Trump em seu discurso: obter recursos para diminuir o déficit público e a dívida, possivelmente com a redução de impostos diretos.[i]

Para além desses três objetivos declarados (Reindustrialização, Redução do déficit comercial e Redução do déficit público), é de se considerar a existência de objetivos não professados claramente. Entre eles, o principal e mais óbvio é colocar obstáculos para o desenvolvimento chinês, que representa uma ameaça para a hegemonia dos EUA.

É possível, ainda, especular acerca da existência de ao menos mais um objetivo não-declarado: administrar uma tendência de crise na hegemonia monetária do dólar. Stephen Miran, presidente do conselho de assessores econômicos do Donald Trump, discute claramente essa questão em ensaio publicado em novembro de 2024.[ii] Além disso, Donald Trump já afirmou que perder a hegemonia do dólar seria equivalente a perder uma guerra mundial[iii], o que denota sua preocupação com a questão.

Há uma tendência de enfraquecimento do dólar como principal moeda a nível internacional, em função de ao menos três vetores. O primeiro é o enorme endividamento dos EUA, com gastos com juros que já superam o imenso orçamento de guerra desse país. O segundo é a crescente importância dos BRICS na economia e no comércio internacional, de forma que os EUA perdem relevância no comércio internacional e seu PIB perde relevância em relação ao PIB mundial. O terceiro é a desconfiança com o sistema internacional sob hegemonia dos EUA, profundamente abalado pela Guerra na Ucrânia, e que, no âmbito monetário, foi agravada pelo confisco das reservas russas e pelo recorrente uso de sanções econômicas como instrumento político.

O “tarifaço”, ainda que possivelmente enfraqueça o comércio dos EUA, pode contribuir com o país na crise de hegemonia do dólar. Por um lado, caso amplie a arrecadação, pode reduzir a desconfiança com a trajetória do endividamento. A recessão contratada pelo “tarifaço” também pode abrir espaço para a redução dos juros pelo FED, permitindo uma rolagem da dívida em melhores condições que as atuais. Por fim, há a possibilidade de que Donald Trump veja no Bitcoin um novo ativo para lastrear o dólar. Ainda em março, o presidente criou uma reserva baseada em Bitcoins, sendo que os EUA detêm a maior reserva estatal conhecida dessa criptomoeda. De fato, desde o “tarifaço” o Bitcoin tem se valorizado.

Administrar a perda de hegemonia monetária é um movimento arriscado e incerto, mas abre a possibilidade de que os EUA usem sua moeda como arma enquanto ainda podem. A eficácia do “tarifaço” nesse movimento, contudo, é questionável, assim como no que se refere aos demais objetivos.

Fica cada vez mais nítido que o principal objetivo da medida é justamente aquele não dito claramente: criar obstáculos para o desenvolvimento chinês. No que tange a esse objetivo, as tarifas podem ser um instrumento eficaz. De fato, a relação entre a manufatura chinesa e as grandes corporações e o mercado consumidor estadunidenses foi um elemento fundamental para o desenvolvimento do país asiático.

Além disso, Donald Trump parece pretender usar as tarifas aplicadas aos outros países como parte de sua estratégia de isolar a China. Entretanto, as consequências internas desse “desacoplamento” são imensas e Donald Trump já enfrenta resistências, inclusive por parte de importante setores que lhe deram apoio. Além disso, o sucesso da tática de isolamento depende em grande parte também da atuação da própria China, que tem possibilidades de conseguir atenuar os efeitos adversos pela sua posição privilegiada no comercio internacional. Nesse sentido, a ação de Donald Trump, embora arriscada, ainda é melhor que a inação, uma vez que a manutenção da situação atual favorece a China.

No que tange à reindustrialização, objetivo mais alardeado por Donald Trump e tomado por muitos como o principal, há dificuldades muito grandes para que os EUA sejam bem-sucedidos. Para além dos altos custos de produção, a construção das capacidades produtivas para reabsorver a produção manufatureira mais avançada levaria vários anos. Além disso, tal movimento implicaria romper com o arranjo que permitiu às empresas americanas, renunciando à atividade manufatureira, manter a hegemonia tecnológica e ampliar imensamente os seus rendimentos, inclusive financeiros.

No cerne desse modelo, está a captura de valor produzido em países que concentram a produção manufatureira. Internalizar a produção industrial implicaria em perder grande parte desse valor capturado, fundamental para as grandes corporações dos EUA. Por fim, ainda que a reindustrialização avançasse, ela teria de se basear fundamentalmente na automação, de forma que os empregos almejados pela base proletária do trumpismo não seriam criados em volume suficiente.

Ao menos temporariamente, o déficit comercial poderia ser bastante reduzido por meio das tarifas. Na concepção de Stephen Miran, as tarifas seriam compensadas pela apreciação do dólar, evitando a inflação e a redução dos fluxos comerciais. O que temos observado, contudo, é a depreciação do dólar, de forma que a tendência é que o custo de reduzir o déficit seja o aumento da inflação, a redução do consumo, a recessão econômica e a diminuição do padrão de vida dos americanos.

O mesmo se aplica para o déficit público, que poderia ser reduzido com a maior arrecadação, uma vez que as tarifas são, em certo sentido, um imposto indireto. Caso essa arrecadação fosse grande o suficiente, haveria ainda a possibilidade se reduzir os impostos, como proposto por Donald Trump. No entanto, a provável diminuição dos fluxos comerciais e a recessão que se avizinha indicam que as receitas não aumentarão em volume suficiente para permitir essa acomodação.

Além disso, deve-se ter em mente que ambos os déficits se relacionam com uma questão mais de fundo, que é o papel do dólar como moeda reserva. Trata-se do dilema de Triffin, que sugere que manter uma moeda nacional como reserva do sistema monetário internacional cria uma tendência aos déficits gêmeos, eventualmente minando a capacidade de tal moeda de se manter como reserva da riqueza à nível internacional. Essa condição também favorece a desindustrialização, uma vez que a força da moeda reserva facilita a aquisição de produtos importados.

A questão se relacionaria, ainda, com o aspecto militar, uma vez que os déficits crescentes colocam em questão a capacidade do Estado de sustentar e ampliar os gastos militares. Por isso, para Donald Trump a questão da moeda hegemônica e da segurança estariam combinadas, de forma que os países aliados deveriam tanto contribuir para a manutenção do poderio militar dos EUA (por meio das tarifas) quanto se dedicar ao desenvolvimento de poderio militar próprio (o que se expressa na pressão de Trump sobre os membros da OTAN para que cumpram a exigência de gastos militares mínimos).

Assim, todos os objetivos se relacionam, em alguma medida, com a administração da posição do dólar como moeda reserva do sistema internacional. Não é tão simples avaliar a eficácia do “tarifaço” em atenuar os efeitos deletérios da hegemonia monetária para a estrutura produtiva e para os déficits gêmeos dos EUA.

Há, pelo contrário, sinais de que a medida possa ter tido o efeito oposto, acelerando a perda de hegemonia do dólar. Exemplos desses sinais são a valorização do ouro e do Bitcoin, o aumento dos juros de longo prazo e a venda de títulos do tesouro dos EUA, a maior demanda por títulos de outros países imperialistas. Ainda assim, a hegemonia do dólar segue preservada pela inexistência de uma alternativa concreta que possa assumir o papel de reserva de valor no sistema monetário internacional.

Resta saber se o “tarifaço” servirá para que os demais países se articulem em busca de tal alternativa ou se servirá para dar mais poder de barganha para os EUA na busca de um tratado cambial que preserve a hegemonia do dólar reduzindo seus efeitos deletérios para a economia doméstica.

O “tarifaço” e as classes sociais

Como se vê, tanto os objetivos como a possibilidade de que as medidas de Donald Trump sejam eficazes estão em questão. Há, contudo, um outro aspecto fundamental, que é saber quais classes e frações de classe tem seus interesses contemplados pelo governo Donald Trump e, mais especificamente, pelo “tarifaço”. Os candidatos são diversos e podem mudar a depender do que entendermos ser o principal objetivo da medida.

Em primeiro lugar, os trabalhadores industriais, ameaçados pela concorrência externa e assombrados pelas antigas fábricas abandonadas. Brian, um representante desse setor, inclusive foi chamado ao palco durante o anúncio das tarifas. Como todo movimento fascista, o trumpismo mantém uma base popular de massas, que pode até ser atendida parcialmente, mas nunca de forma prioritária, uma vez que, para chegar ao poder, o movimento fascista deve se subordinar a algum setor da grande burguesia.

Com o “tarifaço”, os trabalhadores em tese poderiam ser beneficiados com a reindustrialização e os empregos industriais, e aí reside o motivo de seu apoio à medida. Entretanto, como vimos, ainda que reindustrialização aconteça, ela deverá ser altamente automatizada, dados os altos custos do trabalho, de forma que novos empregos não serão criados no volume almejado por esse setor popular que está na base do movimento trumpista. Tal setor também sofrerá com o aumento dos preços e a possível recessão econômica.

O setor agrícola americano também poderia ser beneficiado, obtendo maior competividade frente à concorrência externa e, em caso de negociações de novos acordos comerciais, obtendo melhores condições para a exportação. Ainda não é possível, contudo, saber se a tendência predominante será a obtenção de acordos comerciais ou a retaliação. Nesse último caso, as exportações agrícolas dos EUA, que se voltam inclusive para a China, podem ser bastante prejudicadas.

Caso a arrecadação com as tarifas seja satisfatória, pode haver espaço fiscal para uma eventual redução dos impostos, conforme proposta de Donald Trump. Tal medida seria de interesse do conjunto das classes dominantes e de setores da pequena burguesia. Há, contudo, a possibilidade de redução nos fluxos comerciais e de recessão, o que neutralizaria esse efeito fiscal. Nesse caso, uma redução significativa de impostos passará a depender primordialmente da redução dos gastos, o que também tem sido almejado por Donald Trump, mas encontra barreiras nos diversos setores associados ao orçamento público.

Segundo alguns analistas, os setores burgueses mais dedicados ao mercado interno dos EUA estariam entre os beneficiados, uma vez que seriam protegidos da concorrência externa. É difícil, contudo, separar tais setores do modelo mais geral baseado nas cadeias de valor. Muitas das empresas americanas que produzem para o mercado interno o fazem por meio de filiais ou manufaturas por contrato no estrangeiro, de forma que a importação é parte constituinte da sua operação.

É muito difícil conceber um setor relevante que esteja totalmente internalizado na economia estadunidense uma vez que, como vimos, a grande corporação americana tem na captura de valor produzido no exterior uma enorme fonte de rendimentos. Assim sendo, apenas o pequeno capital voltado ao mercado doméstico seria de fato beneficiado com proteção oferecida pelas tarifas.

Entre os setores que deram sustentação ao retorno de Donald Trump, o mais relevante é o grupo das gigantes da tecnologia, as Big Techs. Esse setor, antes mais próximo dos democratas, passaram a apoiar o republicano e até mesmo emplacaram um dos seus na administração federal. Se tal setor tem seus interesses contemplados por Donald Trump no que tange à desregulação de seus negócios e à prioridade dada ao desenvolvimento da inteligência artificial, não se pode dizer o mesmo do “tarifaço”.

A relação das Big Techs com fornecedores estrangeiros faz com que as tarifas representem um problema, a ponto de seu principal representante no governo, Elon Musk, ter vindo a público criticar a medida. A pressão surtiu efeito e o presidente, além do recuo das tarifas para outros países que não a China, acabou isentando os eletrônicos oriundos do gigante asiático. Nota-se, portanto, que a medida não visava atender aos interesses desse que talvez seja o principal setor burguês no campo trumpista.

Além disso, há um elemento geral da economia americana que pode ser bastante nocivo. Me refiro à taxa de juros. Esse é um preço macroeconômico com forte impacto, tanto para as empresas quanto para os indivíduos, que tem no crédito um mecanismo fundamental para sustentar o padrão de vida. Originalmente, o objetivo do “tarifaço” parecia ser o de reduzir rapidamente os juros, mas, por enquanto, isso não tem sido o observado.

Daí pode se compreender, inclusive, o mal-estar entre Donald Trump e o FED, que parece privilegiar os interesses do setor financeiro estadunidense. Este último tem nas baixas taxas de juros uma importante alavanca para a valorização fictícia. Tal setor também tem sido penalizado pois, em paralelo ao aumento dos juros, temos visto importantes quedas na bolsa de valores americana.

Muitos analistas têm recorrido aos fracionamentos de classe para explicar as tarifas de Donald Trump. Essa forma de analisar os conflitos políticos é bastante frutífera e nos ajuda a ver além da cena política. Se tomamos a política econômica, social e externa do governo Trump de forma geral, é possível identificar setores que são privilegiados em comparação à administração anterior. No caso do “tarifaço”, entretanto, uma análise desse tipo se torna mais complexa. Isso porque, como vimos, tal medida não parece corresponder diretamente aos interesses de nenhuma das classes e frações de classe que seu governo em tese representa.

Acreditamos que esse problema de análise decorre do fato de que o “tarifaço” representa uma medida que, assim como algumas outras, não visa atender determinada classe ou fração de classe, mas sim contribuir com a reprodução do capitalismo e do imperialismo dos EUA. Trata-se, portanto, de uma medida que visa contribuir com a reprodução do capitalismo estadunidense, ainda que entre em choque com interesses particulares dos capitalistas estadunidenses.

O sentido dessa medida, portanto, só poder ser identificado se compreendermos o Estado burguês como centro do poder político, que mantém uma autonomia relativa frente às classes sociais, inclusive burguesas. Em suma, para garantir o interesse geral da burguesia, isto é, a reprodução do capitalismo estadunidense e a manutenção de sua posição privilegiada no sistema internacional, o Estado toma medidas que podem frustrar interesses particulares das classes dominantes e suas frações.

O Estado no centro do “tarifaço”

O “tarifaço” de Trump, à primeira vista, não parece representar o interesse de nenhum setor burguês dos EUA. Isso porque o capitalismo estadunidense, pela sua posição privilegiada no sistema internacional, é altamente dependente das transferências de valor desde a periferia para o centro. Essa dinâmica remonta aos primórdios da etapa imperialista do capitalismo, mas encontrou no modelo neoliberal da grande corporação americana modular sua forma mais desenvolvida até então.

Nesse modelo, as cadeias de valor das grandes empresas americanas, especialmente do setor de eletrônicos, se distribuem de forma desigual pelo mundo, transferindo as etapas de manufatura para países periféricos, principalmente do leste asiático, enquanto mantém o domínio do padrão tecnológico.

Esse domínio faz com que etapas como design, desenvolvimento, marketing e vendas ganhem maior importância no interior da cadeia, capturando grande parte do valor produzido nas etapas de produção. A hegemonia monetária do dólar também contribui para essa situação, com uma sobrevalorização da moeda americana (e, no caso chinês, por exemplo, uma subvalorização da moeda) que favorece a transferência de setores inteiros da cadeia para fora do país.

Apesar de extremamente custoso para os países periféricos que arcam com essas transferências, esse modelo foi aproveitado de forma excepcional pela China. Isso porque a forma de organização do poder político em tal país permitiu que essa inserção subordinada nas cadeias de valor fosse orientada para o desenvolvimento planejado do próprio país.

Suas características únicas e um contexto geopolítico favorável fizeram desse país um polo de empresas de manufatura por contrato associadas às grandes empresas do setor de tecnologia. A partir de certo ponto, contudo, essas empresas se tornaram uma ameaça para o modelo por passarem a buscar avançar nas etapas da cadeia dominadas pelas corporações de países imperialistas. Também passaram a competir em torno da definição de novos padrões tecnológicos dominantes.

A febre por lucro que orientou a estratégia da grande corporação americana e submeteu o próprio Estado resulta em algumas fragilidades. Em primeiro lugar, os fluxos de valor capturado não foram revertidos para o desenvolvimento nacional, de forma que o país se encontra hoje com gargalos em importantes setores da economia. Em vez disso, a perspectiva da valorização fictícia fez com que grande parte do valor capturado fosse orientado para o mercado de capitais, alimentando o processo chamado de financeirização.

Em segundo lugar, a separação entre a definição do padrão tecnológico e a produção cria dificuldades para o próprio processo inovativo, que perde a capacidade de aprender por meio do processo produtivo. Em sentido inverso, a especialização manufatureira da China abre a possibilidade de que a inovação se desenvolva em ritmo acentuado, ameaçando a hegemonia tecnológica dos EUA.

Tais fragilidades, contudo, não parecem ser capazes de demover as grandes empresas americanas de abandonar o modelo atual, uma vez que isso implicaria renunciar aos rendimentos atuais. Mesmo a transferência da produção da China para outros países periféricos representaria grandes custos com os quais tais empresas não parecem querer arcar.

É nesse sentido que o Estado precisa fazer valer sua autonomia relativa frente aos setores burgueses para proteger a reprodução capitalista dos interesses particulares de cada um desses setores.

O principal objetivo do “tarifaço”, criar obstáculos para a China, é na verdade um objetivo estratégico do Estado americano, não uma resposta aos interesses de determinado setor. Por isso também é um objetivo que unifica os dois principais partidos dos EUA. A guerra comercial contra a China, que agora atinge níveis mais dramáticos, remonta ao primeiro mandato de Donald Trump, sem que grandes alterações fossem feitas por parte de Joe Biden.

Aliás, outro importante quadro do partido democrata, Hillary Clinton expressou com todas as letras a necessidade de reverter a tendência atual. Segundo ela, a dependência manufatureira perante a China era ruim para os interesses geopolíticos dos EUA, de forma que deveriam agir de forma deliberada, inclusive por meio da atuação estatal, para retomar os meios de produção.[iv]

É importante notar, entretanto, que apesar de um mesmo objetivo, há diferenças nos meios empreendidos pela gestão anterior e pela atual. Como bem notou Michael Roberts,[v] o governo de Joe Biden buscou esse objetivo estratégico por meio de uma política “industrialista”, o que elevou o déficit público sem avançar muito na retomada da produção manufatureira. Donald Trump, por sua vez, aposta nas tarifas e na redução de impostos.

Conforme Sthepen Miran, assessor econômico de Donald Trump, as tarifas poderiam permitir um reordenamento do sistema internacional de comércio e do próprio sistema monetário internacional. Isso permitiria aos EUA superar os déficits gêmeos relacionados à posição hegemônica do dólar. O pressuposto era de que o dólar se valorizaria em proporção próxima ao aumento de custo resultante das tarifas, de forma que a pressão inflacionária da medida seria neutralizada e os fluxos comerciais seriam mantidos.

Assim, o custo das tarifas seria repassado aos países que exportam para os EUA, compartilhando o “fardo” que o país carrega por manter a moeda hegemônica. Entretanto, não parece ter sido esse o desdobramento do “tarifaço”. Ainda restar saber como se darão as negociações bilaterais, mas até então o que vimos foi um enfraquecimento do dólar, a perspectiva da redução dos fluxos comerciais e de pressões inflacionárias. Além disso, a medida foi amplamente rechaçada por importantes setores sociais, incluindo as principais frações burguesas dos EUA.

Como resultado, Donald Trump foi obrigado a sucessivos recuos, indicando que a autonomia relativa do Estado para buscar esse objetivo estratégico se encontra fragilizada após décadas de neoliberalismo, quando os objetivos particulares das grandes corporações americanas tiveram um peso decisivo na definição da política de Estado.

E é nesse sentido que os EUA demonstram uma fragilidade muito maior que o Estado Chinês, onde o poder político se orienta para o desenvolvimento nacional de forma planejada e soberana em relação aos interesses de cada uma das frações burguesas. Essa forma particular de capitalismo monopolista de Estado sob hegemonia do partido comunista chinês é o principal trunfo na encarniçada luta que se avizinha. É também uma experiência que fornece uma valiosa lição para todos os países da periferia do sistema capitalista.

*Pedro Mattos é doutorando em economia na Unicamp.

Notas


[i] https://www.youtube.com/watch?v=c2bZto8YvEc

[ii] https://www.hudsonbaycapital.com/documents/FG/hudsonbay/research/638199_A_Users_Guide_to_Restructuring_the_Global_Trading_System.pdf

[iii] https://www.youtube.com/watch?v=EOVcNHAdjwE

[iv] https://www.youtube.com/watch?v=CHUdbhnvlR4

[v] https://aterraeredonda.com.br/o-colapso-produzido-por-donald-trump/


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