Por RICHARD D. WOLFF*
Trump herda o manual da Guerra Fria: substitui a ‘ameaça vermelha’ pela ‘ameaça amarela’, usa tarifas como ‘bala mágica’ contra o declínio dos EUA, e repete o jogo histórico de transferir os custos do império para as classes trabalhadoras
1.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a classe patronal dos EUA – formada pelos capitalistas – enfrentou ameaças sobrepostas, tanto domésticas quanto no exterior. No lado doméstico, uma coalizão do Congresso de Organizações Industriais (COI), em que atuavam dois partidos socialistas e um partido comunista, tornou-se poderosa durante a Grande Depressão dos anos 1930. Juntos, eles tiveram força para pressionar, obtendo sucesso, por políticas domésticas conhecidas como New Deal.
Essas políticas incluíram o estabelecimento do sistema de previdência social, do sistema de seguro-desemprego, assim como do primeiro salário-mínimo a vigorar no país como um todo. Abarcaram, também um programa federal de empregos que empregou milhões. Junto com vários outros programas, o New Deal gerou um desvio à esquerda nas prioridades do Estado. Para a classe patronal, pior do que essas mudanças nos gastos, foram as mudanças correspondentes nas fontes de receita do governo federal.
Os impostos, assim como os empréstimos, cobrados das corporações e dos ricos, foram drasticamente aumentados para financiar os programas maciços do New Deal destinados aos trabalhadores. Isso realocou a renda e a riqueza da nação do topo para o meio e o fundo da escala de repartição. Em oposição às políticas econômicas dominantes de gotejamento de cima para baixo (trickle-down) que estavam em vigor, o New Deal se constituiu como um experimento em políticas econômicas de gotejamento de baixo para cima (trickle-up). Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, a classe patronal não queria outra coisa do que se desfazer do New Deal, trazendo de volta as políticas de gotejamento de cima para baixo.
Um segundo problema ameaçou domesticamente a economia dos EUA depois de 1945: o risco de uma volta à depressão dos anos 1930. O financiamento dos déficits devidos à guerra, que durou por cinco anos, finalmente tirou a economia dos EUA da depressão da década marcada pela grande depressão.
Os anos após 1945, em face desse risco, trouxeram os problemas da desmobilização das tropas e da reorientação dos recursos para a produção em tempos de paz. Os principais políticos e acadêmicos dos EUA, mais ou menos influenciados pelo trabalho de Keynes, buscaram então, com urgência, defender e implementar intervenções governamentais para evitar essa ameaça.
2.
Ademais, a classe patronal dos EUA passou a ver ameaças que vinham do exterior. A principal delas partia da Rússia, que fora aliada dos Estados Unidos durante a guerra. A serviço da classe patronal dos EUA, o presidente Harry S. Truman (1945-1953) se esforçou para mudar o modo como o público via a Rússia e seus aliados que, agora, formavam URSS.
O aliado próximo durante a guerra foi então transformado num inimigo temível, que estava empenhado em “derrubar os EUA pela força e violência”. Apesar de ter sofrido enorme destruição durante a guerra, a URSS passou a ser vista pelos principais políticos, pela mídia, pelos negócios e pelos líderes acadêmicos dos EUA como um perigo extremo. Os comunistas e seus “companheiros de viagem” passam, então, a serem expurgados pelo que desde então tem sido chamado de macarthismo.
Por seu turno, os líderes da Europa Ocidental também temiam esse suposto perigo; eles se voltaram contra a URSS quando os países orientais da Europa se tornaram aliados socialistas na URSS do pós-guerra. Os países que formavam a URSS apoiaram e ajudaram revoluções bem-sucedidas contra um colonialismo europeu que se encontrava enfraquecido.
Ao mesmo tempo, as classes patronais da Europa temiam agudamente seus partidos comunistas domésticos. Eis que estavam fortemente entrincheirados em seus movimentos de resistência antinazistas e movimentos trabalhistas organizados. A depressão da década de 1930 fortaleceu todos eles (tal como ocorrera nos Estados Unidos).
Na Europa, os movimentos de trabalhadores, os partidos comunistas e socialistas, assim como os seus apoiadores, mobilizaram, treinaram, equiparam, financiaram e coordenaram a resistência antifascista de vários modos. Em 1945 e nos anos seguintes, esse trabalho de resistência gerou uma imensa popularidade desses partidos e movimentos.
Os empregadores em cada um dos países que compõe da Europa Ocidental temiam as demandas econômicas promovidas pelos socialistas, comunistas, assim como pelos sindicatos. Essas demandas, apoiadas pelo poder político dos trabalhadores das fábricas, obtinham apoio maior devido à proximidade geopolítica da URSS.
Diante dessas condições, os Estados Unidos e a Europa Ocidental forjaram um compromisso que passou a ser compartilhado por suas classes capitalistas. Formaram, assim, uma aliança sob o domínio dos EUA; esse país foi definido então como a “liderança do mundo livre”. Essa aliança abrangeu questões militares, mas também a mobilização de recursos (OTAN, FMI e Banco Mundial) com fim de produzir crescimento econômico.
A classe patronal em cada um desses países, juntamente com os de seus governos, esforçou-se para isolar os comunistas, socialistas, militantes trabalhistas e seus apoiadores. E eles foram tão longe quanto as condições o permitiam. As ações variaram de prisão e deportação à perda de empregos, renda e influência social.
O tema central da aliança era declarar e travar uma guerra fria contra a URSS e seus supostos “agentes” dentro dos Estados Unidos e dos países europeus. Os expurgos dentro dos Estados Unidos incluíram as execuções de Ethel e Julius Rosenberg como espiões soviéticos. Essas ações também implicaram em favorecer (e em financiar secretamente por meio da CIA) muitos dos políticos e partidos “pró-ocidentais” da Europa, assim como determinados meios de comunicação e mesmo certos grupos estudantis. A aliança EUA-Europa incorporou o Canadá e o Japão. O dólar americano e sua posição global sustentou as ações desse bloco de países.
O problema ideológico e político central para a classe patronal dos EUA depois de 1945 passou a ser encontrar modos de produzir a ruína do New Deal. Minar a aliança dos Estados Unidos com a Rússia durante a guerra se mostrou também como necessária.
A solução encontrada foi uma campanha bem coordenada e bem financiada, munida com argumentos coesos e articulada por instituições midiáticas, que visava saturar a opinião pública global. Eis que uma reviravolta total na opinião pública e na política era vista como necessária para resgatar o capitalismo norte-americano e europeu de sua crise existencial, tal como percebida pelas classes patronais desses países.
3.
Ora, há certas semelhanças com situação atual que levou Donald Trump a assumir o cargo de presidente dos Estados Unidos por duas vezes, em 2017 e em 2025. Em ambas as situações, tem-se uma classe patronal que se sente profundamente ameaçada, especialmente devido à escalada dos perigos políticos e econômicos.
Hoje, essa classe se preocupa com divisões e tensões sociais paralisantes. O aprofundamento das desigualdades nas distribuições de renda e da riqueza fez com que o prometido sonho americano ficasse fora do alcance da maioria. E isso produziu uma irritação política nas classes subalternas que passou a ser vista como perigosa.
A classe patronal também teme o aprofundamento do endividamento do governo, do setor corporativo e da maioria das famílias em meio ao declínio da posição geopolítica do país, que lhe parece muito preocupante. O crescimento da China nas últimas décadas posiciona esse país como o primeiro concorrente econômico global sério dos Estados Unidos em um século (a URSS era uma economia pequena demais para alcançar esse status). Entre as muitas consequências do crescimento da China, surge a possibilidade de que posição global dos EUA possa entrar em declínio.
Tal como ocorrera quando o governo Truman assumiu o poder em 1945, o segundo mandato de Donald Trump se encontra definido agora por fortes pressões acumuladas. E elas estão produzindo um movimento de ruptura em relação ao passado como forma de enfrentar o declínio e as ameaças internas e externas.
A solução da classe patronal dos EUA em 1945 foi destruir a esquerda doméstica e transformar a URSS de aliada em inimiga. A solução de Donald Trump voltada para os interesses da classe patronal vem a ser igualmente tentar destruir a esquerda, mas transformando a Rússia de inimiga em aliada.
Apesar das diferenças importantes no tempo e nas condições globais – o enfrentamento em 1945 foi muito mais radical do que aquele projetado e efetivado agora –, há semelhanças bem sugestivas. Em 1945, os empregadores iniciaram já o processo de se desfazer o New Deal. Eles obtiveram êxito, mas este foi apenas parcial.
Administraram um Estado redistributivo que foi enfraquecido a partir dos 1980, mas tiveram que aceitar a mudança para um Estado regulador da atividade econômica. Hoje, Donald Trump busca completar o enterro do legado do New Deal, indo além e buscando se desfazer do que dele restou, assim como do Estado regulador.
A política de classe de Donald Trump leva adiante as ações de seus antecessores ao longo do século passado. Os detalhes, não os objetivos, variam de acordo com as circunstâncias. A transição da URSS para a Rússia facilitou a mudança de postura política de Donald Trump em relação a este país. O declínio do movimento trabalhista organizado dos Estados Unidos nos últimos 70 anos facilitou o apelo eleitoral de Donald Trump à classe trabalhadora.
Por outro lado, a ascensão contínua da China como concorrente econômico reforça as preocupações da classe patronal sobre seu status e segurança. Mais profundamente, o que perturba a classe patronal dos EUA agora é o declínio entrelaçado do império dos EUA e da posição global do capitalismo norte-americano.
Depois de 1945, a classe patronal reafirmou seu domínio social. Ela reorientou o governo federal para as tarefas duplas de expurgar os apoiadores do New Deal do governo, sindicatos e outras instituições sociais e de demonizar e conter a URSS como o inimigo global, como a fonte do mal maior. O anticomunismo tornou-se a principal arma ideológica que atendeu a essa finalidade.
A barreira política erigida constrangia todos a apoiarem o sistema e a denunciarem o comunismo. Constrangia também as pessoas a mostrarem simpatias por dogmas como “a interferência do Estado na economia” é ineficiente, esbanjadora e inferior ao que as empresas privadas “livres” podem e chegam a alcançar.
Comunistas, socialistas, sindicalistas, liberais de esquerda e democratas, ou seja, aqueles associados ao New Deal, foram tratados como crentes na burocracia, no autoritarismo e no totalitarismo. Na pior das hipóteses, eles eram vistos como agentes das cruzadas de Moscou contra a democracia e a liberdade individual. Colocar os comunistas domésticos e no exterior como alvo principal permitiu que a classe patronal vinculasse a contenção doméstica às lutas da guerra fria contra a URSS. Essas ações contra a esquerda em casa, enquanto era travavada a guerra fria no exterior, visavam derrotar dois males ao mesmo tempo.
4.
Nos últimos 80 anos, a classe patronal, diretamente e por meio de seu poder sobre os governos, empreendeu um programa maciço de formação ideológica. Isso tornou a luta entre mais versus menos intervenção governamental na “economia da empresa privada” e no “livre mercado” uma questão importante no âmbito da economia e das políticas públicas.
Economistas profissionais debateram o keynesianismo versus o neoclassicismo. Políticos moderados se uniram em torno de slogans que definiam a luta como sendo entre “atender às necessidades das pessoas” versus sofrer com uma “burocracia autoritária”. Políticos extremistas chamavam o Estado regulador como um mal a ser combatido (muitas vezes usando comunista, socialista, liberal, democrata e até terrorista como sinônimos).
O “livre mercado” global que se formou após 1945 permitiu que os Estados Unidos se tornassem dominantes. E ele foi capaz de conter todos os rivais econômicos em potencial que apareceram em certo momento (Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, França, Rússia e Itália). Sustentou essa posição por meio da OTAN, por um lado, e pela demonizando da URSS, por outro. A luta contra o comunismo no exterior justificava a manutenção desse domínio internamente. Lutar contra o comunismo em casa justificou a destruição progressiva da coalizão em prol do New Deal e a marginalização de suas políticas.
Os líderes da guerra fria nos Estados Unidos, incrustrados nos dois principais partidos políticos, executaram essas políticas de forma consistente. O relatório de 2025 da Heritage Foundation atualiza e expande um programa político que o regime de Trump está seguindo em grande parte. Esse plano visa destruir o pouco que resta do New Deal: agora é preciso remover também os aparatos estatais “regulatórios”. O regime de Donald Trump também aceita implicitamente o que nega explicitamente: que o império dos EUA e o capitalismo dos EUA estão em declínio.
As tarifas são a bala mágica que visa subverter o que restou do New Deal de modo bem rápido. Acima de tudo, elas estão sendo implementadas com a esperança de que produzam o retorno da indústria perdida para os Estados Unidos. E isso – note-se – foi prometido por cada um dos presidentes neste século, mas nenhum deles chegou a cumprir a promessa. As tarifas podem, na melhor das hipóteses, retardar o declínio, mas seus custos políticos, econômicos e ideológicos, assim como as retaliações de muitas nações que suscita, farão com que a bala mágica não atinja o alvo.
O mesmo aconteceu com muitos impérios anteriores que não conseguiram impedir o próprio declínio com balas mágicas igualmente falhas. As tarifas provavelmente falharão de maneira muito parecida com as propostas de “retomar” o Canal do Panamá, anexar a Groenlândia e espremer ruidosamente os ganhos de comércio do Canadá e do México. Esses planos são disfarces agressivos e compensações exageradas para a dolorosa realidade do império e da economia em declínio.
Vale lembrar algo que vale para todos os impérios: quando a sua ascensão inevitavelmente se transforma em declínio, aqueles que acumularam riqueza e poder usam esses recursos para manter sua posição. Assim, eles descarregam os custos do declínio nas classes média e baixa. Estes últimos sofrem mais e enfrentam as consequências primeiro. As primeiras propostas de orçamento de Donald Trump exibem claramente essa forma de compressão que supostamente alivia os de cima na escala social. Para a maioria dos impérios, esse descarregamento gera enorme divisão na sociedade e termina muito mal.
Os recentes resultados das eleições nacionais no Canadá e na Austrália sugerem que as classes desses países estão começando a entender os objetivos maiores do regime de Donald Trump. Por isso, votaram contra políticos vistos como insuficientemente opostos a eles. Algumas pesquisas nos Estados Unidos apontam em direções semelhantes.
Os líderes europeus também estão preocupados. A maioria deles tem sido longa e profundamente cúmplice dos objetivos e métodos dos Estados Unidos. Os eleitores podem puni-los por não resistirem às repetidas políticas e atitudes anti-europeias que fluem do regime político posto em prática por Trump.
Os líderes europeus correm o risco de que os eleitores de seus países os considerarem culpados por manterem a antiga associação. Muitos rompem com Donald Trump exagerando o apoio a Volodymyr Zelenskyy na Ucrânia e demonizando a Rússia. As raízes da resistência se expandem e se aprofundam.
*Richard D. Wolff é economista. Fundou o portal Democracy at Work. Autor, entre outros livros, de Capitalism’s Crisis Deepens (Haymarket).
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Publicado originalmente no portal Counterpunch.
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