Duas confrontações na Ucrânia

Imagem: Kristina Abelli Elander
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Por CLAUDIO KATZ*

A soberania real da Ucrânia só se dará com a saída dos gendarmes estrangeiros de ambos os lados

Nos primeiros dias da operação militar, o avanço do exército russo foi fulminante. Destruiu os alvos preestabelecidos e inutilizou a infraestrutura de um adversário infinitamente mais frágil. Não há ponto de comparação entre os dois lados, e se o resultado final dependesse do desenlace bélico, o triunfo da Rússia estaria assegurado.

Mas a confrontação acabou de começar e a grande questão é o propósito imediato de Moscou: busca ocupar o país? Tenta forçar a queda do governo? Pretende impor suas demandas a um presidente substituto? Com tanques cercando Kiev, a passagem do tempo joga contra a operação.

 

Surpresas, reações e acontecimentos imprevistos

A impotência do Ocidente tem sido o dado mais chamativo do cenário criado pela ofensiva de Moscou. A decisão de Putin paralisou seus adversários, que não optaram por qualquer curso de ação para socorrer seu protegido. O presidente Zelensky verbalizou abertamente esse abandono de seus guardiões (“nos deixaram sozinhos”).

A desorientação de Biden é patética. Conhecia o plano russo, que seus porta-vozes publicizaram com grande antecedência, mas não planejou uma resposta. Descartou a escalada militar, assim como as propostas de negociação de Putin, sem considerar outras alternativas.

Este desconcerto confirma que os reflexos de Washington seguem afetados pela recente derrota no Afeganistão. O Departamento de Estado enfrenta sérios limites para envolver os marines em novas operações, e verifica-se na Europa a mesma resistência ao envio de tropas. Por isso, a OTAN limitou-se a emitir pronunciamentos vagos.

É evidente que as sanções econômicas serão irrelevantes se a Rússia alcançar um sucesso político-militar. Na prática, qualquer bloqueio financeiro ou comercial seria desfeito por essa vitória. Moscou preparou-se para resistir às penalidades. Acumulou grandes reservas de divisas e multiplicou acordos comerciais para enfrentar o isolamento. Mas estas precauções só funcionarão se obtiver uma vitória a curto prazo.

A Rússia aperfeiçoou sua política de substituição de importações para lidar com as sanções e é muito incerto o impacto de sua eliminação do sistema internacional de gestão bancária (Swift). Se Putin negociou com Xi Jinping uma compra-venda massiva de mercadorias, poderia compensar o boicote do Ocidente. Mas ninguém sabe qual é a convergência efetiva dos dois gigantes que desafiam os Estados Unidos.

As sanções são uma faca de dois gumes e poderiam transformar-se num bumerangue para o Ocidente, caso afetem as próprias companhias transatlânticas. As sanções estabelecidas em Londres contra os oligarcas russos, por exemplo, já provocam ruídos em outras operações do paraíso financeiro inglês.

A belicosidade comercial contra Moscou aumenta também os preços dos combustíveis e dos alimentos e provoca a erosão da recuperação econômica pós-pandemia. A Rússia fornece grande parte do trigo comercializado no mundo, abastece um terço do gás utilizado pela Europa e metade do que é consumido pela Alemanha. Se Berlim dispensa seu principal fornecedor de energia, quem será mais afetado, o vendedor russo ou o comprador alemão?

Alguns analistas acreditam que Putin caiu numa armadilha concebida por Biden para empurrar a Rússia para o mesmo pântano que exauriu a presença da URSS no Afeganistão[i]. Mas Washington não controla os fios da operação e é muito improvável que seu líder balbuciante tenha planejado tal emboscada. Se a invasão, por outro lado, fica estagnada, Moscou poderia repetir em Kiev a tumba que cavou para si em Cabul.

Faltam muitas sequências para imaginar qual será o desfecho do drama que vive a Ucrânia. Mas, em qualquer caso, os diagnósticos são secundários para a caracterização do conflito.

 

O principal responsável

Há provas contundentes da responsabilidade primária do imperialismo norte-americano pela tragédia na Ucrânia. Em inúmeras ocasiões, o Pentágono tentou acrescentar Kiev à rede de mísseis criada pelos novos parceiros da OTAN na Europa do Leste. Em 30 anos, a Aliança Atlântica ampliou-se de 16 para 30 membros.

O cerco à Rússia foi iniciado por Bill Clinton, violando todos os compromissos que restringiam a presença militar estadunidense à fronteira da Alemanha. Esse limite foi deslocado diversas vezes para reforçar uma estratégia expansionista, que Bush encorajou com a incursão bélica fracassada na Geórgia (2008). Seus sucessores trabalharam para converter a Ucrânia em outro peão do dispositivo atlântico.

Washington tentou vias múltiplas para incorporar Kiev à OTAN e esteve perto de induzir um referendo para forçar essa adesão. Da revolta de Maidan (2013), surgiram governos contrários à Rússia e o atual presidente Zelensky fez da Ucrânia um “parceiro de oportunidades aperfeiçoadas” da OTAN (2020).

Putin salientou repetidamente que a presença desse organismo na Ucrânia representa uma ameaça à segurança da Rússia. A Ucrânia faz fronteira com seus principais parceiros europeus e compartilha zonas costeiras com a Turquia e os estados caucasianos. Enquanto os mísseis colocados na Polônia ou na Romênia podem atingir Moscou em 15 minutos, seus equivalentes na Ucrânia o fariam em apenas cinco minutos. A Rússia carece de qualquer instrumento equivalente nas proximidades do território estadunidense.

Nos últimos anos, a Ucrânia recebeu grandes fornecimentos de armas e o generalato reformou as fileiras militares em linha com os padrões da OTAN.[ii] O país ficou em terceiro lugar em “ajuda” econômico-militar de Washington e adquiriu recentemente mísseis antiaéreos, concebidos para transformar o Mar Negro numa jurisdição do comando ocidental.

O Kremlin questionou durante anos essa belicosidade, e, nas últimas seis semanas, Putin propiciou um freio explícito na conversão da Ucrânia numa catapulta contra a Rússia. Tentou negociar um novo status quo para proteger seu país do belicismo norte-americano, mas não obteve resposta da OTAN.

As propostas de Moscou contemplavam a exclusão de Kiev desse organismo e um veto à instalação de mísseis. Promovia, ademais, um estatuto de neutralidade para o país, semelhante ao que mantiveram a Finlândia e a Áustria durante a Guerra Fria.

Putin também apelou para um consenso sobre outras medidas de distensão global. Convidou Washington a retomar um tratado anulado por Trump, que regula a desativação de certos dispositivos atômicos (INF). O Departamento de Estado respondeu com indiferença, evasivas ou insultos a essas ofertas de paz. Rejeitou especialmente a neutralidade da Ucrânia, para evitar um precedente no desmantelamento das baterias de mísseis construídas pelo Pentágono na Europa. Esta recusa intensificou o conflito provocado pela expansão agressiva da OTAN.

 

Submeter a Europa

Washington encoraja o belicismo na Ucrânia para reforçar a submissão da Europa à sua agenda. Repete sua velha receita de militarização para subordinar o Velho Continente. Uma funcionária neoconservadora do Departamento de Estado (Victoria Nuland) comanda esta estratégia desde 2014.[iii]

A perseguição contra a Rússia já disciplinou Bruxelas, e em poucas semanas o Pentágono impôs a mobilização de tropas da Espanha, Dinamarca, Itália e França. A crise ucraniana também serviu para reforçar o alinhamento pró-ianque do Reino Unido pós-Brexit. Johnson divulga antes de Biden as sanções econômicas contra Moscou e estabelece o caminho a seguir para seus ex-sócios do continente.

A França perdeu autoridade devido à negociação fracassada empreendida por Emmanuel Macron. Procurou criar um marco para as tratativas distante do veto norte-americano, mas não considerou as propostas de pacificação do Kremlin. Sobre as questões principais – a neutralidade da Ucrânia e sua separação da OTAN –, manteve total lealdade à Casa Branca.

A Alemanha tem sido um alvo deliberado do belicismo norte-americano. O Departamento de Estado tentou bloquear a inauguração do gasoduto Nord Stream 2, que forneceria combustível russo através do mar Báltico, contornando o atual trânsito pela Ucrânia. Washington criou um clima rarefeito em toda a região, para impedir que os alemães recebessem a energia de Moscou.[iv]

Os Estados Unidos levam em conta também o aumento do preço do gás natural em cinco vezes no último ano. Tenta deslocar a Rússia do mercado europeu para descarregar seus excedentes de gás liquefeito, que oferece a preços mais elevados do que o concorrente de Moscou. Negocia inclusive a construção de um porto no Velho Continente para receber os envios delicados deste combustível. Seu projeto rivaliza abertamente com o gasoduto russo.[v]

A maquinaria industrial alemã necessita do fornecimento externo de energia, razão pela qual Berlim tentou atenuar a pressão bélica estadunidense. Eludiu a mobilização de efetivos e sugeriu que vetaria a utilização de seu espaço aéreo. Mas nunca suavizou seu alinhamento cego com Washington e finalmente suspendeu a inauguração do gasoduto. O efeito imediato da incursão de Putin foi a consolidação do bloco atlântico sob as ordens de Washington.

 

A escalada a partir de Kiev

A Europa desempenhou um papel complementar aos EUA no projeto de transformar a Ucrânia num bastião da OTAN. Tanto Washington como Bruxelas promoveram essa dinâmica belicista desde a revolta do Maidan (2013) e o posterior golpe contra o presidente Yanukóvych.

Esse líder negociava em duas pontas uma ajuda financeira externa para aliviar o déficit fiscal do país. Ao final, sua escolha do resgate russo em detrimento da ajuda europeia desencadeou a reação dos manifestantes pró-ocidentais, que tomaram as ruas para precipitar a queda do presidente e a chegada de um presidente inclinado a acelerar o giro para a OTAN (Petro Porochekno).

O Departamento de Estado impulsionou esta mudança subindo o tom das tensões com a Rússia e promovendo na população o apego liberal ao sonho americano. Bruxelas lucrou, por seu lado, com a ilusória expectativa de transformar a Ucrânia numa economia desenvolvida pela simples adesão à União Europeia. Encorajou essa crença para escamotear o ajuste brutal que impunha à Grécia nesse momento. Aproveitou o entusiasmo em Kiev com as bandeiras hasteadas da UE (quando eram detestadas em Atenas).

A euforia ocidental propagada pelo governo ucraniano repetiu a norma de todos os processos políticos recentes da Europa do Leste. Mas acrescentou a este padrão uma campanha anti-russa e exacerbou o nacionalismo, que resultou em provocações armadas contra a população de língua russa. Kiev estabeleceu o ucraniano como único idioma oficial, afetando todos os habitantes que não utilizam essa língua. Iniciou, ademais, uma enxurrada de ações militares contra o setor próximo à Rússia situado no Leste.

Estima-se que a miniguerra interna da Ucrânia tenha resultado em 14.000 mortos e um milhão e meio de pessoas deslocadas nos últimos oito anos.[vi] Mas o principal teatro dessas confrontações tem sido a região de língua russa Donbass, como consequência dos atropelos perpetrados pelos enviados de Kiev.

Estas agressões são lideradas pelas correntes de extrema direita que emergiram da revolta do Maidan. Entretanto, ainda se discute se essa marca reacionária esteve presente desde o início do movimento ou se emergiu de sua evolução posterior. Mas, em ambas as variantes, o resultado ultraregressivo desse processo tem sido inquestionável.

A Ucrânia encontra-se numa crise econômica dramática devido aos resultados adversos da restauração capitalista. Esta transformação foi completada com a mesma intensidade da Rússia e com o mesmo modelo de apropriadores oligarcas advindos da velha cúpula governante.

Mas as duas economias seguiram trajetórias muito diferentes. Enquanto as riquezas naturais da Rússia permitiram combinar os compromissos entre as elites com certa estabilidade político-social, o declínio produtivo da Ucrânia exacerbou os equívocos no topo e a insatisfação na base. Num contexto de estagnação, retração do consumo, endividamento público e deterioração fiscal, o PIB per capita assemelha-se aos anos 90, e a gestão econômica de Kiev está submetida a um estrito controle do FMI.[vii]

Essa crise aprofundou a divisão anterior das classes dominantes do país entre os setores pró-ocidentais do Oeste e pró-russos no Leste. O primeiro grupo procurou integrar o país à União Europeia, oferecendo mão de obra barata, primarização e abertura comercial irrestrita. Assumiram empréstimos impagáveis e comprometeram-se com ajustes irrealizáveis. A crescente integração à Europa (sem ingressar na UE) aumentou a dependência financeira de Bruxelas e das remessas enviadas pelos emigrantes.

No Leste, o cenário é diferente. Ali prevaleceu a manutenção da produção fabril junto ao estreitamento dos laços com Moscou. Os setores governamentais resistiram à demolição que a adesão à União Europeia prometia. Compreenderam que as fábricas da região nunca poderiam digerir os padrões de produção, tecnologia e preços exigidos por Bruxelas. Também sabem que o aço ucraniano não poderia sobreviver sem o fornecimento de petróleo russo.

A Ucrânia foi incapaz de processar essas tensões regionais, preservando sua unidade e a coabitação das duas zonas. O nacionalismo reacionário anti-russo encorajado pelo Pentágono destruiu essa coexistência.

 

A reação de Moscou

A invasão da Ucrânia foi a resposta de Vladimir Putin às inúmeras recusas que sua proposta de negociar a neutralidade desse país recebeu. Alguns pensadores consideram que ele se antecipou, com uma ação preventiva, ao ingresso de seu vizinho à OTAN.[viii] A Rússia acumula uma terrível história de sofrimentos devido a invasões estrangeiras, e sua população é muito sensível a qualquer ameaça. Depois de Hitler, a segurança das fronteiras não é uma questão menor.

É evidente também que o imperialismo norte-americano só entende a linguagem da força. Basta observar o contraste recente entre Afeganistão, Iraque ou Líbia e a Coreia do Norte, para confirmar esse predomínio de códigos bélicos nas relações com Washington.

Depois de ameaçar repetidamente Pyongyang, nenhum presidente ianque passou aos fatos, pelo óbvio temor que suscita uma resposta atômica. A Rússia conhece essa dinâmica e por essa razão alguns analistas sugeriram que Putin responderia ao impasse das negociações instalando mísseis nucleares táticos na Bielorrússia.[ix]

Mas o chefe do Kremlin optou por uma invasão, que apresentou inicialmente como uma operação para proteger a população de língua russa. No Donbass, a situação voltou a agravar-se nos últimos meses, com novas ondas de atentados direitistas que corroeram o cessar-fogo e forçaram a evacuação da população civil.

Vladimir Putin exagera quando denuncia a existência de um “genocídio” nessa região, mas faz alusão à violência comprovada das milícias reacionárias. Ele refere-se a estes setores quando exige a “desnazificação” da Ucrânia. Essa denominação não é uma figura de retórica vazia. Desde 2014, os bandos de extrema-direita impuseram uma norma de violência a todos os governos de Kiev.

Estes grupos impuseram uma proibição do Partido Comunista, a erradicação do idioma russo da esfera pública e a purgação de todos os vestígios da era soviética (“descomunização”). Os direitistas desenvolvem uma intensa atividade nas ruas e criaram unidades armadas com centros de treinamento, muito semelhantes ao modelo paramilitar fascista dos anos 1930.[x]

Na primeira linha dessas forças, encontra-se o batalhão neonazista Azov, que utiliza emblemas das SS do Terceiro Reich. Reivindicam as formações locais que colaboraram com Hitler contra os soviéticos (OUN [Organização dos Nacionalistas Ucranianos] – UPA [Exército Insurgente da Ucrânia]) esperando a concessão de uma república própria.[xi]

Estas vertentes fascistas bloquearam todas as tentativas de chegar a uma solução negociada, a partir do formato introduzido em 2015 com as tratativas de Minsk. Rejeitam a reintegração do Leste como região autônoma, com direitos reconhecidos para a população de língua russa. Como sua principal bandeira é a identidade nacional, opõem-se a qualquer acordo que inclua o federalismo do Donbass.

Os direitistas vêem tal solução como uma capitulação inaceitável. Por isso, sabotaram todos os armistícios para negociar anistias mútuas e facilitar a livre passagem de civis. Em sintonia com esta belicosidade, Volodymyr Zelensky fechou três canais de televisão pró-russos e aprovou uma grande base de treinamento dos fascistas.

Mas a grande novidade do novo cenário é a decisão do próprio Putin de enterrar os acordos de Minsk, que ele encorajou anteriormente como o marco mais adequado para avançar rumo à neutralidade da Ucrânia. Em vez de preservar este contexto para reunificar o país, reconheceu as duas repúblicas autônomas do Leste (Donetsk e Lugansk).

Ninguém sabe se esta solução é a preferida de ambas as populações, posto que a consulta sobre sua opção nacional segue pendente. Tal como na Crimeia, Putin define primeiro o estatuto de uma região, e depois complementa essa condição com algum procedimento eleitoral.

Mas, neste caso, o líder de Moscou não se limitou a disponibilizar a entrada limitada de tropas para proteger a população de língua russa. Tal ação seria compatível com a continuação das negociações de Minsk. Apenas reforçava essas tratativas com garantias para a segurança do setor mais vulnerável. Optou por um curso completamente diferente de uma invasão geral do território ucraniano, atribuindo ao Kremlin o direito de derrubar um governo adverso. Essa decisão é injustificável e funcional para o imperialismo ocidental.

 

O desprezo pelo povo

Os Estados Unidos comandam o lado agressor e a Rússia o campo afetado pelo cerco de mísseis. Mas esta assimetria não justifica qualquer resposta dos agredidos, nem determina o caráter invariavelmente defensivo das reações de Moscou. No campo militar, a validez de cada medida depende de sua proporção. Este parâmetro é essencial para avaliar os conflitos bélicos.

A Rússia tem o direito de defender seu território da intimidação do Pentágono, mas não pode exercer esse atributo de qualquer maneira. A lógica dos confrontos militares inclui certas diretrizes. Não é admissível, por exemplo, exterminar um batalhão rival por alguma pequena violação da trégua entre as partes.

É verdade que o fornecimento de armas a Kiev por parte do Pentágono aumentou no período recente, juntamente com perigosas negociações para o país aderir à OTAN. Mas a Ucrânia não deu esse passo, nem instalou os mísseis que atemorizam Moscou. As milícias fascistas mantiveram sua escalada, mas sem se envolverem em agressões de maior alcance. A decisão de invadir a Ucrânia, cercar suas principais cidades, destruir seu exército e mudar seu governo não tem qualquer justificação como ação defensiva da Rússia.

Vladimir Putin demonstrou um enorme desprezo por todos os habitantes do Oeste ucraniano. Ele nem sequer registra quais são os desejos dessa população. Mesmo que Volodymyr Zelensky comandasse o “governo dos drogados” que denunciou, caberia a seus eleitores decidir quem deve substituí-lo. Essa decisão não é uma atribuição do Kremlin.

Nenhuma população do Oeste da Ucrânia simpatiza com os gendarmes enviados por Moscou. A hostilidade em relação a estas tropas é tão evidente que Putin nem sequer tentou a habitual pantomima de apresentar sua incursão como um ato solicitado pelos cidadãos do país invadido. Seu ataque suscitou pânico e ódio em relação ao ocupante. Essa mesma rejeição da incursão russa é verificada em todo o mundo. Foram realizadas manifestações de repúdio em inúmeras capitais, sem que tenham surgido atos contrapostos, de apoio ao exército de Moscou.

Putin ignorou a principal aspiração de todos os envolvidos no conflito por uma solução pacífica. Antes da invasão, o próprio governo de Kiev enfrentava uma grande rejeição interna à sua escalada bélica. Houve inclusive indícios de grande oposição à adesão à OTAN e à subsequente redefinição da Declaração de Soberania (1990) e da Constituição (1996) do país[xii]. Estes objetivos pacifistas devem competir agora com a direita belicista, que exige uma resistência ativa contra a invasão russa.

Durante muitos anos Washington, Bruxelas e Kiev sabotaram a saída negociada, que atualmente também é atropelada por Moscou. Putin subiu no comboio belicista porque ignora os desejos dos povos envolvidos no conflito. Guia sua ação pelos conselhos da alta burocracia, que governa numa relação conflituosa com os milionários russos.

Sua invasão destina-se também a arregimentar a população do Leste da Ucrânia. O reconhecimento desta autonomia demorou oito anos, em contraste com a fulminante anexação da Crimeia. Evitou a repetição desse precedente devido ao protagonismo inicial do movimento radicalizado de milicianos locais que derrotou os direitistas.[xiii]

Esses combatentes propiciaram a criação de uma “república social” e atuaram muito brevemente sob o comando de um líder apelidado de Che Guevara de Lugansk. Levantaram bandeiras de esquerda, reivindicaram o mundo soviético e retomaram a tradição bolchevique com recitações da Internacional.[xiv] Para neutralizar este radicalismo, Putin forçou desalojamentos de edifícios e o abandono de barricadas, enquanto monitorava o desarmamento das milícias e o castigo de seus dirigentes.[xv]

Quando conseguiu impor sua autoridade, congelou o estatuto das duas repúblicas (que mantiveram a designação simbólica de “populares”), à espera de um resultado favorável das tratativas de Minsk. Repetiu a conduta de seus antecessores, que sempre negociaram nas cúpulas, desmantelando os movimentos radicais. Após vários anos, optou agora por um novo curso de ação, tão irrefletido como o anterior.

Com a invasão da Ucrânia, o Kremlin favorece todos os mitos da democracia ocidental, que tinham caído em desgraça pelos fracassos que acumula o Pentágono. Putin deu a Washington o que precisava para reconstruir as falácias ideológicas deterioradas pela devastação do Afeganistão ou Iraque. Sua aventura permite reavivar a contraposição entre a democracia ocidental e a autocracia russa. O Kremlin é mais uma vez insultado com exaltações idílicas do capitalismo. O ressurgimento desta ficção é um resultado direto da incursão russa.

A invasão também deu um impulso externo imprevisto ao nacionalismo ucraniano. Putin alimenta esse sentimento, numa nação historicamente traumatizada pela presença opressiva dos czares e pelas disputas com as forças austro-húngaras e polacas. Qualquer que seja o resultado geopolítico final da invasão, seu impacto nas lutas populares e na consciência popular é terrivelmente negativo. E esse parâmetro é a principal referência que adotam os socialistas para julgar os acontecimentos políticos.

 

A denúncia da OTAN

A incursão de Vladimir Putin suscitou condenações que omitem a denúncia complementar da OTAN. Ambas as abordagens estão presentes em muitos pronunciamentos da esquerda, mas são posições minoritárias, face à rejeição unilateral da ação do exército russo.

Basta observar as palavras de ordem que prevalecem nas manifestações de rua para corroborar esse clima. Os meios de comunicação são os principais artífices da ocultação do imperialismo norte-americano. Sublinhar esta culpabilidade é uma prioridade do momento. Os discursos em voga descarregam toda a artilharia contra “o expansionismo russo”, encobrindo a dominação imperial dos capitalistas. A democracia, a civilização e o humanitarismo dos Estados Unidos são exaltados, omitindo o fato de que suas tropas pulverizaram o Iraque e o Afeganistão.

Basta comparar o pequeno número de baixas que prevaleceu até agora na Ucrânia com os massacres imediatos consumados pelos bombardeios do Pentágono nesses países, para mensurar o grau de selvageria que acompanha as ações da OTAN. Esse organismo também demoliu a Iugoslávia, até transformá-la em sete repúblicas balcanizadas.

A França não pode exibir melhores credenciais após a sangria perpetrada na Argélia. E ao cabo de seu longo histórico de matanças na Ásia e África, a Inglaterra tem pouca autoridade para levantar o dedo.

A guerra na Ucrânia já convulsiona novamente a Europa num cenário traumático de refugiados. Para frear esta tragédia, é necessário retomar um caminho de paz, baseado no desmantelamento da principal maquinaria bélica do continente.

Nenhuma distensão durará enquanto a OTAN continuar moldando a Europa como uma grande fortaleza de bases militares. Os Estados Unidos definem ações, realizam operações secretas e administram dispositivos de guerra como se o Velho Continente fizesse parte de seu próprio território. O fim desta ingerência, a retirada dos marines e a dissolução da OTAN são exigências indispensáveis para todos os defensores da paz.

Os servidores do imperialismo norte-americano silenciam estas exigências e utilizam a rejeição da invasão da Ucrânia para intensificar sua campanha contra os “conquistadores russos”. Na América Latina, denunciam a “infiltração” de Moscou com um roteiro retirado da Guerra Fria. A direita em Washington já força uma nova lei de “segurança hemisférica” a fim de aumentar a presença do Pentágono ao sul do Rio Grande. Propõem afiançar o estatuto da Colômbia como principal aliado extra-OTAN.

Todas as fantasias espalhadas pela Casa Branca sobre a influência esmagadora da Rússia são infundadas. A presença econômica de Moscou na América Latina é irrelevante quando comparada com o dominador estadunidense e com o pujante rival chinês.

As poucas missões militares dessa potência foram insignificantes em comparação com os exercícios habituais dos marines com os exércitos da região. Nem mesmo as vendas de armas russas na América Latina atingiram a centralidade que têm em outras periferias do planeta. O impacto dos comunicadores relacionados com Moscou é também irrisório frente ao colossal predomínio informativo de Washington.

Mas o Departamento de Estado pretende aproveitar a comoção criada pela invasão da Ucrânia para relançar sua ofensiva contra os governos que não cumprem suas ordens. Aspira a recompor o Grupo de Lima, ressuscitar a OEA, neutralizar a CELAC, reverter as derrotas eleitorais da direita, contrapor o descrédito dos Estados Unidos durante a pandemia e retomar as conspirações contra a Venezuela e Cuba.

De imediato, Washington encoraja as denúncias da incursão russa sem qualquer menção à OTAN. Seus diplomatas trabalham para obter tais pronunciamentos dos ministérios das relações exteriores latino-americanos. Contam com o caloroso apoio dos governos de direita (começando pela Colômbia, Uruguai e Equador), mas também procuram a adesão dos progressistas mais sensíveis à sua pressão. As primeiras declarações de Boric estão de acordo com a direção propiciada pela Casa Branca e contrastam com a neutralidade sugerida por Lula e López Obrador.

A Argentina é um caso à parte. Alberto Fernández vociferou contra os Estados Unidos em seu encontro com Putin, depois adotou uma posição equidistante e finalmente juntou-se à condenação da Rússia sem qualquer menção à OTAN. Em apenas alguns dias, adotou todas as posturas imagináveis, confirmando que lhe falta uma bússola e que molda sua política externa às tratativas com o FMI. Por esta subserviência ao Fundo, é uma presa fácil de Washington.

 

As condições para a autodeterminação

A crítica à operação de Vladimir Putin é inevitável em qualquer pronunciamento da esquerda. Mas este posicionamento deve ser precedido por uma contundente denúncia do imperialismo norte-americano, como principal responsável pela escalada da guerra. Esta agressão não justifica a resposta militar do Kremlin, que é muito contraproducente para todos os projetos de emancipação. O apoio a essa operação é autodestrutivo e conspira contra a batalha pela democracia, igualdade e soberania das nações.

Putin não se limitou a justificar sua incursão como uma ação defensiva contra a OTAN. Este argumento é insuficiente para explicar a resposta desproporcionada da invasão, mas tem alguma base válida. O chefe do Kremlin foi além desta avaliação e assinalou que a Ucrânia não tem o direito de existir como nação. Tal caracterização coloca sua operação em outro plano, ainda mais inaceitável de impugnação do direito de um povo a decidir seu destino.

O líder de Moscou considera que a Ucrânia nunca foi uma verdadeira nação separada da matriz russa. Afirma que assumiu este caráter artificial por obra dos bolcheviques, que, em 1917, lhe concederam um maligno direito de separação. Este atributo assumiu posteriormente um formato constitucional de união voluntária das repúblicas soviéticas. Putin culpa Lenin por este fracionamento do território russo e acredita que Stalin convalidou o mesmo erro ao preservar uma regra que tolerava a autonomia federativa da Ucrânia.[xvi]

Esta abordagem de Putin contém uma reivindicação implícita do modelo opressivo anterior do czarismo. Este esquema baseava-se na dominação exercida pela Grande Rússia sobre uma vasta configuração de nações. Lenin lutou contra essa “prisão dos povos” que impedia muitas minorias de gerir seus recursos, desenvolver sua cultura, utilizar seu idioma e criar seu caminho nacional.

A resistência contra tal opressão alimentou a grande batalha que levou ao surgimento da União Soviética. O direito das nações oprimidas à sua própria autodeterminação era uma exigência comum, com as exigências de paz, pão e terra que desencadearam a Revolução de 1917. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi proclamada como uma convergência livre e soberana dessas nações.

Agora Putin rejeita esta tradição e ignora a identidade da Ucrânia, que é o antípoda do artifício a que o líder do Kremlin se opõe. Esse país tem uma longa e dramática trajetória nacional, alimentada pelas tragédias vividas nas guerras mundiais e na coletivização forçada.

Tal como em outras partes do mundo, a autodeterminação nacional discutida na Ucrânia não é uma aspiração sagrada, suprema, nem é mais válida do que as demandas sociais e populares. É claramente utilizada pela direita para impulsionar o nacionalismo e os confrontos entre os povos. Mas Putin não se opõe a esta manipulação reacionária, mas ao próprio direito à existência de um país.

Essa postura retrata a faceta mais regressiva de sua operação militar. Salienta que sua incursão não é apenas determinada pela queda de braço com a OTAN, nem obedece unicamente a motivações defensivas ou geopolíticas. Deriva também de um atributo despótico, que Moscou atribui a si mesmo, alegando que a Ucrânia pertence ao seu raio territorial.

Os ucranianos do Oeste e do Leste têm o mesmo direito que qualquer outro povo de decidir seu futuro nacional. Mas a autodeterminação será apenas um enunciado declamatório enquanto as forças associadas à OTAN e as tropas russas mantiverem sua presença no país.

A primeira condição para avançar no sentido da soberania real da Ucrânia é o restabelecimento das negociações de paz, o acordo sobre a saída dos gendarmes estrangeiros de ambos os lados e a posterior desmilitarização do país, com um estatuto internacional de neutralidade. A esquerda de muitas vertentes e países comprometeu-se com esta dupla batalha contra a OTAN e a incursão russa.

*Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).

Tradução: Fernando Lima das Neves

 

Notas


[i] Marcetic, Branko, “Basta ya de juegos peligrosos con Rusia”, 31/12/2021, https://vientosur.info/basta-ya-de-juegos-peligrosos-con-rusia/.

[ii] Tooze, Adam, “El desafío de Putin a la hegemonía occidental”, 29/01/2022, https://www.sinpermiso.info/textos/el-desafio-de-putin-a-la-hegemonia-occidental.

[iii] Rodríguez, Olga, “Fuck the European Union?”, 03/02/2022, https://www.eldiarioar.com/mundo/fuck-the-european-union-diez-anos-politicas-coherentes-eeuu-ucrania_129_8709451.html.

[iv] Hudson, Michael, “Ucrania: los Estados Unidos quiere evitar que Europa comercie con China y Rusia”, 12/02/2022, https://rebelion.org/con-el-pretexto-de-la-guerra-en-ucrania-los-estados-unidos-quiere-evitar-que-europa-comercie-con-china-y-rusia/.

[v] Reed, Stanley, “Crisis con Ucrania: ¿qué pasa si Rusia le corta el gas natural a Europa?”, 01/02/2022, https://www.clarin.com/mundo/crisis-ucrania-pasa-rusia-corta-gas-natural-europa-_0_4xZCm7RUll.html

[vi] Montag, Santiago, “Ucrania en el tablero mundial”, 02/01/2022, https://www.laizquierdadiario.com/Ucrania-en-el-tablero-mundial.

[vii] Kagarlitsky, Boris, “On Ukraine”, entrevistado por Antoine Dolcerocca e Gokhan Terzioglu em 24 de maio de 2015, http://democracyandclasstruggle.blogspot.com/2015/05/boris-kagarlitsky-on-ukraine.html.

[viii] San Vicente, Iñaki Gil, “Es el primer golpe de una política defensiva rusa”, 24/02/2022, https://www.resumenlatinoamericano.org/2022/02/24/ucrania-inaki-gil-de-san-vicente-es-el-primer-golpe-de-una-politica-defensiva-rusa/.

[ix] Poch de Feliu, Rafael, “La invasión de Ucrania”, 22/01/2022, https://rebelion.org/la-invasion-de-ucrania/.

[x] Ishchenko, Volodymyr, “Ucrania se enfrenta a una crisis, pero la guerra no es inevitable”, 13/02/2022, https://www.jacobinmag.com/2022/02/us-russia-nato-donbass-maidan-minsk-war.

[xi] Burgos, Tino, “Tambores de guerra”, 08/02/2022, https://vientosur.info/tambores-de-guerra-se-oyen-por-el-este/.

[xii] Ishchenko, Volodymyr, “Ukrainians are far from unified on NATO: let them decide for themselves”, 1 jan. 2022, https://lefteast.org/ukrainians-far-from-unified-on-nato/.

[xiii] -Kagarlitsky, Boris (2016), “Ukraine and Russia: Two States, One Crisis, International Critical Thought”, 6: 4, 513-533.

[xiv] Williams, Sam. “Is Russia Imperialist?”, jun. 2014, https://critiqueofcrisistheory.wordpress.com/is-russia-imperialist/.

[xv] Kagarlitsky, Boris. “New Cold War. Ukraine and beyond”, 13 de abril de 2014, https://newcoldwar.org/category/articles…/boris-kagarlitsky.

[xvi] Putin, Vladimir, 23/02/2022, https://www.sdpnoticias.com/opinion/el-discurso-completo-de-vladimir-putin-contra-ucrania-culpa-a-lenin/.

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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR* Os reais interesses da classe trabalhadora e os desafios para a construção de uma sociedade efetivamente justa, igualitária e humana não estão incluídos no debate do PL da Uberização 1. Muitas têm sido as manifestações contra o PL da Uberização (PLP 12/24) vindas de setores conservadores e liberais (entidades, movimentos e personalidades) e isto tem causado certa perplexidade em alguns setores da esquerda. Já ouvi dizer que como estes segmentos estão se posicionando contrários ao PL, então o que cabe à esquerda é ser a favor. Uns admitindo que o apoio estaria vinculado à necessidade de se buscar algum aprimoramento, mas, por certo, sem alterar a essência; e, outros, concluindo, desde já, que o projeto apresentado foi o melhor que se pode fazer e o único capaz de ser aprovado nas condições adversas impostas pela composição ideologicamente desfavorável do Congresso. Já outros, mais aderentes à base de sustentação política do governo, afirmam que os conservadores e liberais são contrários porque não querem admitir os grandes avanços preconizados no PL, no que diz respeito aos direitos garantidos aos trabalhadores. Dito de outro modo, a contrariedade de representantes desses vieses ideológicos seria prova suficiente do quanto é positiva a proposta apresentada pelo governo. Não faltam também aqueles(as) que compreendem que a contrariedade de conservadores e liberais ao projeto não passa de um ato político, uma oposição para enfraquecer o governo, advertindo que qualquer crítica ao PL, vinda de onde vier, representa uma forma de alimentar a oposição e enfraquecer o governo. De outro lado, ainda no campo da esquerda, sustenta-se que a oposição ao PL é mero jogo de cena, fruto de um oportunismo, qual seja, o de se colocar contra uma proposta que, no fundo, atende aos interesses dos que se posicionam contrários, pois, com esta estratégia, buscam, de fato, evitar que, no debate congressual, a proposta ganhe rumos diversos daqueles que foram inicialmente pronunciados e até mesmo para que se possa ir além, no sentido da ampliação da regulação para proposta outras categorias de trabalhadores e trabalhadoras. Ao me deparar com todas essas avaliações, não tenho como deixar de reiterar as preocupações há muito (e de forma reiterada) manifestadas, no aspecto do quanto o raciocínio moldado pela lógica dos resultados, sobretudo quando induzido por cálculo eleitoral ou pela preocupação da manutenção da dita “governabilidade”, tem nos impedido de promover análises objetivas e debates efetivamente envolvidos e comprometidos com a construção de uma realidade social, econômica e política mais condizente com a condição humana, tomadas pelos pressupostos da liberdade e da igualdade reais. 2. O poder de reflexão é algo que exige ser exercitado. Na atrofia mental, ele se perde. No estado abstinência intelectiva todo tipo de raciocínio, mesmo desprovido de lógica ou empiria, incluindo os de cunho negacionista ou baseados em discursos de ódio, apresenta-se como válido e da mesma ordem de grandeza de qualquer outro. Este, aliás, é o grande problema de se colocar, em primeiro plano, a defesa abstrata da liberdade de expressão, fazendo com que a preocupação com o conteúdo fique completamente fora das discussões. A questão é que a censura, em si, não é promotora do conhecimento. E o maior problema é que quando a preocupação com o conhecimento é desprezada ou afastada pela circunstância emergencial de se priorizar a criação de um obstáculo ao advento de algo considerado ainda pior (lógica do mal menor), o compromisso com o real e a busca do saber se esvaem, sobretudo, quando, para cumprir esses objetivos, apresentam-se, como razoáveis e inexoráveis, argumentos retóricos e, assumidamente, falseados, desprovidos de lógica e coerência. Este é o processo pelo qual o irracional tem apontado o que seria ainda mais irracional, para se fazer racional. Tomando por base a política nacional há muito vigente, o Partido dos Trabalhadores, dentro da sua preocupação de se apresentar como um partido de esquerda, mas que, concretamente, apoiado na estratégia de conciliação de classes, reproduz e reforça a lógica neoliberal que é de interesse da classe dominante, precisa da criação de uma ameaça conservadora, para se apresentar como o avanço possível. Mas como esta é a própria lógica da sua existência, o PT necessita da nomeação de um inimigo concreto e que represente efetiva ameaça. Foi assim que antes se alimentava do fantasma do PSDB, e, agora, é dependente do bolsonarismo. O problema é que, neste contexto, a retórica ganha vida e a própria ameaça criada toma forma concreta e se retroalimenta toda vez que as argumentações falseadas para combatê-la transparecem. Quando o irracional dominante atrai novas irracionalidades, com as quais se rivaliza, o que se estabelece é um círculo vicioso em direção á barbárie. As guerras estão aí para demonstrar isso… Os antagonismos, quando fogem de qualquer preocupação com o real e a produção do conhecimento, desenvolvendo-se no plano da conveniência e da dissimulação, estimulam a naturalização do absurdo. Nesta roda que se move para trás, até mesmo os negacionismos, terraplanismos e discursos de ódio ganham força. Quando se diz, por exemplo, que o autoritarismo é necessário para defender a democracia ou que qualquer ato e argumentos são válidos para combater o fascismo, o que se consegue é apenas atrair o autoritarismo e o fascismo para uma rivalidade no mesmo plano. Este, ademais, é o grande risco de conferir o título de herói a quem comete arbitrariedades em nome da defesa da democracia, deixando-se de lado, inclusive, a essencial discussão de que democracia, afinal, se está falando. Que democracia está sendo defendida, para quais sujeitos e com quais objetivos? 3. Os reais interesses da classe trabalhadora e os desafios para a construção de uma sociedade efetivamente justa, igualitária e humana não estão, definitivamente, incluídos neste debate. Fato é que, diante da fragilidade ideológica que direciona as ações e pensamentos do atual governo, o que se verifica é o aumento do risco de volta do fascismo, que, inclusive, se apresenta como defensor da liberdade. E assim, numa aspiral de retrocessos, caminhamos em direção ao caos. O PL da uberização e os argumentos para a sua defesa demonstram bem o processo em curso, como já destacado em vários outros textos. Importa, agora, explicitar como a utilização estratégica da contrariedade de conservadores e liberais contra o projeto para defender o governo é uma forma ainda mais aprofundada desse “epstemicídio”. Vale perceber que nas manifestações sobre a contrariedade conservadora e liberal ao PL, acima expostas, não há nenhuma tentativa de compreender as razões efetivas pelas quais a contrariedade se explicitou, da qual geraram, inclusive, mobilizações de rua de muitos motoristas. As reações às contrariedades rejeitam qualquer grau racionalidade aos opositores e transferem para estes a sua própria racionalidade. Na lógica dos defensores do PL, se o PL avança em direitos e alguém é contra é porque ou não entendeu bem o PL ou o é porque quer sua intenção é impedir que os avanços sejam consagrados ou que o governo obtenha proveito político com a aprovação do PL. Esta avaliação representa uma total abstinência analítica. A primeira grande constatação que se precisa realizar e que explícita essa abstinência diz respeito ao movimento de colocar como um mesmo objeto, PL e governo, fazendo com o que coloque em debate é a governabilidade e não a pertinência do conteúdo do PL. O que importa, concretamente, é a discussão acerca do conteúdo do PL e seus possíveis efeitos na realidade concreta das relações de trabalho. Mas, o que estas avaliações vislumbram é impedir desgastes à governabilidade. Então, nesta perspectiva passa a ser preciso dizer que as objeções ao PL são da mesma ordem, ou seja, que não dizem respeito ao conteúdo, ou que falseiam o conteúdo e se destinam, unicamente, a desestabilizar o governo. A adoção desse método para desviar o foco do debate sobre o conteúdo pode ser constatada pelo fato de que as manifestações oficiais de defesa do PL tomam como alvo apenas os argumentos de conservadores e liberais, de modo a fazer transparecer que, de fato, a contrariedade é meramente um ato político partidário. Veja-se que a Nota das Centrais Sindicais, expedida em 05 de abril deste ano, “dialoga” apenas com as objeções vindas de conservadores e liberais, muito embora, inúmeros argumentos muito distintos contra o PL já tenham sido explicitados por acadêmicos(as), pesquisadores(as), juristas, sociólogos(as) e entidades e movimentos do mundo do trabalho, além de diversos trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo, da categoria de entregadores (os quais não aceitaram a proposta de regulação do governo, cabe lembrar), todo(as) ligados(as) ao pensamento de esquerda. Primeiro, a Nota das Centrais aprofunda o descompromisso com a realidade, quando diz, por exemplo, que “o trabalho autônomo, assim devidamente caracterizado, “passa a ser considerado como uma relação de trabalho” entre a empresa que opera o aplicativo e a pessoa que trabalha de forma autônoma”, como se a exclusão da relação de emprego, como todos os direitos daí consequente, fosse uma vantagem, ou que o PL garante “uma remuneração base de R$ 5.650,00”, quando, de fato, 3/4 desse valor, segundo os termos do próprio PL, destinam-se à reposição dos custos do trabalho, resultando em uma efetiva remuneração, pelo número de horas de trabalho indicado na referida Nota, no importe de R$1.412,00. Mas o mais grave mesmo, como dito desde o início deste texto, é a postura assumida de não tentar compreender as motivações, ligadas ao conteúdo, que levam conservadores e liberais a serem contrários a um Projeto de Lei que, como se sabe, atende aos interesses destes segmentos ideológicos. Por certo, os defensores do PL não vão reconhecer isto e aí já se tem um vício primário incontornável, que é motivador de todos os demais desvios de avaliação. Ora, o PL ao negar o reconhecimento da relação de emprego e de, consequentemente, afastar a aplicação das garantias fixadas na CLT e em todas as demais normas trabalhistas, sobretudo, constitucionais, vai na direção do que liberais e conservadores vêm preconizando a décadas e que não conseguiram levar a efeito, nem mesmo na “reforma” trabalhista de 2017, apoiada pelo governo golpista de Michel Temer, e no Projeto da Carteira Verde e Amarelo, do governo ultraliberal e fascista de Jair Bolsonaro. Ocorre que os conservadores e liberais têm efetivas razões para se posicionarem contra o conteúdo do PL e a negação proposital dessa percepção é denunciadora de uma limitação que, gravemente, há muitos anos afeta uma certa parcela da esquerda brasileira. Afinal, por que liberais e conservadores são contra o PL? Eis a questão, que precisa de uma análise mais detida, pois algumas lições e apreensões podem ser dela extraída, como veremos. 4. Primeiro, o fato de se colocarem contra um projeto de lei que atende o seu ideário está relacionado a um ideário que há muito foi abandonado por um setor da esquerda e que acabou, de certo modo, sendo apropriado pela direita: a utopia. Os governos conservadores e liberais têm sido radicais nas defesas de suas pretensões, chegando mesmo, muitas vezes, a falar em “revolução”. Fato é que estes segmentos, desde o enfraquecimento da utopia socialista, abandonaram a postura defensiva e passaram ao ataque declarado. Querem e buscam sempre mais: mais lucros; mais privilégios; mais irresponsabilidade social; mais opressão; mais exploração… Ou seja, o PL, ao não reconhecer o vínculo de emprego e afastar os direitos trabalhistas, é muito bom para os seus interesses, mas eles querem mais. Vale, inclusive, perceber que esta parte do PL não é objetada. O que se contraria são as proposições do PL em que se tentam, mesmo de forma bastante tímida, acoplar a algumas fórmulas de cunho social. No entanto, tragicamente, a rejeição a essas vinculações é mais coerente que a sua defesa. Digo tragicamente porque esta situação acaba conferindo à direita, na balança dos argumentos, uma vantagem em termos de razoabilidade. O PL e os argumentos de sua defesa são ruins também por isso. Senão, vejamos. O PL pronuncia que os motoristas são autônomos e ao se estabelecer este pressuposto o que se acolhe são os valores liberais clássicos da liberdade, do individualismo e do empreendedorismo. No entanto, de forma dissimulada, os trata como trabalhadores integrados a uma categoria que se deve mover por espírito de solidariedade e coletivamente, com o gravame de que a organização coletiva preconizada não é aquela que representa o efeito de um movimento espontâneo da categoria e sim uma vinculação imposta de cima para baixo, a partir de estruturas pré-concebidas e que estão atreladas à lógica diversa das relações de emprego. Essa previsão bipolar faz com que a rejeição à vinculação sindical aludida no PL tenha coerência e, isto, aí sim de forma estratégica, mas por culpa do próprio conteúdo do PL, alimenta e reforça a argumentação de direita contra os sindicatos, a sindicalização e a mobilização coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras, já que o artificialismo e uma captura autoritária constituem a base da vinculação desenhada. Além disso, se o PL reafirma aos motoristas que eles são geridos pela autonomia, expressão máxima da livre manifestação da vontade, estes, então, terão boas razões para acreditar que não lhes pode ser imposta contribuição social, valores pré-fixados do custo do trabalho ou mesmo limites de horas de trabalho. A incoerência do PL, ao tratar dessa figura imaginária do “autônomo com direitos”, mas direitos que, na verdade, não representam inclusão social e melhora das condições de vida e de trabalho, no plano do que se tem constitucionalmente assegurado aos trabalhadores e trabalhadoras em geral, sendo, em verdade, limitações à livre manifestação da vontade, acaba conferindo motivos suficientes para que liberais e conservadores invoquem coerência e razoabilidade para extraírem do PL tudo (ainda que seja muito pouco ou quase nada) o que transborda da condição de autonomia. Afinal, ao contrário das políticas institucionais desta esquerda burocratizada, guiadas há muito pela lógica do mal menor ou do circunstancialmente possível, a direita não se contenta com pouco. E cumpre perceber essa trágica diferença de horizontes: esta parcela da esquerda diz que o PL é o máximo a que se pode chegar (e, concretamente, já são vários passos para trás); enquanto a direita, já tendo a seu favor) os passos dados pela esquerda, vislumbra passos a mais, até onde a ganância possa alcançar, mesmo que, para tanto, se destruam vidas e o próprio planeta. Isso, aliás, nos obriga a explicitar o quanto são inviáveis os objetivos da direita. Por outro lado, não nos conduz a acreditar que apenas ser resistência à destruição possa ser o nosso horizonte para um projeto de vida e de socialização. No contexto das linhas de delimitação de horizontes previamente traçadas, da esquerda, já no máximo, e da direita, com campo a ser ampliado, o único resultado a que se pode chegar no processo legislativo, sobretudo se considerada a dita “correlação de forças no Congresso”, é do piora do PL, notadamente no aspecto da ampliação da mesma lógica de autonomia plena para outras categoriais de trabalhadores e trabalhadoras. E o pior de tudo é que tendo em mente a governabilidade, baseada na conciliação de classes, o horizonte do mal menor, o desprezo à realização de análises críticas e o abandono das utopias, o que se anuncia é que poderão vir, pelas mãos do governo e com apoio de partidos de esquerda e de entidades sindicais de trabalhadores e trabalhadoras, outras iniciativas regulatórias com a mesma lógica do combate à CLT. Talvez dessa maneira, quem sabe, o presidente Lula cumpra a sua promessa, feita na campanha, em mais um momento de descuido retórico, de revogar a “reforma” trabalhista, pois, com a aprovação do PL e a reverberação de sua racionalidade neoliberal pela voz das representações sindicais, em concreto, toda legislação trabalhista deixará de existir. Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores). [https://amzn.to/3LLdUnz] A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por ANTONIO RIBEIRO ALMEIDA JR.* Prefácio do livro recém-lançado de Felipe Scalisa de Oliveira sobre as violações de direitos humanos na Faculdade de Medicina da USP O trote universitário ocorre, literalmente, diante dos olhos dos principais pesquisadores do país e tem grande importância para a formação dos universitários. Ele é parte de um “currículo oculto”. Dadas essas condições, ele deveria ser muito estudado, mas o fato é que continua sendo um tema negligenciado. Personalidades acadêmicas de relevo falam dele como se tivessem profundo conhecimento e legítima autoridade sobre o assunto. Formulam apressadamente hipóteses sem se preocupar em testá-las por meio de estudos empíricos. A dura realidade é que poucas pesquisas buscaram descrever o contexto social e cultural desse fenômeno que resulta, com impressionante regularidade, em humilhações, exclusões, feridos e mortos. O trote produz espetáculos de preconceito e barbárie no interior dos campi, como se fosse simples celebração. Mesmo assim, a pesquisa permanece escassa. Os motivos dessa negligência acadêmica, certamente nada casuais ou louváveis, merecem uma atenção especial, pois podem revelar aspectos da cultura universitária que ainda estão na obscuridade. Durante muito tempo, o trote pareceu ser “brincadeira”, “comemoração”. As violências apareciam como casos excepcionais, obras de alguns poucos desajustados e criminosos, e não como resultados, perfeitamente previsíveis e evitáveis, de práticas persistentes e de abusos sistemáticos. Felizmente, esse tempo está chegando ao fim. Nos últimos anos, houve algum avanço nos estudos e nas publicações sobre esses temas. Grande parte do que veio a público ainda tenta encontrar alguma forma de conciliação com o universo do trote e, por isso, carece de maior significado científico. Muitos trabalhos ainda propõem os trotes culturais, ecológicos, solidários, como solução para os problemas, permanecendo imersos na cultura trotista. Mas, ao mesmo tempo, foram realizadas algumas investigações relevantes que ampliaram o entendimento desse assunto e que apontam para a necessidade de abolir essas atividades. Entre esses trabalhos, destacamos os de Antônio Zuin, Silmara Conchão, Marco Akerman e Rosiane Silva. Mais antigas, as obras de Glauco Mattoso e de Paulo Denisar Vasconcelos Fraga também foram decisivas para o esclarecimento daquilo que se passa durante os trotes. Em minha avaliação, este conjunto de autores é responsável pelo que há de melhor na literatura nacional a respeito do tema. Penso poder associar a esses trabalhos os livros e artigos que escrevi individualmente ou em parceria com o Professor Oriowaldo Queda. Pelo fácil acesso, devemos considerar cuidadosamente as importantes investigações que têm sido realizadas em Portugal por autores como Elísio Estanque, Aníbal Farias, João Teixeira Lopes, José Pedro Silva e João Sebastião. Na literatura em inglês, encontramos um conjunto um pouco mais numeroso de obras do que em português. Como ocorre com as produções em nossa língua, são expressivas as deficiências desse material em inglês e temos ainda que considerar, entre outras coisas, as diferenças dos sistemas universitários, das práticas e do significado do trote para cada sociedade. Hank Nuwer, Donna Winslow, Lionel Tiger, Stephen Sweet, Elizabeth Allan, Susan Iverson, são alguns dos autores norte-americanos de maior envergadura. Há uma vastidão de temas a explorar. Os pesquisadores brasileiros poderiam, por exemplo, conhecer melhor as leis implantadas em outros países para combater o trote. Poderíamos aprender muito com as legislações estrangeiras sobre o tema. Existem leis bastante antigas como a francesa, que data de 1903, e várias propostas recentes como tem ocorrido nos EUA. No final de 2015, enquanto esse modesto aprofundamento nas pesquisas estava em curso, foi instaurada a CPI da ALESP para investigar “violações dos Direitos Humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo”. Presidida pelo Deputado Adriano Diogo, durante quatro meses, ela coletou um conjunto abrangente de testemunhos de estudantes, professores e dirigentes de muitas faculdades e universidades paulistas. Ela revelou para o grande público um quadro assustador de abusos, comportamentos aberrantes, torturas e conivência institucional. Apesar de seu reduzido número, as pesquisas foram suficientes para que a CPI pudesse encontrar seu caminho e a hegemonia do discurso trotista foi finalmente colocada em xeque. Se considerarmos seriamente aquilo que a CPI reuniu e os resultados das melhores investigações científicas disponíveis, o trote deveria ser pura e simplesmente erradicado. Não há nada que justifique sua continuidade. Depois das conclusões apresentadas por essa CPI, a luta contra o trote ganhou força. A universidade não tem mais como tergiversar, tornou-se robusta a exigência de uma ruptura pública, inequívoca e definitiva em relação ao trote e aos grupos que o praticam. Por isso, a CPI foi um momento de transfiguração, seus resultados e questionamentos serão lembrados a cada novo incidente, a cada novo escândalo, e a universidade será levada a reconhecer que precisa mudar, tornando-se mais democrática e humana. O livro Trote & Totalitarismo: um novo relato sobre a Banalidade do Mal, de Felipe Scalisa Oliveira inova na investigação do comportamento dos grupos trotistas. Utilizando com habilidade singular as teorias de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, ele conseguiu revelar com exatidão muitas dinâmicas e motivações desses grupos, que compunham uma das mais importantes lacunas no conhecimento sobre o assunto. É próximo o parentesco entre o trote e as práticas dos nazi-fascistas. Por isso, as ideias de Arendt puderam ser aplicadas com tanto sucesso nesta pesquisa. O livro mostra, por exemplo, que as Atléticas têm um papel central nos movimentos trotistas, às custas de suas atividades propriamente esportivas. Antes de tudo, os treinos intensos são para demonstrar adesão ao grupo e não para aprimorar as habilidades corporais e mentais dos estudantes. Características desses movimentos, as competições esportivas são momentos de construção e de expressão máxima de identidades fundadas no ódio e na degradação das escolas adversárias. Homogêneas identidades coletivas construídas contra os outros e não com os outros. As competições são uma exaltação do grupo e da escola por meio de bebedeiras, hostilidades e agressões, barbarismos colocados em prática por universitários que deveriam representar o futuro da razão, do conhecimento e da capacidade para pensar. O motivo de tudo é o movimento, o trote e não o esporte. O grupo funda-se em crenças e atitudes irracionais, mas bastante eficientes para promover sua problemática coesão. Felipe Scalisa Oliveira aponta com perspicácia que o movimento é capaz de gerar um ambiente que impossibilita o livre-pensar. A sociabilidade que faria florescer o pensamento é sufocada. Essa condição é exatamente o contrário daquilo que deveria ser estimulado pela universidade. A investigação resgatou a história da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina da USP, que serviu de inspiração para muitas outras. Felipe Scalisa Oliveira descreve as origens eugenistas dessa organização, suas relações com um sentimento supremacista que se instala desde o início de suas atividades. Uma pretensa superioridade que supostamente daria direitos para agir fora e além da ordem jurídica, da racionalidade e da civilidade. Outra inovação importante é a construção do relato a partir da perspectiva das vítimas que não se submeteram ao movimento trotista, que não se tornaram cúmplices. São as vítimas que sentiram integralmente o horror que a exposição ao trote efetivamente causa. Seus testemunhos, sua organização, sua resistência, aparecem com viva dramaticidade no texto. Por este prisma, tornou-se possível mostrar ainda o mundo paralelo em que vivem os membros do movimento, que constantemente precisam inverter os fatos para poder permanecer na ficção em que se encontram aprisionados e que desesperadamente cultivam. A participação marcante de Felipe Scalisa Oliveira na CPI e sua análise dos testemunhos nela contidos abriram caminho para esta fecunda escolha metodológica.  Acompanhando e fazendo avançar as investigações de Hannah Arendt, o autor traz, para nosso debate atual a respeito do trote, um diálogo entre Santo Agostinho e Nietzsche. Essa intersecção permite vislumbrar a relação do ódio com os movimentos totalitários e com a suspensão da vontade dos indivíduos. A primazia do ódio está na origem da perda da liberdade e é instrumentalizada pelos movimentos totalitários. Banalizado, o mal emerge como resultado de uma alienação, uma ruptura, entre o ato e aquele que age. Percebemos então, com toda a força dos procedimentos filosóficos, que o trote está longe de ser mera brincadeira, apresentando-se como um inimigo ardiloso para quem o desafia ou com ele pensa brincar. Um adversário perigoso para as gestões universitárias que acreditam controlar os movimentos trotistas e, frequentemente, subestimam seus riscos. O movimento trotista pode parecer um aliado político valioso para dirigentes conservadores, mas se constitui sempre como um poder paralelo que pode, eventualmente, capturar a própria instituição. É uma grande satisfação ver um pesquisador fazer uma contribuição tão valiosa para o entendimento desse difícil tema, evitado pelos principais cientistas sociais do país, com tal desenvoltura e lucidez. Isso dentro de rigorosos padrões metodológicos e mostrando uma erudição surpreendente para alguém tão jovem. Esta obra, certamente, estimulará debates, novas pesquisas, auxiliando quem deseja conhecer cientificamente o trote universitário. Para os governantes, políticos, dirigentes da universidade, professores, funcionários e estudantes que desejarem lutar contra o trote, há muito o que refletir e aprender com este excelente trabalho. Penso que o trote causou sofrimentos e importantes perdas para Felipe Scalisa Oliveira que, em diversos momentos, foi hostilizado por membros do movimento trotista da Faculdade de Medicina da USP. Mas, em lugar de meramente sucumbir, revestido de coragem, perseverança e distinta capacidade intelectual, o autor deste livro ousou transformar estas experiências em uma brilhante análise desses movimentos que afligem e desonram a universidade brasileira. *Antonio Ribeiro de Almeida Jr. é professor titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da ESALQ/USP, autor, entre outros livros, de Anatomia do trote universitário (Hucitec). [https://amzn.to/3vxQXz2] Referência Felipe Scalisa de Oliveira. Trote e totalitarismo: um novo relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Editora Alameda, 2024, 432 págs. [https://amzn.to/4cRZiOW] A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por WILLYAN ALVAREZ VIEGAS* Apesar da fragilização da imagem de Gustavo Petro e da difícil governabilidade com o fim da conciliação e a aposta na manutenção do caráter popular e progressista do governo, no mandato de Gustavo Petro se mantém a iniciativa da agenda 1. Um ano e meio após a eleição de Gustavo Petro à presidência da Colômbia, se confirmam tanto a execução do projeto de governo popular apresentado durante a campanha, como os obstáculos prometidos pela oposição às reformas pretendidas pelo governo. Em junho de 2022 Gustavo Petro era eleito pela pequena maioria de 50,44% dos eleitores colombianos. Historicamente na América Latina, as elites liberais e conservadoras frequentemente não reconhecem vitórias eleitorais progressistas por margens pequenas como essa e recorrem à sabotagem e aos golpes brandos ou de força contra governos legitimamente eleitos, como ocorreu recentemente em países vizinhos da região. Desta feita não poderia ser diferente. O primeiro ano de Gustavo Petro no governo foi marcado pelos ataques incessantes das elites tradicionais colombianas através do poder midiático e institucional que têm por objetivo desconstruir a figura de Gustavo Petro, líder popular que permitiu a esquerda governar o país pela primeira vez na história. A política colombiana é caracterizada por um histórico domínio liberal e conservador que impediu a ascensão de líderes progressistas no Estado, em muitos casos através do uso da força. O caso mais emblemático foi o de Eliécer Gaitán, candidato com forte apelo popular que propôs reformas sociais estruturais, assassinado em 1948 para impedir sua eleição ao governo naquele ano. A partir de então as disputas políticas colombianas ficam marcadas pela forte violência e pela partilha do poder entre o partido liberal e o partido conservador, restando à grande parte da esquerda recorrer à luta armada nas décadas seguintes. Gustavo Petro foi um desses militantes. Durante os anos oitenta integrou o M-19, movimento revolucionário que buscava subverter o poder oligárquico colombiano sustentado com forte apoio dos Estados Unidos. A imagem de guerrilheiro foi extremamente explorada pelos opositores do governo e pelas grandes empresas de mídia colombianas. Em contraste, vendia-se durante as eleições a imagem de engenheiro responsável e empreendedor para o candidato direitista Rodolfo Hernández que teve pouco mais de 47% dos votos. A eleição de Gustavo Petro ocorreu ainda como um desdobramento das revoltas populares do ano anterior contra o ex-presidente Iván Duque que ficaram conhecidas como estallido social. O grande movimento que se opôs ao governo autoritário de Iván Duque conseguiu institucionalizar boa parte das suas pautas através da candidatura de Gustavo Petro. Contudo, tal candidatura foi costurada em uma ampla aliança entre os setores da esquerda com componentes de centro e direita formando a coalizão “Pacto Histórico”. A chapa foi composta também pela candidata à vice-presidência Francia Márquez, primeira mulher negra a ocupar o cargo, militante popular e advogada defensora das comunidades pobres e do meio ambiente contra os abusos das empresas mineradoras. A candidatura de Francia Márquez marcou o caráter profundamente popular a que o novo governo se propunha. Apesar de eficaz eleitoralmente em 2022, a frente ampla conformada para a eleição trouxe consigo as contradições que levariam à debilidade do governo no presente. A estratégia de conciliação da campanha de Gustavo Petro que incluiu setores da direita tradicional colombiana no Pacto Histórico mostrou rapidamente suas limitações durante o primeiro ano de mandato. Gustavo Petro optou sem hesitações por preservar o projeto popular de governo que atende aos anseios de suas bases sociais em detrimento de uma governabilidade mais estável através da manutenção das concessões aos aliados momentâneos que compuseram o Pacto Histórico. Dessa forma, Gustavo Petro levou adiante um projeto reformista de vulto que tem por objetivo avançar em amplas conquistas de direitos sociais para as camadas mais pobres do povo colombiano. 2. O primeiro ano do “governo da mudança”, slogan adotado pelo mandato, se concentrou nas propostas de reforma sanitária, trabalhista e previdenciária, principalmente, e nas políticas de pacificação e transição energética. Tais pontos são extremamente sensíveis às elites colombianas temerosas de qualquer democratização de áreas nas quais são historicamente privilegiadas. O que deu origem a uma grande oposição midiática e parlamentar desde os primeiros meses de governo. Gustavo Petro deu o tom inicial de seu governo com a apresentação da reforma tributária que teve rápida aprovação no congresso. Essa estabeleceu já para o ano seguinte a taxação da renda dos mais ricos em até 1,5% e dos bancos e instituições financeiras em 5% dos lucros. Além disso, a reforma determinou a sobretaxação de produtos nocivos à saúde, o que ficou conhecido como impostos saudáveis, e da exploração de carvão e petróleo, objetivando desincentivar o consumo e aumentar a arrecadação. Através da reforma, o governo espera aumentar a arrecadação em 20 bilhões de pesos em 2023 e destinar a maior parte desse orçamento para a política de Paz Total. A sobretaxação da exploração de carvão e petróleo também está inserida na política de transição energética proposta pelo governo. Essa prevê o fim da dependência de combustíveis fósseis em quinze anos com a redução gradual da produção desses dois combustíveis. A política se estrutura em cinco eixos principais: maiores investimentos em energias limpas e descarbonização; a substituição progressiva da demanda de combustíveis fósseis; maior eficiência energética; a revisão e eventual flexibilização da regulação para acelerar a geração de energias limpas; e a reindustrialização da economia colombiana. Para tal foi determinada a proibição da exploração de reservas não-convencionais (fracking) e a não concessão de novas licenças de exploração de reservas convencionais. A empresa Ecopetrol deverá dirigir o processo de transição energética se convertendo em uma empresa de energias limpas e renováveis. Com isso, o governo almeja a substituição da energia de origem fóssil principalmente pela solar e eólica. Essa transição se torna difícil pela grande dependência das exportações de petróleo e de carvão, que tem 95% da sua produção destinada ao mercado externo. A Colômbia possui uma reserva de 2,5 bilhões de barris de petróleo e é o 18º exportador do mundo, tendo 4% de seu PIB em royalties dessa produção, sendo 2,4% destinado aos departamentos e 1,5% para o governo nacional, o que possivelmente vai gerar atritos com as lideranças locais. Gustavo Petro teve também como uma de suas primeiras medidas a demissão de cinquenta e dois oficiais generais das forças armadas e da Polícia Nacional, boa parte ligada a violações de direitos humanos, prática extremamente recorrente nas forças de segurança colombianas. O assassinato de lideranças de movimentos sociais é um fenômeno generalizado no país. Além da repressão ilegal perpetrada pelo Estado contra os movimentos sociais e seus líderes, o cenário das lutas sociais é marcado pela presença de diversos grupos paramilitares ligados ao narcotráfico e à direita colombiana com forte presença no Estado e nos governos locais e nacionais. Essa composição de forças políticas na Colômbia explica em grande parte a relutância dos grupos guerrilheiros em depor as armas e aderir aos acordos de paz com o Estado. Frequentemente os governos nacionais abandonam os acordos, defendendo a retomada da política de enfrentamento bélico que possui forte apelo social nos setores da direita. O governo de Gustavo Petro tem como uma de suas principais propostas a política de Paz Total, através da qual foram retomadas as negociações de paz com as guerrilhas realizadas no governo de Juan Manuel Santos em 2016, cujos acordos foram violados por Iván Duque nos anos seguintes. Como primeiro resultado foi alcançado um cessar-fogo com o Exército de Libertação Nacional (ELN) de seis meses a partir de agosto deste ano e a promessa de retomada de negociações que envolvem o compromisso do governo com diversas questões sociais que compõem as reivindicações do grupo. Esse acordo foi firmado a partir das rodadas de negociação que ocorreram em Havana durante o primeiro semestre de 2023. Para a implantação da política de Paz Total foi criado o Comitê Nacional da Participação com representantes de diversos segmentos como populações dos territórios de conflito, movimentos sociais, sindicatos, empresários e movimentos de vítimas para contribuírem com propostas a serem incorporadas nas negociações dos acordos e na construção da política de Paz Total como um todo. Essa é uma importante ferramenta de diálogo social que potencializa a política de pacificação promovida pelo governo e aumenta as chances de que seja bem-sucedida. 3. Associada à política de Paz Total aparece a nova política em relação às drogas adotada pelo governo. A reversão da política de guerra às drogas, promovida pelos governos desde a década de setenta, foi proposta por Gustavo Petro após cinco décadas de fracassos no combate ao narcotráfico. A guerra às drogas foi um dos principais instrumentos de intervenção dos Estados Unidos na região a partir do governo Richard Nixon em 1971. Os tratados com a Colômbia deram amplos poderes às agências americanas para operarem no território do país sul-americano desde a década de oitenta, possibilitando a intervenção direta e tornando a Colômbia o principal aliado militar dos Estados Unidos na América Latina com a abertura de diversas bases americanas em seu território. Gustavo Petro já no seu discurso de posse apontou para a desconstrução da política de guerra às drogas sinalizando a desarticulação do combate baseado na repressão militar à produção e ao comércio de maconha e cocaína. Em contraposição, o governo passou a encarar o problema principalmente como uma questão de saúde pública e de desenvolvimento no campo. Internacionalmente se posicionou contra a política defendida pelos governos dos Estados Unidos na cúpula do G-20 e nas duas últimas Assembleias Gerais da ONU. Contudo, o projeto de descriminalização e regulamentação do uso e comercialização da cannabis apresentado ao congresso colombiano foi arquivado após chegar à oitava e última rodada de debates no Senado. As mudanças na política de drogas ficam restritas, por enquanto, às iniciativas do governo que não dependem de mudanças legislativas, como a diminuição de operações policiais para o combate ao narcotráfico e a busca pela substituição voluntária dos cultivos. Outro problema associado ao cultivo de ilícitos na Colômbia que está sendo enfrentado pelo governo de Gustavo Petro é a questão agrária. O país possui uma altíssima concentração de terras. 75% das terras produtivas correspondem a pouco mais de 2% dos propriedades e apenas 5% da população detém 87% das terras agricultáveis, segundo o último censo agropecuário do país. Dessa forma, muitos pequenos produtores em áreas isoladas acabam entrando para a cadeia de produção de drogas ilícitas através do cultivo da coca, planta tradicional da região andina, e da maconha. O combate à desigualdade no acesso à terra se torna, portanto, essencial para que os pequenos agricultores não fiquem submetidos ao narcotráfico que controla seus territórios. 4. Objetivando a ampliação do acesso à terra pelos camponeses do interior do país, o governo iniciou um processo de distribuição de títulos fundiários a famílias somando inicialmente 681 mil hectares. O governo vem adquirindo terras improdutivas através da compra em negociação com latifundiários para disponibilização dessas terras para a reforma agrária. Passo importante, porém, ainda muito aquém do necessário para a mudança na estrutura fundiária do país essencial para o combate à fome e à profunda desigualdade que atinge as populações rurais no país. A desigualdade entre as populações rurais e urbanas é um problema que aparece nas diversas propostas de reforma apresentadas pelo governo desde sua posse, como a reforma trabalhista. Essa prevê a formalização do trabalho rural, ainda não incluído na legislação laboral. Além da questão do trabalho rural, a proposta de reforma levada ao Congresso pelo Ministério do Trabalho, reúne noventa e dois artigos que buscam ampliar os diretos trabalhistas do povo colombiano. Estes se concentram na formalização e estabilidade do emprego, no estabelecimento das jornadas diurnas e noturnas, em pagamentos adicionais por domingos e feriados, na diminuição da terceirização e dos contratos temporários, na formalização dos trabalhadores de plataformas digitais, no aumento da licença paternidade e na igualdade salarial de gênero. A reforma sofre forte oposição dos setores liberais e conservadores no Congresso apoiado por entidades patronais e grupos representantes do agronegócio. Essa é a segunda tentativa de reforma trabalhista apresentada pelo governo, já que a primeira foi derrotada no período legislativo anterior no primeiro semestre. A reforma que possuiu maior avanço até o momento foi a sanitária. Apesar de ainda se encontrar em tramite, 82 dos 143 artigos da reforma já foram aprovados e esta segue avançando no Congresso. A reforma sanitária se concentra na ampliação do acesso aos serviços de saúde para uma enorme parcela da população que se encontra aquém da atenção básica. Para tal, prevê o fortalecimento do Sistema Geral de Saúde da Previdência Social para torná-lo universal com foco na prevenção, através de uma rede de Centros de Atenção Primária de Saúde (CAPS) em todo o território com atendimento ambulatorial, emergência, hospitalização, reabilitação, exames laboratoriais e programas de saúde pública. A reforma inclui a diminuição da desigualdade do acesso aos serviços de saúde com o estabelecimento de um CAPS para cada 25 mil habitantes; a criação de um sistema de prevenção de enfermidades, a extinção das Entidades Promotoras de Saúde (empresas que intermediam a prestação de serviços aos cidadãos); a qualificação e acompanhamento de órgãos internacionais, como a OMS e OPAS; a padronização dos valores dos serviços privados; e melhoras nas condições laborais para os profissionais de saúde como qualificação, aumento salarial e autonomia médica. Outro pilar da seguridade social, a previdência também é objeto de reforma pelo governo Petro. A reforma pensional objetiva principalmente a ampliação da cobertura do sistema que hoje mantém uma enorme parcela dos idosos sem acesso à aposentadoria. Através da reforma, todos os contribuintes passariam para o sistema público Colpensiones que seria mantido pelo orçamento público e pela contribuição empresarial e dos próprios trabalhadores. A reforma se estrutura em três pilares: o contributivo, descrito acima, o semicontributivo, para aqueles que chegaram aos 65 anos sem cumprir os requisitos da aposentadoria e o pilar da poupança voluntária que permite ao trabalhador a poupança nos sistemas público ou privado. A reforma segue em tramite no Congresso caminhando para a sua segunda rodada de debates. O conjunto de reformas levadas ao Congresso obviamente trouxe um grande desgaste para o governo durante esse um ano e meio de mandato. As oligarquias rurais, as elites industriais e do setor de serviços, o capital financeiro, comandantes das forças armadas e polícias, lideranças religiosas conservadoras e os principais conglomerados midiáticos desencadearam uma forte oposição às reformas e ao governo de Petro. Iniciaram uma campanha constante de desconstrução de sua imagem tentando repetidamente ligá-lo a escândalos de corrupção. Tática extremamente recorrente contra as lideranças populares na América Latina. 5. Dois episódios em especial trouxeram enorme desgaste ao governo. O caso envolvendo possíveis gravações do embaixador colombiano na Venezuela e o outro sobre o filho de Gustavo Petro, Nicolás, que supostamente teria recebido financiamento ilegal de campanha para o pai. Esses dois episódios, fortemente explorados pelas empresas de mídia de oposição, causaram uma significativa redução do apoio popular ao governo. Esse abalo na imagem do governo e a forte oposição das lideranças locais se refletiu na derrota dos candidatos governistas nas eleições regionais de outubro de 2023. Dos 32 departamentos colombianos, apenas nove foram ganhos por candidatos que se mantêm no Pacto Histórico. E nas 1.100 prefeituras, apenas 21 candidatos apoiados pelo governo foram eleitos. Esse resultado reflete a enorme dificuldade do governo após o racha da coalizão que o levou à eleição no ano passado. O fim da coalizão se deu com a reforma ministerial promovida pelo governo em abril, após a resistência à aprovação da reforma sanitária, que incluiu a substituição da própria ministra da saúde e de outros seis ministros. Essa reforma foi o ponto final na adesão de figuras liberais e conservadoras ao governo. Após esse episódio, Gustavo Petro convocou grandes manifestações de massa em primeiro de maio para aprovação das reformas colocando o apoio popular como fiel da balança, estratégia eficaz até o revés envolvendo seu filho nos últimos meses. Apesar da fragilização da imagem de Gustavo Petro e da difícil governabilidade com o fim da conciliação e a aposta na manutenção do caráter popular e progressista do governo, no mandato de Gustavo Petro se mantém a iniciativa da agenda. O crescimento do PIB em torno de 1% em variação anual e uma queda na inflação que ainda se mantém em um patamar alto de 10,48% ao ano reforçam os desafios do combate à desigualdade extrema da sociedade colombiana através da aprovação das reformas promovidas pelo governo, da transição energética planejada, da política de pacificação conjugada ao combate à fome e a promoção do acesso à terra e a neutralização dos ataques incessantes das elites econômicas, midiáticas e políticas. Willyan Alvarez Viegas é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicado originalmente em Recortes da conjuntura, vol. I, no. 1. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por GERSON ALMEIDA* Quem de nós homologaria um acordo deste jeito? A pergunta do corregedor ecoou no plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em meio à leitura feita pelo juiz Luiz Felipe Salomão do resultado de seis meses de trabalho da corregedoria junto à 13ª Vara Federal de Curitiba, comandada por Daniela Hartz, a juíza que substituiu Sérgio Moro, quando esse renunciou ao cargo de juiz para assumir o Ministério da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. O acordo investigado “foi construído de forma sigilosa e ilegal”, sendo que o ex-juiz, Sérgio Moro, a juíza Daniela Hartz e o ex-procurador da república, Deltan Dallagnol, então coordenador da Lava-Jato, teriam “atuado de forma proativa e assumiram de forma indevida o papel de representantes do Estado brasileiro junto à Petrobras e aos norte-americanos”, conforme relatório da Polícia Federal divulgado pelo site Poder360, um dos documentos que embasa a decisão do corregedor do CNJ. A decisão do corregedor está sustentada em mais de mil páginas de documentos e provas obtidos ao longo da sua inspeção, o que lhe permitiu afirmar categoricamente “que tudo era feito com sigilo absoluto, de grau 3, sem nenhuma transparência”; sendo que a análise das datas de reuniões e visitas de procuradores americanos ao Brasil confirma um minucioso preparo para “a realização deste desvio multibilionário”. Recursos que foram manipulados de forma consciente “à margem da legalidade, de forma sigilosa e sem moralidade administrativa” para burlar os verdadeiros representantes legais do país e instituir um órgão de “primeira instância como sendo o Brasil”. Depois de esmiuçar as manobras realizadas até chegar à homologação do acordo pela juíza Daniela Hartz, novamente o corregedor pausa a leitura da sua decisão e lança outra pergunta aos seus pares: “e o dinheiro que foi pago aos EUA, também foi para alguma instituição privada, ou foi para os cofres do Estado americano? Uma pergunta que, ao mesmo tempo, é uma resposta que demonstra de forma irrefutável o conluio que estava em execução, que só não foi consumado inteiramente em razão da reação do STF. O que impediu que os cerca de cinco bilhões fossem desviados do Estado e fossem destinados para a fundação privada que os investigados estavam determinados a criar. Com a fundação, eles queriam assegurar um férreo controle privado sobre esses volumosos recursos do Estado brasileiro, o que só seria possível por meio da corrupção da legalidade e da moralidade, obrigação de todos os agentes públicos. O voto do corregedor é tão rico em detalhes e tão farto em provas, que tornou o argumento da defesa de que o conluio não passou de “uma infeliz iniciativa”, numa pífia tentativa de infantilizar a juíza Gabriela e seus asseclas. Ao contrário, o corregedor demonstrou que houve uma ação consciente com vistas à apropriação de recursos públicos para uma instituição privada, pois “se combinava com o americano para se aplicar a multa lá fora para (o dinheiro) voltar e ser destinado à fundação” e a forma de viabilizar esse desvio foi o acordo homologado pela juíza Gabriela Hartz. Depois deste mergulho na “gestão absolutamente caótica” da 13ª Vara Federal de Curitiba, baseado em farta documentação comprobatória – inclusive depoimento da própria Gabriele Hartz que declarou saber não ser de sua competência – o corregedor estava plenamente preparado para afirmar que “não tenho a menor dúvida da participação da juíza no desvio do dinheiro público para a fundação desejada”. O voto foi tão vigoroso que o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do CNJ, teve que alterar o procedimento usual e votou imediatamente depois para tentar persuadir os pares e abriu dissidência ao voto do corregedor e manifestou posição contrária a todos os afastamentos, sem entrar no mérito das acusações e ressaltando o seu não conhecimento do conjunto do relatório feito pela correição do CNJ. Os argumentos de Luís Roberto Barroso em relação a Gabriela Hartz foram a falta de urgência e o fato dela não estar mais na 13ª Vara, além de ser contrário à decisões monocráticas para esse tipo de caso. Não faltou outra pitada de infantilização da atuação da juíza ao afirmar que “essa moça não tinha nenhuma mácula na carreira pra ser afastada sumariamente”, como se fosse a vida pregressa e não um caso concreto que envolve bilhões em dinheiro e uma relação com país estrangeiro à margem de lei que estivesse em análise. Mesmo que a manifestação de Luís Roberto Barroso tenha sido enfática ao ponto de caracterizar o afastamento dos magistrados de “medida foi ilegítima e arbitrária” e tenha defendido a revogação de todas, a votação no plenário lhe deu uma vantagem mínima de 8 x 7 contra a manutenção do afastamento de Gabriela Hardt e Danilo Pereira Júnior; sendo que o afastamento dos desembargadores Thompson Flores e Loraci Flores (TRF-4) foi mantido com elástica maioria de 9 x 5, em favor da posição do corregedor. Quanto a abertura de Processo Administrativo contra todos, apesar de Barroso ter pedido vistas, alguns votos favoráveis foram antecipados e a maioria construída pelo afastamento dos desembargadores do TRF-4 sugere que dificilmente deixarão de ser submetidos ao processo administrativo, durante o qual o trabalho da corregedoria deverá se impor. Em resumo, a decisão do CNJ é histórica e representa que, aos poucos, algumas das mais importantes instituições do sistema de justiça brasileiro estão retomando um funcionamento marcado pelo devido processo legal e decididas a conter os arroubos autoritários que tomaram conta da Lava-Jato e de importantes setores do judiciário brasileiro, que ainda disputam e são fortes, mas não detém mais o domínio sobre a agenda e a opinião pública que tinham outrora. *Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre, foi secretário nacional de articulação social no governo Lula 2. A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por CARLA TEIXEIRA* A decisão do de tornar ilícito o porte de qualquer quantidade de droga é negacionismo científico, racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com os problemas reais da sociedade O Senado Federal aprovou em dois turnos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), submetida pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que torna crime a posse de qualquer quantidade de substância ilícita. Na prática é uma resposta direta à decisão do Supremo Tribunal Federal que julga, desde 2015, a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas, buscando critérios para diferenciar usuários de traficantes. A proibição das drogas, especificamente da cannabis – vinculada por vários estudos históricos e antropológicos aos pretos escravizados do período colonial e imperial, e utilizada nos hospitais de alienados no início da República até que fosse proibida – é mais um expediente do racismo institucional brasileiro. Proibir e criminalizar o porte de substâncias ilícitas amplamente consumidas abre caminho para que sejam utilizadas como moeda em todo tipo de crime, da organização de milícias à invasão de terras demarcadas. Nessa direção, o Estado se converte num agente ativo para prender, matar e construir organizações criminosas essencialmente compostas por jovens negros e periféricos. Estes, sem acesso à educação e oportunidades de emprego digno, tornam-se presas fáceis das organizações criminosas que a cada dia se entranham com mais eficiência nas instituições do Estado, a exemplo do que se passa atualmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. De acordo com pesquisa de 2023 realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 68% dos réus por tráfico são negros; 72% têm menos de 30 anos e 67% não concluíram o ensino básico. Em apenas 13% dos casos há envolvimento anterior com organizações criminosas. Ou seja, é na prisão superlotada que esses quadros vulneráveis são mobilizados pelos grupos criminosos. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, contando quase um milhão de pessoas. Além do custo humano, há as expensas econômicas. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) revelou que em 2017 o Rio de Janeiro gastou quase R$ 1 bilhão na guerra às drogas, enquanto São Paulo desperdiçou R$ 4,2 bilhões. A aprovação da PEC de Rodrigo Pacheco, aliada à aprovação do projeto que extingue a possibilidade de saídas temporárias dos presídios – parcialmente vetado pelo presidente Lula por ferir os princípios da dignidade humana – aponta para um futuro temeroso de superencarceramento e prováveis rebeliões, com o crescimento das organizações criminosas e das milícias. Tais aspectos contribuem para o fortalecimento dos grupos da extrema direita que, sedutores com suas soluções fáceis para problemas difíceis, apenas têm a ganhar com uma revolta carcerária a nível nacional, uma vez explícita – mas não enfrentadas – as ligações das milícias e das organizações criminosas com quadros parlamentares e da alta burocracia do funcionalismo público. Como apontou Muniz Sodré em seu livro O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional, o racismo no Brasil é institucional e intersubjetivo. A PEC de Rodrigo Pacheco é apenas mais uma manifestação disso: negacionismo científico, racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com os problemas reais da sociedade. Essas e outras medidas evidenciam que na democracia do Brasil atual o parlamento é apenas uma Casa para lamentar. *Carla Teixeira é doutoranda em história na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.Ajude-nos a manter esta ideia.CONTRIBUA [...]
Por KATIA SANTOS* Homenagem ao lógico e professor da USP, recém-falecido As realizações de Newton da Costa nas áreas da Filosofia, da Matemática e da Lógica tornam supérflua qualquer apresentação minha dos seus méritos. Ele já está de fato consagrado dentro e fora do Brasil, e há inúmeros trabalhos dele e de comentadores à disposição de todos os que quiserem conhecer sua obra e pensamento. Existe, inclusive, um documentário, Espírito de contradição, dirigido por Fernando Severo, onde se pode ver e ouvir o professor falar por si mesmo. No entanto, pela ocasião de sua morte recente, considero importante ressaltar, em poucas palavras, alguns aspectos de sua pessoa que somente aqueles que o conheceram mais de perto saberão. Faço isso, porque a grandeza de seu espírito também se manifesta no modo como se relacionou com inúmeros pesquisadores, alunos e professores. Dentre os muitos e muitos com os quais ele travou contato teórico, estive também eu. Embora não seja afeita a narrativas autobiográficas, vejo como útil falar de alguns aspectos do meu contato com ele. Conheci o professor Newton da Costa no ano de 2015, quando realizava minha pesquisa de doutorado na FFLCH-USP, sobre uma antinomia presente nos fundamentos do pensamento de Arthur Schopenhauer. Ao refletir sobre essa questão, formei a hipótese de que ela poderia ser abordada de uma forma diferente do modo como até então tinha sido, se a lógica paraconsistente, da qual Newton da Costa foi o principal fundador, pudesse ser colocada como sua lógica de base. Sem muita certeza sobre essa possibilidade, entrei em contato com ele, para saber o que achava. Para minha grata surpresa, o professor foi receptivo à minha ideia e me convidou para conversar pessoalmente com ele sobre o assunto. Fiz isso, fui até à sua casa em Florianópolis, e conversamos sobre a questão da filosofia schopenhaueriana que eu estudava e sobre a lógica paraconsistente. Na verdade, eu não sabia à época, mas essas sempre foram características marcantes do professor Newton da Costa, a saber, a abertura de espírito, a curiosidade e o interesse genuíno em problemas filosóficos variados. A questão que eu estudava era desconhecida para ele, porque faz parte de uma temática à qual ele nunca havia se dedicado e que, a princípio, parecia estar completamente fora das suas preocupações lógicas e matemáticas. No entanto, Newton da Costa logo compreendeu as relações que eu fazia entre metafísica, teoria do conhecimento e lógica e, inclusive, apontou a lógica paraclássica como sendo, dentro do campo das lógicas paraconsistentes, talvez a que mais se adequasse à antinomia que eu estudava. Muitos schopenhauerianos e também muitos lógicos não mostraram receptividade ou mesmo compreensão semelhantes: os primeiros, por acharem que o pensamento de Arthur Schopenhauer não tratava de lógica, os segundos, por julgarem que a lógica não se liga a outras partes da filosofia. Houve reações antipáticas e até mesmo furiosas à minha pesquisa. Mas nunca houve hostilidade da parte de Newton da Costa, embora o ambiente filosófico no Brasil seja repleto de descortesia, rivalidade e agressividade entre egos muito inflados. Ele sempre soube lidar com alunos, professores, colegas e colaboradores com interesses muito diversos sem impor suas convicções, sem invalidar as pesquisas dos outros, colaborando em tudo o que estava ao seu alcance. Foi assim que ele sempre lidou comigo, desde que conversei com ele pela primeira vez. Fui em mais uma oportunidade a Florianópolis, quando finalizei meu trabalho de doutorado, para entregar uma cópia a ele, na UFSC, e desde então mantivemos contato frequente por mensagem. Embora já com idade avançada, Newton da Costa nunca deixou de pesquisar, de escrever, de se interessar por filosofia, ainda que se tratasse de algo diferente para ele. Foi assim que dialogamos bastante sobre o filósofo francês Charles Renouvier, sobre o qual ambos passamos a refletir e, inclusive, a produzir juntos. Essa era outra característica de Newton da Costa que vale a pena ressaltar, a saber, sua disposição para adentrar searas novas, para pensar e se aprofundar em temas fora da sua especialidade. Considero essa característica algo notável, porque o mais frequente é que os pesquisadores esqueçam tudo o mais no mundo e olhem única e exclusivamente para a pesquisa iniciada no mestrado ou doutorado, ficando cegos para outras temáticas. Quando isso ocorre é ruim, porque estreita a visão de mundo do indivíduo e o faz acreditar que tudo gira em torno das suas escolhas. A visão de mundo de Newton da Costa, porém, jamais foi estreita. Dentre suas principais preocupações teóricas, dizia ele, estava o problema do conhecimento em geral, e do conhecimento científico em especial. A lógica e a matemática são de fato as bases fundamentais da ciência e de todo conhecimento, e foi justamente nessas áreas que o professor atuou deixando verdadeiras obras-primas, como Sistemas formais inconsistentes e Ensaio sobre os fundamentos da lógica. Qualquer pessoa que se dedique a entender o pensamento de Newton da Costa verá a grandiosidade do que ele realizou, sobretudo quando se reflete sobre o que foi e tem sido a grande problemática da contradição na história da filosofia: o interlocutor aqui é nada menos que Aristóteles. Apesar disso, de tão grandes realizações, não se notava arrogância no seu trato com ninguém, nem ganas de superioridade. Pelo contrário, ele era acolhedor com as pessoas e perseverante na pesquisa, ciente de que a busca do conhecimento é infindável e não se faz sem colaboração. Fará muita falta. *Katia Santos, professora e pesquisadora, é doutora em filosofia pela USP. Nota Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8gKKabtLA_U. 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