Cabe buscar vias alternativas de estímulo à economia e ao mercado de trabalho, promovendo-se uma nova repactuação social com base em efetiva solidariedade
Por Jorge Luiz Souto Maior
Na
noite do dia 27 de março, o Jornal Nacional
apresentou uma reportagem com a qual pretendia disseminar a necessidade de se
fazer um agradecimento público aos trabalhadores que permanecem em atividade,
expondo sua vida em risco, para salvar a de milhões de outras pessoas. Os
trabalhadores foram apresentados como heróis nacionais. E várias reportagens de
outros veículos de informação engrossaram o coro.
Bastante justo. Mas é preciso ir muito além. Inicialmente, reitero o que disse no artigo “MP-927: Da pandemia ao pandemônio“, no sentido de formular um agradecimento às trabalhadoras e trabalhadores que, pelo fato de suas profissões estarem atreladas a atividades essenciais à preservação da vida, continuam trabalhando, pondo em risco a própria vida (e a de seus familiares), para preservar a de milhões de brasileiros e brasileiras, estando entre eles: enfermeiras(os); médicas(os); entregadoras(es) em geral, sobretudo por intermédio de aplicativos; frentistas; porteiras(os) de edifícios; atendentes em farmácias, hospitais, padarias e supermercados; jornalistas; faxineiras(os); motoristas; carregadoras(es); coletoras(es) de lixo; trabalhadoras(es) rurais; cuidadoras(es) etc.
Mas, como restou expresso no Manifesto “Pelo enfrentamento responsável dos problemas sociais e econômicos gerados pelo novo coronavírus”, firmado por diversas entidades e personalidades do mundo do trabalho, “a sociedade lhes deve não só esse agradecimento, com também o reconhecimento de sua condição humana e de seus legítimos direitos, principalmente trabalhistas e previdenciários (hoje e sempre).” A questão é que há formas devidas, do ponto de vista jurídico, de se efetivar, com eficácia e concretude, esse agradecimento.
1. É preciso lembrar
que esses trabalhadores e trabalhadoras, na sua enorme maioria, são pessoas que
ao longo dos anos foram alijadas de qualquer projeto de nação, desconsideradas
no plano da distribuição da riqueza que contribuíram para produzir e destituídas
do acesso aos meios necessários à sua progressão social. Eram, por assim dizer,
trabalhadores e trabalhadoras invisíveis, sobre os quais incidem de forma mais
acentuada as características exploratórias do capitalismo dependente,
retroalimentadas por opressão de gênero e discriminação racial. De fato, se
olharmos bem (e agora, enfim, isso fica mais evidente), essas pessoas são
pobres, negros e, em grande parte, mulheres negras, com histórico de vedação
aos direitos sociais fundamentais mínimos, notadamente: educação pública de
qualidade, saúde pública plena e eficiente, e moradia.
2. Diante até das
evidências da eminência do caos econômico gerado pela supressão do trabalho, é
imprescindível reconhecer, também para a necessária reformulação das bases de
uma organização social viável, que é o trabalho a fonte de toda riqueza. Não se
pode conceber que da divisão social do trabalho resulte a acumulação de quase
30% de toda a riqueza socialmente produzida nas mãos de 1% da população [1].
3. É fundamental lembrar que
a grande mídia que hoje formula agradecimento público a esses trabalhadores e
trabalhadoras é a mesma que, meses atrás, apoiou, incondicionalmente, as
“reformas” (trabalhista e previdenciária), que retiraram direitos dessas
pessoas, causando-lhes aumento de sofrimento e redução de renda, para alimentar
os cofres de grandes conglomerados econômicos internacionais, reproduzindo
fórmulas neoliberais colonizadoras e destruidoras de um projeto mínimo de nação
brasileira.
4. Tomando em
perspectiva mais ampla o papel histórico e estrutural do trabalho na sociedade,
há se compreender a importância também de todos os trabalhadores e
trabalhadoras cujas atividades foram obrigatoriamente interrompidas neste
momento.
5. Levando a efeito
concreto os agradecimentos formulados e o reconhecimento da importância dos
esforços e a dedicação de todos esses trabalhadores e trabalhadoras, rechaçar a
adoção das medidas propostas pela MP 927, vez que, resumidamente, jogam sobre
as trabalhadoras e trabalhadores o custo da crise, impondo-lhes desemprego,
redução de salários e direitos, além de aumento do sofrimento e de riscos.
6. Afastar todas as
práticas de abuso e oportunismo, como as que, desconsiderando a gravidade do
momento e a relevância histórica, estrutural e humana do trabalho, buscam, para
além do projetado na MP 927, saídas jurídicas para os problemas econômicos das
empresas por meio da redução de direitos e o aumento do sofrimento das
trabalhadoras e trabalhadores, sobressaindo, neste sentido, o apelo que alguns
vêm fazendo à aplicação dos artigos 486 e 501 da CLT, que possibilitariam,
respectivamente, reversão para o Estado do pagamento de indenização pela
cessação do contrato de trabalho; e suspensão do pagamento de acordos
judicialmente firmados.
A
propósito dessas reivindicações, cumpre lembrar que a CLT, recentemente, foi
alvo de intensos ataques, sendo acusada de ser velha. Esse ataque estava
baseado em inverdade, já que dos 921 artigos iniciais da CLT, apenas alguns
poucos continuavam em vigor, na forma como foram propostos, em 1943. E, agora,
os mesmos que faziam essa crítica procuram ressuscitar dois desses
dispositivos, o art. 486, cuja última redação é de 1951, e o art. 501, cuja
redação se manteve inalterada desde 1943.
Ocorre
que esses dispositivos não foram recepcionados pela Constituição Federal de
1988, a qual não traz nenhuma referência a essas possibilidades de atuação
unilateral do empregador nas relações de trabalho. De todo modo, a crise
humanitária instaurada não pode ser considerada “factum principis” e muito menos um “caso fortuito”. A crise
humanitária exige soluções coletivamente institucionalizadas e não atuações
individuais dos diversos empregadores, no sentido de buscarem, cada um por si,
as soluções para os seus problemas, ainda mais desconsiderando a sua função
social e impondo a disseminação do desemprego, do sofrimento alheio e a piora
geral da economia, com prejuízo a tudo e a todos.
Os
acordos judiciais, ademais, refletem fatos anteriores à crise, tendo como
origem ilegalidades cometidas pelo devedor, não lhes cabendo, agora, invocar a
ordem jurídica para se livrarem dos efeitos das ilegalidades cometidas, ainda
mais porque o efeito desse suposto direito potestativo seria punir quem depende
do recebimento do acordo para sobreviver. E como se sabe, ou se deveria saber,
nem mesmo direitos potestativos podem ser exercidos com o objetivo de causar
dano a outrem, ainda mais interferindo na órbita dos direitos fundamentais
deste.
Eventual
prorrogação de prazo dependeria, pois, da expressa concordância do
credor/reclamante, dependendo, inclusive, de homologação judicial em novo
acordo necessariamente baseado na comprovação de dificuldades econômicas que,
mesmo diante da crise, não pode ser pressuposta, até porque para que a situação
seja bem avaliada é preciso considerar os ganhos obtidos nos últimos anos. Quem
acumulou riqueza ao longo de anos (muitas vezes até por conta do descumprimento
de obrigações legais e tributárias) não pode, agora, de maneira oportunista,
invocar a crise e um dispositivo legal de 1943 para obter favor judicial e
punir, mais uma vez, o reclamante.
7. É crucial visualizar
que as soluções que podem ser minimamente eficazes para o enfrentamento
responsável do grande problema que vivemos passam, obrigatoriamente, por
fórmulas (também com o auxílio do Estado) que visam garantir empregos, salário
e renda dos trabalhadores e trabalhadoras. O auxílio estatal mais eficiente, quero
crer, é aquele que busca alocar verbas públicas diretamente nas mãos dos que
mais necessitam (como a renda mínima) e que, assim, podem sobreviver e até
alimentar a cadeia produtiva e o mercado de trabalho. É possível, de todo modo,
conceber auxílio financeiro (com sub-rogação) a pequenas empresas que,
comprovadamente, passam insuperável e comprovadas dificuldades financeiras, com
a condição da preservação dos empregos e de possuírem um histórico de respeito
aos direitos trabalhistas.
8. Cabe buscar vias
alternativas de estímulo à economia e ao mercado de trabalho, promovendo-se uma
nova repactuação social com base em efetiva solidariedade: intervenção do
Estado, tributação de grandes fortunas, aumento da tributação incidente sobre a
herança, doações e redistribuição da riqueza acumulada.
9. Dentro de tudo isso,
para que os agradecimentos públicos tenham algum sentido real e verdadeiro,
impõe-se a urgente revogação das “reformas” trabalhista e previdenciária,
cumprindo lembrar que desde a “reforma” trabalhista, em vigor desde novembro de
2017, aumentou consideravelmente o número de pessoas no trabalho informal (em
janeiro de 2020, 24,5 milhões) e que dos empregos criados 15% foram para o
trabalho intermitente [2] (e que hoje, certamente, estão sem trabalho e renda), isto sem
falar dos 4,7 milhões de desalentados e da “informalidade na formalidade” (do
emprego sem direitos) praticada nas relações de emprego com carteira assinada,
o que se dá por falta da existência de um Ministério do Trabalho como órgão
independente de fiscalização das relações de trabalho.
10. Por
fim, revitalizar o diálogo social (e, em especial, da organização sindical –
artigos 8º e 9º da CF) e preservar em pleno funcionamento as estruturas
democráticas, mas com efetivo respeito ao pacto social firmado na Constituição
de 1988 e aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Para
promover a emancipação da condição humana muito mais seria preciso. Por ora,
emergencialmente, é o mínimo que se deve fazer para formular um agradecimento
sincero aos trabalhadores e trabalhadoras por salvar as nossas vidas!
*Jorge Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP.
Notas
[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/13/internacional/1513193348_895757.html
