Educação como prática da liberdade

Escultura José Resende / Memorial da América Latina, São paulo/ foto: Christiana Carvalho
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEO PANITCH*

Comentário do livro de Rebecca Tarlau, “Ocupando Escolas, Ocupando Terras: Como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Transformou a Educação Brasileira”

Após a derrocada dos regimes comunistas, e a colaboração de tantos partidos socialdemocratas na globalização capitalista neoliberal, compreensivelmente, surgiu na esquerda radical uma forte sensibilidade anarquista, que continuou influente por um período de tempo considerável. A partir dos protestos anti-globalização que abrangeram continentes na virada do milênio até a rápida disseminação do Occupy Wall Street de Nova Iorque para outras cidades nos EUA e em outros países, o humor predominante refletiu uma suspeita generalizada, senão um desdém, por qualquer estratégia política que envolvesse ir ao Estado.

E então, meio que de repente, pareceu ocorrer uma epifania generalizada de que você pode protestar até o inferno congelar, mas não vai mudar o mundo desse jeito. Essa epifania veio durante o curto período conectando as ocupações das praças em Madrid e Atenas e os rápidos avanços eleitorais do Syriza e do Podemos, em meados da década. Também semeou as insurgências de Corbyn e Sanders dentro dos partidos de centro-esquerda dominantes no Reino Unido e nos Estados Unidos.

A obra de John Holloway Mudar o Mundo Sem Tomar o Poder (Boitempo), inspirado pelo movimento Zapatista no México, resumiu de maneira famigerada o humor anterior na esquerda. Outro livro importante, inspirado por outro exemplo latinoamericano muito diferente capturou o contraste com o zeitgeist posterior: Ocupando Escolas, Ocupando Terras: Como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Transformou a Educação Brasileira de Rebecca Tarlau.

Tarlau é uma militante do Socialistas Democráticos da América e professora na Universidade Estadual da Pensilvânia, além de filha de Jimmy Tarlau, por muito tempo líder sindical no Trabalhadores de Comunicação da América (Communications Workers of America – CWA). Ela apresenta em vívidos detalhes a “longa marcha pelas instituições” do movimento dentro do sistema educacional brasileiro, da escola primária até as universidades, e do Rio Grande do Sul até o Pernambuco, recorrendo mais à sua graduação em antropologia na Universidade de Michigan Ann Arbor do que nos seus estudos de pós-graduação em pedagogia na Universidade da Califórnia em Berkeley. O resultado é uma das análises mais profundas já escritas sobre o que significa estar “dentro e contra o Estado” como uma prática estratégica.

Forjados nas dificuldades da luta contra o regime militar brasileiro durante a década de 70, os quadros do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) estavam alinhados bem de perto com aqueles do novo Partido dos Trabalhadores (PT). A distinta orientação estratégica do PT na época poderia ser expressa da seguinte forma: “nós somos militantes de organização, é nisso que somos bons. Mas precisamos entrar no Estado. Quando o fizermos, teremos que continuar sendo militantes de organização. Nós temos que usar os recursos estatais para ajudar a organizar aqueles que permanecem desorganizados.”

Foi essa orientação que inspirou o famoso experimento de Porto Alegre de elaboração de orçamento participativo, onde um prefeito do PT já tinha sido eleito no final da década de 80. Como posso atestar pessoalmente, quando ativistas que frequentavam os Fóruns Sociais Mundiais na virada do milênio ouviam sobre as conquistas desse experimento, a maioria deles retornavam de Porto Alegre soando muito como o jornalista Lincoln Steffens depois de sua ida a URSS em 1919 e voltavam declarando, “eu vi o futuro, e ele funciona.”

Na verdade, o processo de orçamento participativo estava repleto de contradições e limitações, como já estava bem nítido para aqueles que tinham lançado o experimento uma década antes — não menos no sentido de que os participantes na base nunca tiveram a oportunidade de decidir nas questões estratégicas mais importantes com as quais o governo local do PT teve que lidar. Sim, os representantes das favelas tinham permissão para escolher colocar recursos na construção de um esgoto ou de uma estrada, mas eles nunca foram envolvidos na abordagem de questões estratégicas sobre como lidar com os proprietários de terras que reivindicavam aquela terra, tão logo essas estradas e esgotos estivessem construídos.

Por contraste, o MST se engajou ativamente no desenvolvimento de competências políticas e estratégicas em seus acampamentos e assentamentos (bem como em sua escola nacional de quadros, no sul de São Paulo). Militantes do MST também se dedicavam, como tão bem mostra Rebecca Tarlau, para nutrir tais competências através do sistema público de educação.

Quando o PT elegeu seus primeiros prefeitos no final da década de 80, o partido descobriu que enfrentaria acusações de “clientelismo” se contratava um ônibus para levar manifestantes à Brasília para desafiar o modo como as despesas federais em serviços públicos estavam sendo direcionadas para as cidades. Já que os líderes partidários se comprometeram a acabar com as práticas clientelistas, eles não sabiam como responder a essa crítica, então eles simplesmente pararam de fazer isso. O MST não teve que enfrentar a mesma contradição política. No entanto, sua própria longa marcha pelas fracas estruturas educacionais do Estado clientelista e dos governos municipais logo deixou esses governos dependendo do MST para ajudar a administrar as escolas, mesmo que o MST tenha conseguido radicalizar muitos dos professores que inicialmente tinham suspeitas em relação ao movimento.

O que nesse quesito tornava o MST distinto como movimento social era, e continua sendo, seu status explícito como um movimento de classe — e, não menos explicitamente, um movimento socialista. A maior parte da literatura sobre movimentos sociais nas décadas recentes tomou forma em hostilidade à análise de classe, sem falar na hostilidade contra a “grande narrativa” de substituição do capitalismo pelo socialismo. A façanha de Tarlau é direcionar a análise de movimentos sociais de volta para a análise de classe. Ela também enfatiza o tipo de estratégia socialista que envolve trabalhar “dentro e contra” as instituições do Estado para transformá-las — ao invés de meramente protestar por fora delas, ou ainda menos de “esmagá-las”, no velho sentido insurrecional.

Contudo, esse livro incrivelmente sóbrio não é, de jeito nenhum, um exercício de tietagem. De fato, o estudo de Tarlau sobre o envolvimento do MST na “co-governança em disputa” nas instituições educacionais brasileiras oferece um contraste ríspido com grande parte da literatura existente sobre as experiências brasileiras com instituições de orçamento participativo, que tão frequentemente as apresentavam como “utopias reais.” O MST não transformou todo o sistema educacional brasileiro, mudou apenas aqueles aparatos em proximidade aos seus próprios espaços de ocupação e assentamento, e as instituições de ensino superior diretamente envolvidas no treinamento de professores para áreas rurais.

Como mostra Tarlau, o Ministério da Educação em si praticamente não foi afetado. Isso levanta mais perguntas sobre o que significaria ir além da transformação de estruturas estatais que estão primariamente envolvidas na reprodução social, trazendo em questão aquelas instituições que estão centralmente envolvidas na reprodução econômica capitalista, como bancos centrais e departamentos de finanças ou comércio.

Além disso, na medida em que fala sobre as experiências muito diferentes do MST e do PT no Brasil, o estudo levanta ainda outra pergunta: ou seja, quais competências estratégicas um partido político de massas deve tentar desenvolver, se seu objetivo é ocupar todo o terreno do Estado a fim de transformá-lo? Essa é a pergunta chave encarando a esquerda socialista em nossos tempos. Que o importante livro de Rebecca Tarlau nos induza a refletir a esse respeito é mais uma de suas consideráveis conquistas.

*Leo Panitch (1945-2020) foi professor de ciência política na York University e co-editor da revista Socialist Register. Autor, entre outros livros, de O novo desafio imperial(Merlin).

Tradução: Júlia Dórea

Publicado originalmente na revista Jacobin Brasil.

 

Referência


Rebecca Tarlau. Occupying Schools, Occupying Land: How the Landless Workers’ Movement Transformed Brazilian Education. Oxford University Press, 2019.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Henri Acselrad Vinício Carrilho Martinez Fernão Pessoa Ramos Francisco Pereira de Farias Paulo Fernandes Silveira Afrânio Catani Vladimir Safatle Gilberto Lopes Michel Goulart da Silva Paulo Sérgio Pinheiro Carlos Tautz Eugênio Trivinho Everaldo de Oliveira Andrade Francisco de Oliveira Barros Júnior Alexandre Aragão de Albuquerque Ari Marcelo Solon Sergio Amadeu da Silveira Marcos Aurélio da Silva Marcus Ianoni Antonino Infranca Luciano Nascimento Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Carla Teixeira Denilson Cordeiro Vanderlei Tenório Bruno Fabricio Alcebino da Silva Yuri Martins-Fontes João Adolfo Hansen Flávio Aguiar Rafael R. Ioris Walnice Nogueira Galvão João Carlos Loebens Benicio Viero Schmidt Heraldo Campos José Micaelson Lacerda Morais Érico Andrade Liszt Vieira Renato Dagnino Samuel Kilsztajn José Costa Júnior Celso Frederico Ronaldo Tadeu de Souza Ladislau Dowbor Alysson Leandro Mascaro Valerio Arcary José Dirceu Fábio Konder Comparato Manchetômetro Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Martins Luiz Marques Mariarosaria Fabris Leonardo Boff Plínio de Arruda Sampaio Jr. Leonardo Avritzer Lorenzo Vitral Leda Maria Paulani Marcelo Guimarães Lima Matheus Silveira de Souza Sandra Bitencourt Valerio Arcary João Paulo Ayub Fonseca Anselm Jappe Luís Fernando Vitagliano João Lanari Bo Gerson Almeida Michael Löwy Marjorie C. Marona Kátia Gerab Baggio Jean Marc Von Der Weid Luiz Bernardo Pericás Michael Roberts Otaviano Helene João Carlos Salles Jean Pierre Chauvin Gilberto Maringoni Tarso Genro Henry Burnett José Luís Fiori Chico Whitaker Ricardo Antunes Caio Bugiato Julian Rodrigues Atilio A. Boron Luis Felipe Miguel Antônio Sales Rios Neto Luiz Renato Martins Eleutério F. S. Prado Bruno Machado Tales Ab'Sáber Gabriel Cohn Paulo Nogueira Batista Jr João Feres Júnior Jorge Branco Igor Felippe Santos José Geraldo Couto Celso Favaretto Daniel Afonso da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Slavoj Žižek Chico Alencar Ronald León Núñez Bernardo Ricupero Rodrigo de Faria José Machado Moita Neto Francisco Fernandes Ladeira Maria Rita Kehl Eduardo Borges Annateresa Fabris André Márcio Neves Soares Luiz Roberto Alves Osvaldo Coggiola Priscila Figueiredo Dênis de Moraes Dennis Oliveira Luiz Carlos Bresser-Pereira Eliziário Andrade Tadeu Valadares Marcos Silva Marilena Chauí Luiz Werneck Vianna Luiz Eduardo Soares Lincoln Secco Andrés del Río Elias Jabbour Rubens Pinto Lyra Mário Maestri Manuel Domingos Neto Armando Boito Flávio R. Kothe Andrew Korybko Airton Paschoa Remy José Fontana Paulo Capel Narvai Salem Nasser Marcelo Módolo Berenice Bento Ricardo Fabbrini João Sette Whitaker Ferreira Daniel Brazil Boaventura de Sousa Santos Thomas Piketty Claudio Katz Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Sacramento Fernando Nogueira da Costa Antonio Martins André Singer Milton Pinheiro Eugênio Bucci Daniel Costa Ronald Rocha Jorge Luiz Souto Maior Ricardo Musse José Raimundo Trindade Bento Prado Jr. Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleonora Albano Juarez Guimarães Ricardo Abramovay

NOVAS PUBLICAÇÕES