Por RENATO DAGNINO*
A falsa polarização entre Edinho e Valter Pomar nas eleições do PT: enquanto um defende economia solidária e outro reindustrialização, ambos ignoram que apenas 0,02% do PIB vai para redes solidárias contra 23% de subsídios à classe proprietária
Como era natural que ocorresse, o debate de 3 de junho (até agora o mais acalorado) polarizou-se entre os candidatos à presidência do PT das duas correntes que se têm confrontado no seu interior e na mídia de esquerda: Edinho (Construindo Um Novo Brasil) e Valter Pomar (Articulação de Esquerda).
Como era também esperado, essa polarização se deu em torno, por um lado, de questões relativas à organização partidária.
E, por outro, à direção que o Partido deveria impulsionar no âmbito da coalizão de governo acerca do estilo de desenvolvimento a ser adotado no País. E, inclusive, por derivação, na elaboração da política pública.
Minha intenção não é comentar aspectos que foram consensuais, como as implicações negativas da elevada taxa de juro etc. Muito menos posicionar-me a favor ou contra qualquer um dos candidatos.
Meu propósito é, usando a metodologia da Análise de Políticas, abordar, um assunto muito escassamente tratado no ambiente das políticas do campo econômico-social e, em particular no interior do PT, que apareceu no debate. Ou seja, o papel que a economia solidária e, em especial, a proposta a Reindustrialização Solidária deve desempenhar na política pública defendida pelo partido.
Posição dos presidenciáveis sobre a economia solidária
O candidato Edinho, inaugurando seu tratamento em eventos como este, declarou mais de uma vez a ideia de que o apoio à economia solidária era uma condição essencial para um desenvolvimento mais igualitário, sustentável etc.
E que, por isso, iria lutar para que essa ideia conquistasse mais adeptos no interior do Partido visando a que adquirisse, já no âmbito da atual coalizão de governo, um estatuto de política pública coerente com sua importância.
Coisa que soou para alguns integrantes do movimento da economia solidária como as Trombetas de Jericó. Talvez ele estivesse anunciando que, se eleito, irá seduzir com sua ideia seus poderosíssimos companheiros de corrente que podem definir seu futuro. Aqueles que na conjuntura de escassez de recursos determinada pelo ajuste fiscal e as emendas parlamentares podem decidir sem muito rebuliço sobre algo vital para sua expansão: a mudança do balanço entre a alocação da compra pública para as redes privadas (empresas) e as redes solidárias.
E, do mesmo modo, convencer aqueles que alegam que, parecendo desconhecer o enorme subsídio orientado às redes privadas, que a economia solidária não deveria “depender do Estado”. Além daqueles que a veem apenas como mais uma política compensatória ou, no máximo, como uma medida anticíclica de tipo keynesiano.
Edinho, pensaram os mais otimistas, talvez estivesse emitindo um sinal de que, no interior de sua poderosa corrente, a ideia estivesse sendo aceita a ponto de merecer ser veiculada durante a campanha para, depois, se transformar efetivamente numa política pública com as características que ele apontou.
A corrente representada por Valter Pomar tem mostrado não considerar a proposta de Edinho, de que a economia solidária é portadora daquela condição essencial para um desenvolvimento mais igualitário, sustentável etc. E que, por isso, ela não é merecedora da importância que seu oponente a ela confere.
Mais do que isso, alguns integrantes dessa corrente a consideram um resquício fora de lugar e tempo das propostas do socialismo utópico superadas pela consolidação do capitalismo e suplantadas pelas experiências socialistas. Como algo desmobilizador e diversionista que deve ser denunciado como um tipo de colaboracionismo e até de traição à classe trabalhadora.
Essa visão se fundamenta na interpretação que fazem do marxismo e do caminho possível para a transição ao socialismo na periferia do capitalismo. A qual, pelo fato que enuncio em seguida, oxalá passe a ser discutida com a atenção que as esquerdas do Norte e do Sul vêm dando a arranjos de produção, consumo e finança baseados na propriedade coletiva dos meios de produção, na solidariedade e na autogestão.
A disjuntiva “economia solidária” e “indústria”
O que me interessa trazer aqui à reflexão é o que assisti nas considerações finais do debate.
Isso por que, por dever de ofício, acompanho aspectos cognitivos das duas áreas de política pública cujos desdobramentos foram aludidos: a de caráter econômico-produtivo (a política industrial), e a de caráter até agora econômico-social (a de economia solidária). E também por que, devido minha opção acadêmica pela metodologia de pesquisa participativa, me sinto na obrigação intelectual de, acompanhando a polarização, oferecer elementos para que o debate prossiga no interior da esquerda.
Nas suas considerações finais, Edinho destacou mais uma vez sua ideia sobre a economia solidária.
Valter Pomar, ao contrário do que poder-se-ia inferir daquela visão, e talvez devido à insistência de Edinho, assim se expressou: “Nas falas dele [Edinho], todas que eu já vi ontem e hoje de novo, ele fala de economia solidária, economia solidária, economia solidária… Eu sou 100% a favor da economia solidária, do cooperativismo. Mas, eu gostaria de ouvir a mesma ênfase para a industrialização. O Brasil não vai sair da situação primário-exportadora sem industrialização. Eu pergunto a vocês por que isso não aparece com ênfase aqui na fala do companheiro Edinho…”.
Uma interpretação possível dessa observação é que ele considere adequado um maior apoio a atividades do setor industrial; o setor secundário (aproximadamente 26% do PIB) que, junto com o setor primário (a agricultura e pecuária, 7%) e o terciário (serviços, 67%), compõe nossa economia.
E que ele endosse a visão de que a indústria brasileira, se revitalizada, pode vir a provocar um significativo efeito econômico-produtivo positivo de arrasto a jusante e a montante, e de transbordamento, mediante a geração de empregos qualificados, maior arrecadação, produtos melhores, mais baratos e competitivos etc. E um, também considerado como desejável, aumento na intensidade tecnológica das nossas exportações.
E, finalmente mas não menos importante, que ele avalie que o balanço entre as duas alternativas – apoio à industrialização e apoio à economia solidária – não deva se situar onde Edinho estaria propondo.
No que segue, acompanhando uma das orientações básicas dos mestres da análise de políticas, de atentar para os momentos – descritivo, explicativo e normativo – da análise, começo pelo começo. Descrevo, então, de forma muito sucinta, mas compreensível, dado que apoiando-me em fatos e indicadores bem conhecidos, a posição relativa que ocupam no cenário da policy e da politics nacional as duas alternativas.
O apoio à “indústria”
O apoio à industrialização do país ocorre há pelo menos oito décadas. As quatro primeiras, relativamente bem sucedidas e não inteiramente desfavoráveis à classe trabalhadora. As demais, embora marcadas por um processo de desindustrialização, não implicaram uma diminuição ao subsídio concedido à classe proprietária.
O resultado desse apoio pode ser avaliado pelo benefício que a política que a impulsionou gerou para a classe proprietária, cujo segmento que então surgia opondo-se à oligarquia rural primário-exportadora inaugurou o que (depois da escravidão) é a mais longeva das políticas que alguns chamam “de Estado”: a industrialização via substituição de importações.
Como se sabe, a classe proprietária – a que possui as redes privadas (de produção, distribuição, finança) – é hoje diretamente favorecida pelo Estado com 8% do PIB como serviço da dívida pública; mais de 5% como renúncia fiscal; e 10% como sonegação de impostos.
É igualmente bem conhecido o fato de que há três décadas a classe proprietária veio sistematicamente (por meio dos ajustes efetivados entre os seus segmentos com o amparo do “seu” Estado) deslocando da indústria seu potencial de geração de riqueza. Seu lucro passou cada vez mais a depender de atividades como a especulação financeira e imobiliária, mineração legal e ilegal, apropriação de terras indígenas e públicas, agronegócio de exportação, serviços. O que teria conduzido, por razões também bem conhecidas, a um severo processo de desindustrialização muito distinto daquele que vem ocorrendo nos países centrais e com implicações nefastas para a classe trabalhadora.
O que levou a atual coalizão de governo a apoiar esse segmento da classe proprietária com subsídios de várias naturezas mediante o que foi chamado por pesquisadores que defendiam desde 2021 uma reindustrialização solidária, antes mesmo que ela recebesse o nome de Nova Indústria Brasil (NIB), de reindustrialização empresarial.
Sua racionalidade se fundamenta numa ideia, antiga e apenas parcialmente verdadeira, endossada pelos seus formuladores: a indústria (sempre devendo ser entendida como um conjunto de empresas privadas, ou uma rede privada, é dotada de efeitos, mais do que intrínsecos, insubstituíveis, de arrasto econômico, transbordamento e aumento da competitividade.
Sua expectativa é que os mesmos atores que desindustrializaram o País em busca de oportunidades de lucro mais atrativas estejam dispostos, mediante relativamente pequenos subsídios adicionais que ela promete, a voltar à cena da indústria.
E, ademais, que o façam utilizando a capacidade tecnocientífica das instituições de ensino e pesquisa que ela imagina potencialmente por eles utilizáveis, gerando empregos qualificados, exportando bens de alta intensidade cognitiva, evitando acentuar o desastre que o “capitaloceno” vem gerando etc.
O resultado da maciça alocação de recursos à NIB, por ter-se tornado objeto de inúmeros eventos auspiciados pelos seus responsáveis (BNDES, Finep, MCTI, ABDI etc.) e ocupado espaço crescente nas mídias corporativa e, inclusive, daquela de esquerda, dispensa comentário.
O apoio à “economia solidária”
O apoio à economia solidária foi iniciado há duas décadas. Em 2004, foi criada a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES); paradoxalmente, num espaço estatal vocacionado a acolher a negociação entre patrões e seus empregados, o Ministério do Trabalho e Emprego.
Desde então até 2017, sob o amparo dos integrantes das coalizões de governo mais à esquerda, e por isto a cargo das “políticas sociais”, ela recebeu 1,5 bilhões de reais; 30% do Orçamento Federal de 5 bilhões destinado à economia solidária.
Depois do desmonte auspiciado pelo golpe de 2016, sua recriação, como Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária, só ocorreu em 2023. Ela foi então agraciada com a alocação de irrisórios R$ 2 milhões para evitar a desaparição em curso das redes solidárias que haviam sido criadas mediante o apoio governamental e a remontagem institucional prevista pela lei que tramitava desde doze anos antes e que foi aprovada em dezembro de 2024.
Esse valor, embora tenha sido ampliado em 2024 para R$ 12 milhões é muitas vezes menor do que o anterior e bastante inferior ao necessário para promover a recuperação daquelas redes e a remontagem prevista pela, agora, Lei Paul Singer.
Ele é muitíssimo menor do que o que precisam as brasileiras e brasileiros que representam quase metade da nossa força de trabalho (que estimo, a partir da consideração da população em idade ativa, em quase 160 milhões), que nunca tiveram e provavelmente nunca terão emprego e salário, para alcançar a oportunidade de trabalho e renda que pressagia a economia solidária.
Um esboço de comparação
Finalmente, para avaliar a importância relativa do apoio à indústria manufatureira para atender a expectativa dos integrantes da classe trabalhadora com alguma “empregabilidade”, cabe lembrar que daqueles quase 160 milhões, apenas pouco mais de 40 milhões possuem carteira assinada; uma das poucas promessas que a classe proprietária faz à classe trabalhadora. E que a parcela destes contratada pela indústria manufatureira é ainda menor do que sua participação no PIB (cerca de 10%).
Como comparar aquele valor (que é o único dado orçamentário disponível) orientado à economia solidária com o despendido para o apoio à reindustrialização empresarial nos levaria a trabalhar com incômodas frações de mais de duas casas decimais, é interessante avaliar outro indicador.
Por serem bem conhecidos os dois programas (PAA e PNAE) que favorecem um setor muito importante da economia solidária (a agricultura familiar), e também pela importância – tática e estratégica – que a ela se outorga, optei por considerar a alocação da compra pública como critério.
Estimada em quase 15% do PIB, ela se orienta todos os anos para as redes privadas para adquirir os bens e serviços com que o Estado retribui pelo imposto que pagamos. Deste total, apenas 0,02% do PIB (que é o valor destinado àqueles dois programas) é alocado às redes solidárias.
Como veem, voltamos às duas casas decimais… Mas corroboramos que, ao contrário do que deu a entender o Valter Pomar, o apoio à economia solidária é muitas ordens de grandeza menor do que aquele que recebe a “industrialização”.
A reindustrialização solidária como confluência
Eximindo-me de entrar no momento explicativo (em que se explica por que a realidade é com é) para não relembrar coisas que todos conhecem, vou para o normativo e encerro essa contribuição para o debate com um tom particularmente alvissareiro.
A alusão a quanto a atual coalizão de governo se tem dedicado à reindustrialização empresarial, sugere a possibilidade de que as ideias manifestadas pelos dois candidatos possam confluir para que o PT venha a encampar a proposta da Reindustrialização Solidária.
Seu propósito de aproveitar o variado potencial das redes solidárias, até agora por diversas razões restringido à coleta e reciclagem de resíduos sólidos, agricultura familiar e artesanato, para a produção de bens e serviços de natureza industrial, mas de maneira coerente com os valores, interesses e vocações da economia solidária, emerge do debate como uma confluência das preocupações dos dois candidatos.
Para compatibilizar os sentidos presentes nas suas falas é necessário discutir em profundidade o que vem sendo elaborado sobre a Reindustrialização Solidária. E, inicialmente, de perceber dois dos movimentos cognitivos de desconstrução conceitual que estão na sua origem.
O primeiro, relacionado à obsolescência do conceito de indústria que nos lega um passado capitalista em ruínas. Ou seja, de que ela deve ser entendida como um conjunto de arranjos econômico-produtivos de propriedade privada que funcionam com baixa eficiência, eficácia e efetividade e que demanda um ajuste estatal intrinsecamente perdulário para sobreviver.
Que produzir bens e serviços de natureza industrial é algo que só nelas pode ocorrer e que uma rede solidária não teria, por construção conceitual, a capacidade de produzi-los com um desempenho econômico, social, ambiental etc. mais aderente ao desafio da transição civilizacional que temos que enfrentar.
O segundo movimento se refere também a um transiente. De natureza histórica, ele impõe a apropriação de experiências distintas daquela que herdamos desse passado capitalista e, também, daquelas codificadas pelo pensamento contra-hegemônico. Elas vão desde como se constituíram e viveram, em muitos lugares, os povos até há pouco considerados primitivos. E abarcam, por exemplo, as experiências de revolução industriosa que, já na Era moderna, permitiram que sociedades se organizassem para evitar as implicações negativas e os efeitos disruptivos da tecnociência capitalista.
Minha expectativa é que o debate que presenciamos possa prosseguir no interior do PT fazendo confluir as preocupações do Edinho, de aproveitar o potencial das redes solidárias para construir um futuro melhor, e do Valter Pomar, de fazê-lo a partir daquilo que de positivo nos lega o passado industrial privado.
Honrando nossa engenhosidade temos que fazer o que ninguém ainda fez. Devemos reprojetar o legado cognitivo mediante um processo que tenha por referência imediata a reindustrialização solidária e por “Sul” a adequação sociotécnica da tecnociência capitalista na direção da tecnociência solidária.
*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular). [https://amzn.to/4gmxKTr]
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