Eles não usam black-tie

Foto: divulgação
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Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*

Comentário sobre o filme dirigido por Leon Hirszman.

1.

Eles não usam black-tie é um filme adaptado da peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri. No ano de 1963, em uma “atmosfera de euforia”, ele é um dos “jovens diretores teatrais e dramaturgos”, “aos quais se deve a vitalidade e o brilho do teatro paulista” e “preparam-se ativamente para estender ao cinema as suas atividades criadoras” (GOMES, 2016, p.268).

Dirigido por Leon Hirszman, Eles não usam black-tie retrata uma conjuntura brasileira na qual os trabalhadores e seus movimentos sindicais, em efervescência histórica, eram reprimidos pela força pública policial. Os operários fabris, sob arrocho salarial, deflagravam greves, encaradas como “o direito sagrado do trabalhador”. Nas manifestações grevistas, uma mensagem de estímulo: “Trabalhador unido, jamais será vencido”. Companheiros (as) em luta por melhores condições de trabalho e salários mais justos.

A arte cinematográfica, em “compromisso social-democrático”, atenta para “a eclosão das revoltas” operárias, em respostas artísticas às dimensões das crises estruturais do capital (ANTUNES, 2009). Nas manifestações dos artistas, “o tempo vivo da memória” registra: noite de 30 de abril de 1981, no show “Primeiro de Maio”, cantaram Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Gal Costa, Gonzaguinha, Moraes Moreira e Luiz Gonzaga. Durante o espetáculo, no Riocentro, explodiram duas bombas. Na sua apresentação, Gonzaguinha proferiu o “anúncio da bomba”. Um registro fonográfico histórico, uma d(i)scoberta sonora do “show do atentado”.

Para retratar a precariedade vivida pelo proletariado daquele contexto histórico, a narrativa fílmica focaliza as dificuldades enfrentadas por uma família trabalhadora, composta por Romana e Otavio, os pais de Tião e Chiquinho. As conjunturas mudam e, de lá para cá, somos provocados a refletir sobre como está, hoje, no neoliberalismo, o mundo do trabalho, sua precarização e o sindicalismo. Em imagens descortinadoras, a projeção do cotidiano da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2009).

Estimulação fílmica para a compreensão de “uma noção ampliada de classe trabalhadora”, em suas “dimensões da diversidade”, heterogênea e complexa. Nas “transversalidades entre as dimensões de classe e gênero”, as Marias trabalhadoras, assalariadas. Como estão vivendo “os assalariados no setor de serviços”? E “as novas formas de trabalho em domicílio”? No contexto da “transnacionalização do capital”, os toques cinematográficos pensam o “mundo do trabalho” e conduzem a uma reflexão sobre “a forma de ser da classe trabalhadora hoje” (ANTUNES, 2009).

2.

Eles não usam black-tie remete ao pensamento crítico e engajado de um grande cientista social: Florestan Fernandes. Em 1979, uma vertente da sociologia brasileira projetava uma “nova sociedade e novo homem”, tomando como exemplo histórico “a revolução cubana” e o seu projeto socialista, conduzido pela eclosão das “potencialidades sociodinâmicas especificamente revolucionárias” das “classes trabalhadoras”.

Voltadas para a “desagregação da velha sociedade”, “a consciência revolucionária” é uma “força social construtiva”, focada na “reconstrução da realidade” a florescer no socialismo, a “nova ordem social” a ser conduzida pelo “homem comum”, “coletivamente”, o sobrevivente proletariado e “suas funções revolucionárias positivas” (FERNANDES, 1986, p.304).

Discurso cinematográfico em memória de um sociólogo presente, nome maiúsculo da afirmação sociológica e universitária “numa era de revolução social”, de “mudanças sociais”. A “revolução” na sociologia dos oprimidos. No memorial do intelectual marxista e libertador, o que reflete sobre “o socialismo no século XXI”, as citações de Antonio Gramsci, Attila József e Che Guevara (MÉSZÁROS, 2007). Cito o poeta Bertolt Brecht: “César bateu os gauleses. Não levava sequer um cozinheiro?”. É uma das “perguntas de um trabalhador que lê” (BRECHT, 2012, p.166).

A arte cinematográfica provoca uma reflexão sobre os fardos dos tempos históricos carregados por quem vive sob “a tirania do imperativo do tempo do capital” globalizante e sua “incontrolabilidade” e “destrutividade”. “Selvageria real do sistema”, de “efeitos destrutivos desumanos” e ataques aos direitos dos trabalhadores. “Pacotes salariais precarizados” e “desemprego”, resultam dos choques entre os interesses empresariais e os do operariado e sua força de trabalho (MÉSZÁROS, 2007). Sob ameaça da “barbárie”, desafios históricos estão postos para quem movimenta projetos de “revolução política e social”.

Eles não usam black-tie é cinema político no desvendamento dos conflitos de uma sociedade capitalista, alicerçada na relação de exploração entre as suas classes sociais fundamentais. Estas, e as lutas que travam entre si, seguem fazendo a história de todas as sociedades existentes até os dias de hoje. Desafinando o coro dos contentes, Leon Hirszman em diálogo com Karl Marx.

Nas memórias de Fernanda Montenegro, a intérprete de Romana em Eles não usam black-tie, o registro de um momento político “de desespero”. No contexto histórico das gravações da “última cena do filme”, na “favela Brasilândia”, o choque incrédulo em pisar no chão de “um lugar assim tão miserável na Pauliceia”. Miséria paulista encarada nas várias facetas da cidade de São Paulo, experimentadas nas cenas dos conflitos classistas, filmados em um tempo histórico singular da política brasileira.

Em uma “cozinha paupérrima”, catando feijão na companhia do marido Otavio, as mãos do casal separavam “os bons grãos, os não podres”. Atividade rotineira na vida dos cozinheiros (as) pobres, nas vezes em que os feijões “mulatinhos” ou “de corda”, caem nas suas panelas.

No cenário de precariedades, a atriz dá um sentido político e prenhe de simbologias, ao ato cotidiano de separar o grão comível do apodrecido. Na projeção de uma mesa justa, a “cena do feijão” focaliza “os grãos que, um dia, vão nos tirar da injustiça social do país”. Enquanto a justiça e a paz distavam daquela conflituosa conjuntura, os operários lutavam por elas e os artistas gravavam nos últimos dias de filmagens, realizadas “durante o choque entre o Exército e os sindicatos do ABC, com Lula à frente das reivindicações, já a caminho da fundação do Partido dos Trabalhadores” (MONTENEGRO, 2019, p.226).

3.

Da “república de São Bernardo”, uma história do PT é “entendida como parte do movimento global de formação de partidos operários” (BARROS, 2022, p.53). No ano de 1979, “os metalúrgicos e sua turma”, operários da escrita democrática parida nas ruas, “tentavam reconstruir a democracia brasileira”, mas a violenta repressão policial era fotografada nos protestos e nas jornadas grevistas do ABC.

A substância social das memórias da política e do trabalho, vistas através das imagens fabricadas por cineastas intelectuais, organicamente “testemunhas da cultura das classes pobres”. Artistas “cuja função tem sido um serviço constante aos explorados”. Augusto Boal e Bertolt Brecht encenaram as “tantas histórias” narradas e as “tantas questões” perguntadas pelos oprimidos trabalhadores. Na encenação da “miséria das massas”, “o comunista teatral”, “cansado do trabalho”, “mostra a injustiça do mundo” (BRECHT, 2012, p.33).

Eles não usam black-tie projeta a visão de alguns personagens, fontes exemplares “dos trabalhadores que alcançaram, através de uma vida intensa das condições de sua classe, uma consciência militante”. Braulio, interpretado por Milton Gonçalves, é um personagem modelar de “uma pessoa que percebe, luta, cujas mãos tecem o tecido vivo da história” (BOSI, 2003, p.155).

Na trama da militância, foi assassinado, e no critério da sua escolha como alvo dos tiros, pesou o fato de ser negro. “Atira no crioulo”, disparava a ordem. Heroicizado, Braulio teve um velório prestigiado por um significativo número de pessoas. O corpo encaixotado saiu em cortejo pelas ruas, acompanhado pelas faixas dos trabalhadores em luto, na defesa da liberdade sindical e com o coro de vozes afirmando que “a greve continua”. Emocionado com a perda do amigo de militância, Otavio diz para Chiquinho, o seu filho caçula: “O teu filho vai estudar o Braulio na história do Brasil”. “Então a luta foi em vão?” O poeta responde: “Quando é abatido o que não lutou só, o inimigo ainda não venceu” (BRECHT, 2012, p.187).

Autores da “tela global” e o “potencial político do cinema” em imagens resultantes de “articuladas contestações ao capitalismo e ao funcionamento do campo político”. Glauber Rocha e Jean-Luc Godard são exemplares. Com Eles não usam black-tie, a arte cinematográfica de Leon Hirszman realça o permanente e contínuo movimento artístico, guardião da “memória do passado”.

Na trilha das atualizações shakespearianas, o cineasta “retém ideias universais” nas arteirices fílmicas que concebe e segue expressando “fundamentos da humanidade, da sociedade, da vida e, no caso específico, também da política”. O conceito de poder é encenado nos palcos, nas telas e objetiva “lembrar na contemporaneidade ações de partidos políticos, ideologias ou projetos políticos que atraem e incentivam os homens às ações políticas” (CHAIA, 2015, p.37).

Focado no “potencial político do cinema” na sala de aula, o professor usa uma referência fílmica na perspectiva do “poder de conhecimento” e análise do texto cinematográfico. A poderosa arte na formação de uma consciência crítica sobre as condições gerais em que vivem os trabalhadores (as). “Temas políticos” e “formas de poder” sob os olhares pensantes dos cineastas.

 “Textos marginais”, incluindo escritos de Karl Marx, em conjunturas pretéritas, conectavam “inquérito operário e luta política”. Um questionário, uma enquete operária a ser revisitada com as perguntas de 2025 sobre quem são e como vivem os (as) trabalhadores (as) brasileiros (as). Seus dramas sociais, estigmatizações sofridas, “a má-fé institucional” e da sociedade, os trabalhos (in)dignificantes, as destituições, os racismos multidimensionais (classe e raça amalgamados) e as dores morais experimentadas pela “ralé brasileira”, naturalizada e composta por mulheres e homens humilhados (as) nas suas subcidadanias (SOUZA, 2022).

Eles não usam black-tie, mas gostariam de ir ao cinema. Os trabalhadores (as), nas suas multidimensionalidades, não querem só comida. Um operário que recebe a quantia de um salário-mínimo mensal, tem condições de pagar uma entrada cinematográfica? Enfadado pelas vampirizações dos terrores cotidianos, no dia da folga, terá fôlego para dar uma saída? E a pipoca, com Coca-Cola, vendida nos combos da Marvel? Na sociedade camarotizada em que vivemos, com as suas cenas de apartação social, criaram as excludentes salas “vip” e outros espaços IMAX, caracterizados “por telas grandes, tecnologia de alta resolução e som imersivo”, com promessas de muita emoção e intensas sensações de curtição fílmica. Quais os privilegiados que podem sorvê-las?

Primeiro de maio, feriado nacional do “Dia do Trabalho e do Trabalhador”. Em Teresina, capital do Piauí, na minha curiosidade sociológica, teclo em “Ingresso.com” para saber do preço do ingresso do filme Thunderbolts. Na sala VIP 3D, na sessão de 18:00 horas, dublada, quem tem grana terá que desembolsar a quantia de 74,09 reais (a inteira). Alguém quer me arranjar uma “cortesia”? Pergunta de um trabalhador da educação. Um detalhe: a profissão de bilheteiro (a) está com os dias contados.

*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referência

Eles não usam black-tie.

Brasil, 1981, 134 minutos.

Direção: Leon Hirszman,

Roteiro: Leon Hirszman & Gianfrancesco Guarnieri

Fotografia: Lauro Escorel Filho.

Elenco: Gianfrancesco Guarnieri, Fernanda Montenegro, Lélia Abramo, Bete Mendes, Carlos Alberto Ricelli, Milton Gonçalves

Bibliografia

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo, 2009.

BARROS, Celso Rocha de. PT, uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2012.

CHAIA, Miguel (Org.). Cinema e política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2015.

FERNANDES, Florestan. Nova sociedade e novo homem. In: Ianni, Octavio (org.). Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Ática, 1986.

GOMES, Paulo Emílio Sales. Uma situação colonial? São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007.

MONTENEGRO, Fernanda. Prólogo, ato, epílogo: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.

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